olá,
escrevo este email a vários ex camaradas, dirigentes e outras pessoas com as quais me cruzei nos quinze anos de militância no Bloco de Esquerda.
Faço-o por sentir que face aos acontecimentos da última semana tenho o direito e o dever de falar convosco, diretamente e de uma forma que me é fácil. Não sei se todos irão concordar comigo, mas quis fazer a minha experiência chegar até vós. Tenho pouco poder de síntese e não me irei alongar em muitos pontos já referidos na carta da t.
o despedimento.
No dia 3 de fevereiro de 2022 encontrava-me no meu posto de trabalho no Palmeiras quando o camarada Fabian Figueiredo (em isolamento devido à covid19) me telefonou despedindo-me por telefone e informando-me que seria substituída pela camarada RS. Minutos depois entra o ex deputado Jorge Costa na nossa sala, dirigindo-se a um colega despedido também por telefone minutos antes de mim, visivelmente abalado e que lhe diz que já fora informado do seu despedimento. Em resposta o dirigente e ex deputado responde que tinha trabalho para ele fazer. Estavam na sede vários dirigentes e deputados, mas não consideraram digno despedirem-nos olhos nos olhos.
As legislativas de 2022 foram difíceis e em momento algum contestámos a necessidade de despedimentos – disse-o inclusive em comunicação anterior ao secretariado. Contudo, o processo de despedimento não podia ter sido pior gerido e custa-me crer que decorreu num partido que defende os direitos dos trabalhadores. Estando na sede nacional, local onde se concentravam a maioria dos funcionários, não houve uma única reunião a explicar como seria o processo, em que dias iriam reunir, o que fosse. O ambiente na sede era de enorme ansiedade não só pelo eventual despedimento, mas pela informação que circulava de que os contratos de comissão de serviço fariam com que os funcionários pudessem sair sem qualquer indemnização – em momento algum houve o cuidado de corrigir este rumor. Trabalhadores foram despedidos por telefone e conversas Zoom que não ultrapassaram os dois minutos, num processo sem qualquer empatia pelo significado que um despedimento tem para qualquer trabalhador, inclusive um funcionário político.
À data tinha cerca de 45 dias de férias por gozar. Ao questionar a partir de quando o meu despedimento entraria em vigor, não obtive resposta. Ao questionar se podia tirar dias de férias, não obtive resposta. Continuei a apresentar-me no meu posto de trabalho, mas coisas apareciam feitas sem passar por mim. A camarada que me ia substituir, anteriormente a trabalhar na Assembleia da República, começa a sentar-se na secretária ao meu lado e desempenhando tarefas que por mim não passavam. Foi um período de enorme sofrimento e ansiedade que se agravava por não poder tomar qualquer tipo de calmante por estar a amamentar. Em qualquer outro local de trabalho consideraria tal situação assédio moral, aqui sei que foi pura desorganização e desrespeito pelos trabalhadores.
O que argumentamos desde o primeiro dia é político e não tanto legal.
Numa equipa constituída por seis pessoas, duas delas designers, estranhamos que o Bloco de Esquerda tenha optado por despedir as duas mulheres com filhos, ainda para mais de poucos meses. Consideramos que a nossa experiência e trabalho são relevantes e seriamos capazes de assumir a maioria das funções que os camaradas que mantiveram os seus postos de trabalho assumiram, mas num cenário de despedimento de 30 trabalhadores era perfeitamente compreensível que uma de nós fosse despedida. Mas fomos as duas. As duas trabalhadoras com bebés, as duas trabalhadoras que amamentavam, as duas trabalhadoras que teriam de faltar para ficar com filhos doentes em casa, as duas trabalhadoras que teriam reuniões na creche, as duas trabalhadoras que teriam dificuldade em fazer trabalhos a qualquer hora, a reagir e publicar qualquer entrevista. Na hora de despedir, o Bloco de Esquerda tomou a mesma decisão que tomam as empresas que tanto criticamos: despediu quem menos produz, não apoiou quem está em situação de maior vulnerabilidade. Que argumentos usará agora para criticar as empresas que fazem o mesmo? Com que cara irá continuar a apresentar projetos de lei nesta área?
