O propósito deste seu projeto, realizado entre 1941-1942, ela que já tinha viajado por países governados por ditadores como a União Soviética, a Turquia ou o Irão, ou outros países como o Afeganistão, a Pérsia ou a Índia, era escrever sobre o impacto da II Guerra Mundial na vida das colónias africanas. Quer naquelas cujas metrópoles tinham sido vencidas e ocupadas pelo inimigo, quer nas que não faziam parte ativa do combate. Porém, no Congo sentiu-se envolvida num “jogo torturante” que a cobriu de acusações e injúrias. Passou a ser uma presença “indesejada”, e por isso não conseguiu defender na rádio, nem na Cruz Vermelha, os seus ideais antifascistas. Consideravam-na suspeita, uma espia.
Podemos ler no prefácio de Gonçalo Vilas-Boas que, “em África, mais concretamente no Congo Belga, Schwarzenbach será recebida de um modo inesperado. Em virtude do seu casamento em 1935 em Teerão com o diplomata francês, Claude Clarac, tem um passaporte francês do regime pró nacional-socialismo de Vichy. Além disso fala alemão e tem algum dinheiro, contrariamente à maioria dos refugiados, fatores que levam a que a considerem uma espia e a impeçam de realizar qualquer trabalho concreto relativo à luta contra a barbárie do nacional-socialismo, como eram os seus planos iniciais.” Com estes obstáculos, a autora de “Morte na Índia” vai enveredar pela poesia e começa também a escrever o romance “Das Wunder Des Baums”.
Depois de sair da capital portuguesa, onde inicia a viagem, o primeiro destino é o Funchal. No pequeno navio onde viaja, também se encontram muitas outras pessoas. Pessoas em situações diferentes, de diferentes nacionalidades e com diferentes propósitos. Vai uma jovem belga que tinha esperado cinco meses em Lisboa pelo visto inglês; uma mulher com três filhos louros; um padre; uma jornalista; uns italianos recentemente libertados de campos de prisioneiros; um homem que fabrica guarnições para navios, cujo pai é um dos maiores banqueiros belgas; uma inglesa sozinha, porque o filho morreu em combate. Antes vivia em França, mas agora nem sabe tão pouco em que parte da África Ocidental irá morar.
“A bordo, vi passageiros que procuravam resguardar-se. Comportavam-se como pacientes dum manicómio que gritam a pedir que os ajudem e os deixem ir embora, embora saibam certamente que ninguém lhes presta atenção. Houve alguém que, em Lisboa, ao ser recolhida a prancha de embarque, não se queria separar de uma amante, ameaçava atirar-se à água e torcia-se de dores no chão. Recentemente, um outro já não podia aguentar o calor tépido e pôs-se aos gritos que estava a sufocar, que tinham de parar a embarcação, de mandar chamar um vento fresco de montanha, de o deixar morrer, mas não se morre assim. Comprar a tal preço a liberdade, quando se resiste à vida, é um exclusivo do suicida. A nossa lei é viver cada dia como um novo estorvo à morte.”
Existe um elo a unir todos estes passageiros tão improváveis e desesperados, ávidos de estabilidade: a noção de que a viagem não é de lazer, e que de modo algum ela é encarada levianamente como uma mera aventura. Muitos passageiros não fazem ideia onde irão desembarcar. Só querem é sentir-se a salvo.
Há um mapa-múndi pintado num espelho gigantesco pendurado no salão do navio. Pelos olhos da narradora quase podemos ver esse mapa-múndi, assim como a água bifurcando-se à frente da proa do Colonial. Acompanhar esta travessia ao longo de costas tão longínquas como o Senegal, o Equador, a Nigéria, São Tomé ou Dacar é surpreendente.
A bordo do Colonial, quando cai a noite vão todos cedo dormir. Esta não é uma viagem de recreio para ninguém. Não há bailes, nem filmes, nem animados jogos de cartas, cantorias ou apostas sobre as milhas percorridas num dia. Apenas as crianças estão descontraídas. E são em grande número. São portuguesas que vão para São Tomé, Angola ou Moçambique na companhia das mães. E as mães vão sozinhas porque os maridos ou estão na guerra, ou foram mortos.
