BE investigado pelo MP por falsificação de documentos e fraude

BE investigado pelo MP por falsificação de documentos e fraude


Em causa está a possibilidade de um crime no que diz respeito à forma como foi tratado o despedimento de duas recentes mães. O SOL teve acesso à carta de uma trabalhadora à direção do BE que explica os contornos da situação


A Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu inquérito ao caso das trabalhadoras do Bloco de Esquerda que, tendo sido mães, e estando ainda a amamentar, terão sido pressionadas a assinar contratos-fantasma.

Fonte oficial da PGR confirmou ao Nascer do SOL que já abriu um inquérito, que corre no DIAP de Lisboa, sobre os alegados contratos fictícios a prazo, sem uma prestação efetiva de trabalho para o partido, em que os salários serviriam como indemnização pela extinção de posto de trabalho.

Em causa poderão estar os crimes de fraude à segurança social e falsificação de documento.

Aos jornalistas,  o procurador-geral da República, Amadeu Guerra, adiantou: «Estivemos a estudar as questões, pareceu-nos que era possível e que havia condições para, pelo menos, averiguar e depois daremos o despacho quando fizemos a investigação», acrescentando «os indícios que também temos são de falsificação, mas isso não significa que que se venha provar, portanto nós o que vamos fazer é investigação, como fazemos em todas as situações».

Ao nosso jornal, João Correia, advogado e ex-secretário de Estado da Justiça, defende não ter dúvidas: «Se o contrato é simulado, não é válido. Os contratos simulados são nulos. A simulação é nula», destacando que a Segurança Social «deve ter recebido a contrapartida respetiva» mas sobre a parte criminal não se quis pronunciar. «Se é simulado, é nulo e da nulidade decorrem várias consequências. É de conhecimento oficioso, qualquer magistrado do ministério público pode decretar nulidade», finaliza.

Já Isabel Araújo Costa, associada Sénior do Departamento de Direito do Trabalho e Segurança Social da Antas da Cunha Ecija, refere ao nosso jornal que, a confirmar-se que foram assinados falsos ou aparentes contratos de trabalho, «tal terá servido o propósito de iludir disposições legais, podendo configurar, desde logo, um crime de falsificação de documento», avisando que «a tentativa é punível».

 De igual modo, acrescenta a advogada, «podemos estar diante de um crime de fraude contra a Segurança Social, na medida em que se ficcionou a prestação de trabalho e respetivo enquadramento contributivo». Isto é, «não terá, tanto quanto se veicula, existido prestação de trabalho, mas terão sido feitos os descontos legais para a Segurança Social. Descontos, esses, de trabalho não prestado, logo a que as trabalhadoras não teriam direito».

Isabel Araújo Costa explica também que, ao serem extintos os contratos de trabalho sem termo para darem lugar a contratos a termo fictícios, «tal ilude e viola disposições legais previstas no Código do Trabalho, na medida em que – se os contratos fossem verdadeiros – esta precarização acarretada pela substituição de um contrato sem termo por um contrato a termo, faria com que se considerasse sem termo o contrato de trabalho com reconhecimento da antiguidade ao início do contrato a termo (a qual devia ser acompanhada da indemnização legalmente prevista no artigo 366.º do Código do Trabalho e não outra inferior), pois aquela estipulação de termo teria por fim iludir as disposições que regulam o contrato sem termo (que é a regra)».

 Quanto à indemnização, a advogada explica que, de acordo com a lei laboral, «o despedimento é ainda ilícito se o empregador não tiver posto à disposição do trabalhador despedido, até ao termo do prazo de aviso prévio, a compensação por ele devida a que se refere o artigo 366.º», sendo também ilícito «o despedimento em caso de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante ou de trabalhador durante o gozo de licença parental inicial, em qualquer das suas modalidades, se não for solicitado o parecer prévio da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres (CITE)».

Helena Salazar, sócia do Departamento de Direito do Trabalho da SPCB LEGAL, já tinha dito ao i que caso a entidade empregadora despeça a trabalhadora sem obter esse parecer da CITE ou se o parecer ao despedimento for desfavorável, «o despedimento é ilícito».

Já  Isabel Araújo Costa adianta ainda  que constitui contraordenação muito grave «a celebração de contratos a termo cujo motivo justificativo e respetiva necessidade temporária não sejam verdadeiros, como se diz ter sido o caso». Assim, e para além do enquadramento criminal, «também há uma potencial sujeição a um quadro contraordenacional – esse já da competência da ACT», cujas coimas podem variar entre o mínimo de 2.040,00 euros e um máximo de 61.000,00 euros, «dependendo do volume de negócios da empresa e do grau de culpa do infrator (negligência ou dolo)».

