O último sobrevivente da The Band morreu durante o sono no passado dia 21, aos 87 anos, num lar de idosos perto de Woodstock, no estado de Nova Iorque. Garth Hudson, que tocava órgão, acordeão, saxofone, e ainda outros instrumentos, sendo ele mesmo conhecido como uma banda de um homem só no seio da The Band, foi homenageado por Bob Dylan, que recordou como ele era uma visão de feérica beleza em palco, «a verdadeira força motriz» por trás daquela formação, grupo que continua a ser tido como aquele que melhor corporizou a gloriosa e selvagem amálgama de estilos que animou o rock n’roll. Os seus companheiros de banda – o vocalista-guitarrista Robbie Robertson, o baterista Levon Helm, o baixista Rick Danko e o pianista e multi-instrumentista Richard Manuel – costumavam descrevê-lo como um músico erudito, ágil e perspicaz, tinha um ar professoral, pairando numa cena dominada por encantadores bufões. O cantor rockabilly Ronnie Hawkins, que começou por ter o apoio dos Hawks, grupo a que Hudson se juntou em 1961 e que viria a dar origem à The Band, via-o como um tipo singularíssimo: «Ele ouvia todo o tipo de sons estranhos na sua cabeça, e tocava como o Fantasma da Ópera… A maioria dos organistas naquela altura tocava tudo, mas o Garth recostava-se, fazia licks, fazia horn shots. Ele sabia exatamente o que pôr e o que deixar de fora».
Um polímata musical
Os intricados redemoinhos que compunha no órgão Lowrey ajudaram a fazer daquela formação de refugiados das sessões de juke-joint um dos grupos de rock com maior preponderância e influência na cena entre os anos 60 e 70. E sendo um polímata musical, ele fez muito mais do que simplesmente captar frequências, com o seu pequeno estúdio em casa forrado por arcanos, um prodigioso cenário que se compunha de partituras de standards e hinos centenários, tendo ele dominado não só o órgão, o acordeão e o saxofone, mas também os sintetizadores, trompete, trompa, violino, e cobria infinitos estilos estando tão à-vontade num improviso caseiro como num conservatório, numa igreja, num carnaval ou num bar de estrado em cascos de rolha. Mexia-se bem entre o céu e a terra, e gostava de estar metido em tudo, tendo sido ele quem montou, instalou e fez a manutenção do equipamento de gravação na casa cor-de-rosa em West Saugerties, Nova Iorque, onde Bob Dylan gravou com a The Band mais de 100 canções que ficaram conhecidas como as The Basement Tapes.
Mais tarde, à medida que o grupo saía das sombras e se afirmava por si só, os seus dotes como produtor e arranjador, além de engenheiro de som foram decisivos, definindo o som e compondo a música para os álbuns que gravaram, dando provas da sua meticulosidade ao aperfeiçoar os mais pequenos detalhes das gravações. Acrescentou metais, sopros e floreios ecléticos que acentuavam a autenticidade caseira do grupo, uma qualidade que o distinguia da psicodelia e da postura juvenil do rock da sua época.
‘O músico mais avançado’
No seu auge, a The Band gozava de grande reputação como uma operação colaborativa, que ganhava fôlego a partir das letras e da cerrada sonoridade das guitarras de Robbie Robertson, sendo esse ímpeto sustido pela profundidade das vozes e pela musicalidade de Levon Helm, Rick Danko e Richard Manuel. Mas todos reconheciam a Hudson um papel decisivo ao elevar o grupo a um patamar inaudito. Na monografia de Barney Hoskyns, The Band: Across the Great Divide (1993), Robertson não lhe poupa elogios, considerando-o «de longe o músico mais avançado do rock ’n’ rol». «Ele poderia facilmente ter tocado com John Coltrane ou com a Orquestra Sinfónica de Nova Iorque ou connosco», acrescenta Robertson, que morreu há um ano e meio.
Enquanto músico de sessão, produtor, arranjador, Hudson veio ainda a colaborar em gravações e ao vivo com uma série de grandes nomes, desde Norah Jones a Neil Young, Muddy Waters, Keith Emerson, The Lemonheads, Roger Waters, Secret Machines, J.J. Cale, The Sadies, Ringo Starr, Mercury Rev, Tom Petty and the Heartbreakers, Wilco, Leonard Cohen, Neil Diamond, Marianne Faithfull, Robert Palmer, Van Morrison, entre tantos outros. Como artista a solo, lançou o primeiro disco, The Sea to the North, em 2001, e viria depois a estar na formação de novos projetos colaborativos, como a banda Burrito Deluxe e os The Best! Tocou ainda em bandas sonoras como as de Touro Enraivecido ou O Rei da Comédia, ambos de Martin Scorsese, produzidas pelo colega Robbie Robertson, bem como na de Os Eleitos, de Philip Kaufman, assinada por Bill Conti.
Do Canadá à casa cor-de-rosa
Hudson nasceu a 2 de agosto de 1937, em Windsor, Ontário, no Canadá. Oriundo de uma família de músicos, compôs a sua primeira canção com apenas 11 anos, e aos 12 já tocava com bandas de baile. Ainda adolescente, conseguiu um emprego como organista na agência funerária do seu tio. «A igreja anglicana tem as melhores tradições musicais de todas as igrejas que conheço», disse mais tarde a Barney Hoskyns. «É a velha liderança vocal que lhe dá as contra-melodias e acrescenta todos esses dispositivos clássicos que não são muito comuns, mas que acrescentam um pouco de textura». Essa influência é palpável na forma de tocar de Hudson, que é marcada por pequenas derivas inesperadas, quase contra-intuitivas. E se parece revolutear, depois tudo aquilo coalesce, deixando essa impressão distinta que levou muitos a notarem que o seu estilo era erudito, mas provocador. Depois do liceu, juntou-se a uma banda chamada The Silhouettes, mais tarde conhecida como Paul London and the Capers. «O Garth era muito profissional, com um sentido de humor estranho e seco. Ele era meio esquisito, mas não esquisito-esquisito», disse London a Hoskyns.
Depois dos Hawks, quando deixaram de tocar com Hawkins, a banda fez algumas digressões por conta própria, até que Bob Dylan os recrutou como grupo de apoio em 1965 e 1966, os famosos anos elétricos. Até que, em julho de 1966, Dylan teve um acidente de mota nos arredores de Woodstock e se afastou por uns tempos. Esse acabou por ser o impulso para que The Band se lançasse definitivamente como grupo autónomo, e na primavera de 1967, Hudson, Danko e Manuel mudaram-se para Big Pink, uma casa alugada em West Saugerties. No seu livro de memórias, Testimony, Robertson descreve-a como «uma casa cor-de-rosa, estilo rancho, no meio de cem acres – um cume de montanhas, um lago de bom tamanho e nada mais do que espaço e natureza selvagem à volta». Arranjaram algum equipamento, incluindo uma máquina de fita de um quarto de polegada que estava em casa de Dylan, e transformaram a cave da Big Pink numa espécie de estúdio de gravação ad-hoc. E o resto, como se diz, é História.