Devido ao bloqueio do canal de Suez, a Europa ficou isolada, e por causa da guerra os seus portos foram fechados e muitos chegaram a ser destruídos. O colonial levava a cabo a importante rota que era a travessia entre os dois continentes.
Com esta travessia, o leitor tem a perfeita noção de que no duro momento da II Guerra, ali, naquele barco, existiam dois mundos. Um mundo anterior, de paz e segurança, e um outro mundo que se apresentava, inseguro, caótico e incerto.
Durante a viagem a autora completou 33 anos. Morreria um ano depois na sequência de um desastre de bicicleta. Nesta viagem conheceu muita gente, outras realidades, soltou muitas das suas amarras interiores, e acima de tudo escreveu sobre o que mais a comoveu e agradou, e sobre o que mais a chocou.
Chocou-a essencialmente a comunidade branca das colónias africanas. “Tinha travado conhecimento com a existência insípida das cidades coloniais, a sua sociedade e as suas autoridades e a estas dado contas, dia após dia. Na rede da vida em que as pessoas se organizam, a malha – as leis, regras e formalidades –, tinha-se tornado tão apertada que se sufocava lá dentro.” Annemarie não se revia na “assustadora mesquinhez e trivialidade da vida na colónia”. Considerava os coloniais um tipo peculiar de pessoas, “mais gananciosos, mais embrutecidos, com menos interesses e mais preconceitos –, amolecidos, e apáticos por causa do clima, e mais resignados.”
Com a sensação de estar de mãos atadas, as notícias que lhe chegavam eram cada vez mais de crescentes zonas de conflito, cidades destruídas, um maior número de refugiados, exércitos derrotados, navios afundados. Ela própria tinha dois amigos que vinham de Londres num navio que os alemães tinham afundado.
A guerra surge, desde o início desta viagem, como um fantasma de vidro que a qualquer momento pode embater à nossa frente e estilhar-se em mil cacos. Mas este fantasma vai-se disfarçando e colorindo perante todas as belíssimas descrições das paisagens, de peixes voadores, da selva pululante, dos pântanos e das aldeias dos nativos com as suas fogueiras e as suas canções. Das mulheres com os filhos às costas embrulhados em panos coloridos, dos mercados movimentados, dos palmeirais. O leitor, durante muitas passagens, vai, por isso, esquecer-se dos flagelos da guerra. Até que a meio do livro, no regresso de Luanda a Lisboa, no texto “Entre África e a Europa”, vai sentir o pavor que foi chegar a Freetown, às mãos da polícia marítima para passar no controlo. É aí que pela primeira vez, de perto, sentimos a proximidade com a realidade da guerra.
“Segundo os critérios da guerra, a bordo encontravam-se lado a lado inimigos e aliados, mas havia uma coisa que os unia: o desejo de voltar a uma costa europeia, trocar a estranha África pela terra da sua pátria, mesmo que essa terra estivesse empobrecida, esmagada, vencida ou sob ameaça.”
Nunca sabemos quando vamos avistar terra ou deixar para trás um porto, ou quando vamos encontrar algum surto de febre amarela, algum posto de controlo ou um submarino por perto. O deslizar do Colonial para o interior do oceano é, desde o primeiro instante, o ir ao encontro de um assustador desconhecido. Por vezes, esse oceano onde a narradora navega parece-nos um sonho, mas, outras vezes, revela-se interminável e agitado demais. Ninguém sabe o que se ergue para lá das ondas e da neblina. No caso de Annemarie Schwarzenbach, a valentia e a sede de desbravar mundos e o seu próprio universo interior, foram sempre a sua chave de viagem. Porque segundo a escritora, “nós trazemos na carne um aguilhão, somos pecadores que desejamos a maçã e o diálogo com a serpente.”