Num partido muitas são as ligações que se misturam e as linhas que se passam. Dirigentes são amigos, chefes são namoradas, o que seja. Os comentários trocistas em reuniões sobre a proximidade das gestações são vistos como piadas de amigos. As críticas à amamentação prolongada pela camarada que nunca exigiu atestado de amamentação só podem ter sido um mal entendido. O comentário em reunião de trabalho sobre a longa ausência por licença de maternidade só pode ser um lapso. O trabalho durante a baixa de gravidez de risco ou licença de maternidade é um esforço militante. Tudo linhas que se cruzam e que todos e todas sabemos que não toleraríamos num outro trabalho. Mas trabalhar para o partido não é trabalhar para uma empresa.
Desde que esta situação veio a público que o Bloco de Esquerda e a sua coordenadora se escudam no argumento da legalidade e do telefonema. Já iremos à legalidade, mas quanto ao telefonema, todos sabemos que esse argumento não passa de areia para os olhos. O problema está na incoerência entre aquelas que são as bandeiras do partido e a prática no momento em que é confrontado com a necessidade de despedir trabalhadores. Em fevereiro de 2022, o Bloco de Esquerda tinha despedido as suas três trabalhadoras mulheres com filhos com idade inferior a 12 meses – só recuaram no despedimento de uma por esta não ser elegível para apoios.
A lei
A direção do Bloco de Esquerda alega que não existe qualquer ilegalidade no nosso despedimento pois tínhamos contratos em regime de comissão de serviço e que, como tal, pode terminá-los a qualquer momento. Não duvido que sempre assim tenha feito. Contudo, a direção saberá também que a figura de comissão de serviço é clara na tipologia de funções que abrange e que nelas não se enquadram trabalhos de comunicação nem a maioria das funções dos trabalhadores do Bloco de Esquerda com contratos do mesmo tipo, nem o nível de informação que a nós chega justifica esta opção contratual. Quantos trabalhadores em regime de comissão de serviço se inserem na categoria “geral”? Os partidos políticos, em Portugal, não estão isentos de seguir o Código do Trabalho. Sabe que de acordo com a lei as minhas funções não estavam associadas a qualquer mandato parlamentar nem enquadradas no regime de comissão de serviço, não tendo por isso o contrato grande validade legal. Sabe que eu, tal como outros trabalhadores do Bloco de Esquerda, deveria ter um contrato de trabalho a tempo indeterminado e por isso estar nos quadros. E que como tal não me poderia despedir daquela forma, mesmo que tenha sido sempre assim que os trabalhadores do Bloco de Esquerda foram despedidos. Sabe que a isso se soma a condição de lactante, com as demais responsabilidades perante a CITE (excluo desta conversa a óbvia e chocante situação da colega em licença de maternidade com um filho de dois meses ao colo). Sabe que se tivesse seguido para Tribunal do Trabalho, como ameacei, o desenrolar do processo teria sido outro. Mas os dirigentes do Bloco conhecem também a lealdade que muitos de nós temos ao projeto político no qual participámos por tantos anos, mesmo quando saímos em ruptura total com a sua direção. Sim, trabalhar para o partido não é trabalhar para uma empresa. Mas isso justifica mesmo tudo? Temos mesmo de aceitar tudo? Será que há trabalhadores a falsos recibos verdes, por exemplo?
organizar a vida.
A direção do Bloco de Esquerda diz desde o primeiro momento que o falso contrato de trabalho foi um gesto de solidariedade para connosco. Se foi, e queria mesmo que não fossemos trabalhar, por que não optou pela via legal e não se limitou a isentar-nos da apresentação no local de trabalho cessando o vínculo no final de 2022 como decidira? Não seria porque a assinatura de tão generoso contrato a termo significava que deixávamos de estar nos quadros, terminando todas as responsabilidades legais associadas?
Há um detalhe que fica esquecido nesta história: a dignidade. Nesta semana tenho sido alvo de muitos insultos, alguns deles focados no facto de ter recebido um salário para não trabalhar. Estou certa que para muitas pessoas soará como uma coisa boa. Para mim foi um gesto indigno, humilhante e a assinatura do contrato foi muito claramente a venda do meu silêncio. Trabalho desde os 16 anos, fui educada para ter honra no trabalho. Podiam ter optado por nos dizer que compreendiam que estávamos numa situação delicada enquanto mães recentes e que como tal manteriam os nossos postos de trabalho até ao final de 2022 permitindo-nos procurar outra coisa nesse periodo, o que fosse. Saber que o meu partido preferia pagar-me tendo-me longe a ter-me a trabalhar para ele foi para mim uma enorme humilhação. Que na sequência disso nenhum dirigente tivesse entrado em contacto comigo foi um murro no estômago. Que consiga contar pelos dedos de uma mão os camaradas que se mostraram solidários comigo neste processo constituiu uma das maiores desilusões da minha vida.
vir a público.
Para mim uma das palavras centrais no socialismo que queremos é solidariedade. Nesse processo de despedimento por que passei não recebi dos dirigentes do Bloco de Esquerda qualquer palavra de solidariedade. Agora que a história veio a público e o partido fala em erros que assume, continua sem ser capaz de nos dirigir uma palavra. Fomos nós que tivemos de contactar os dirigentes do Bloco de Esquerda no meio deste circo mediático. Da maioria, entre eles a coordenadora do partido, obtivemos silêncio.
Estive em silêncio quase três anos. Durante muito tempo tinha de mudar de canal ao ver na televisão pessoas a quem em tempos chamei amigos e camaradas. As manifestações eram incómodas. Os encontros na rua igualmente.
Não sei de onde veio a denúncia. Fui contactada por três órgãos de comunicação social e por duas semanas andei para trás e para a frente com a ideia de falar de forma anónima. No final escolhia sempre não falar por ansiedade e por não querer manchar a imagem de um partido que já não é o meu, no qual já não voto, mas que foi minha casa por quinze anos. Quando o Bloco foi contactado pela Sábado podia ter falado comigo. Quando a notícia foi publicada o Bloco podia ter falado comigo. Ao invés, mantiveram o silêncio de anos, lançando a público aquele comunicado absurdo sobre ataques da extrema direita. Custou-me ver mulheres que acompanharam os vários processos a partilhá-lo. Ver uma dirigente do partido fazer piadas com a situação fez-me perceber que o respeito que ainda tinha pelo partido não era mútuo, ou que talvez para quem dirige o Bloco o despedimento de duas mães que amamentavam bebés de colo fosse um assunto encerrado. Para mim nunca será. Que tenham continuado sem me dirigir uma única palavra e recorrido aos meus tweets para lançar uma ridícula nota à imprensa com o objetivo de provar que não houve qualquer ilegalidade, revelando o meu nome (e a maioria de vós sabe bem que não o queria público), expondo-me perante a imprensa sem meu consentimento não bate muito certo com essa imagem de partido solidário que ajudou duas mães recentes a organizarem a vida.
Envio este email a muitas mulheres, algumas com as quais pouco ou nada falei, na esperança que compreendam que o feminismo também é feito para as mães e que aquilo que um partido político defende também tem de ser aplicado dentro de portas. O debate sobre formas de financiamento é velho, ficará para quem continua no partido. Peço que não deixem estes assuntos cair no esquecimento. Que se apliquem regras internas e que se pensem práticas que temos como normais. Por que motivo é que as mulheres desaparecem da vida política quando são mães? Por que é que as mulheres ativas na política ou não têm filhos ou já os têm mais crescidos? Por que é que mesmo dentro do Bloco há tanta estranheza quando um homem diz que não pode ir a um plenário por ter de cuidar de um filho?
Um abraço,
Érica