‘Não houve qualquer ilegalidade’

Assim que a notícia foi divulgada pela Sábado, Mariana Mortágua, que começou por desmentir a notícia e ameaçar a revista, dizendo-se vítima de um ataque político e disse apresentar queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Mas depois acabou por assumir numa carta aos militantes, que o partido também comete erros. «É certo que cumprimos os deveres legais, é certo que procurámos um acordo que protegesse estas pessoas, mas temos sempre que procurar contactá-las e ter os procedimentos mais respeitosos possíveis. No mais, eu quero-vos dizer que somos humanos e que às vezes erramos como toda a gente».

Ontem, assim que se soube da investigação do MP, a líder bloquista voltou a falar e a assumir os erros, mas nega ilegalidades. «As ações que o BE tomou foram para proteger estas pessoas», disse a líder bloquista, defendendo que «não voltaria a fazer as coisas da mesma maneira hoje» e que «este caso não retira legitimidade ao BE em nenhum dos seus princípios».

‘O meu silêncio não pode continuar’

O Nascer do SOL teve acesso a uma carta de uma das trabalhadoras despedidas que assina como T., enviada ao Bloco de Esquerda, onde refere que, apesar de pouco ter falado nos últimos dias, o seu silêncio «não pode continuar a ser cúmplice da propagação de mentiras ou da omissão de factos que marcaram a minha vida há três anos e que voltei a reviver nos últimos dias».

Com críticas ao partido, esta trabalhadora revela que «foi graças à coragem da minha colega em tornar público no seu testemunho que houve uma tentativa de reparação de danos, materializada num comunicado assinado por Mariana Mortágua, que ficou muito aquém do expectável para um partido de esquerda trabalhadora e feminista».

Sobre o seu despedimento, t. relata que, quando o filho tinha apenas dois meses, o coordenador de equipa de redes lhe comunicou por telefone que não regressaria ao seu posto de trabalho. «Não se tratou apenas de um contacto, mas sim da comunicação de um despedimento como facto consumado, ao qual se seguiu um processo de negociação», desabafa.

Após a primeira abordagem, uma semana depois, foi convocada para uma reunião por Zoom com dois dirigentes do partido, «onde me foi proposto um acordo, dada a impossibilidade legal do despedimento sem o parecer da CITE», esclarece. Teve apenas dois dias para poder dar uma resposta. «Relembro: o meu filho tinha dois meses. Eu era uma puérpera». Aceitou então a proposta, e descreve o seu estado psicológico: «Não tinha qualquer tipo de energia, física ou mental, para enfrentar um aparelho partidário». «O meu contrato de comissão de serviço – que é, por si só, juridicamente questionável – não estava associado a nenhum mandato parlamentar e, portanto, não terminava com o fim do mandato». E não fica por aqui.  Mais do que a questão legal, t. relembra as questões morais, éticas e políticas que envolvem o seu despedimentos: «É de uma profunda desonestidade usar malabarismos jurídicos para negar o que realmente aconteceu. O acordo que assinei contornou a impossibilidade legal do meu despedimento, mas não invalida a ilegitimidade do mesmo, nem o facto de ter sido despedida por telefone quando o meu filho tinha dois meses».

T. acrescenta ainda que o seu contrato com o partido, embora fosse uma comissão de serviço, não estava associado a nenhum mandato e, portanto, era sem termo. «O acordo proposto consistiu na troca do meu contrato de trabalho sem termo por um falso contrato de trabalho a termo, datado entre maio e dezembro de 2022», defendendo que «esse contrato fictício nunca deveria ter sido proposto» e que «a sua existência é, por si só, moral e politicamente questionável, independentemente do seu teor».

Referindo a frase de Mariana Mortágua de que a decisão «não prejudicou ninguém e foi vantajosa para as trabalhadoras», T. atira: «Façamos contas»: «De maio a dezembro são oito meses, aos quais se somam os subsídios de férias e natal. Se eu fosse despedida legalmente – o que duvido que fosse autorizado pela CITE», receberia 60 dias de aviso prévio (2 meses);  férias por gozar do ano anterior (duas semanas); férias do presente ano (1 mês);  décimo terceiro e décimo quarto meses do presente ano (2 meses); décimo terceiro e décimo quarto meses do ano seguinte (2 meses);indemnização correspondente ao tempo que trabalhei no partido, dois anos e meio.

A trabalhadora endurece o discurso afirmando que este acordo a impediu de usufruir, por exemplo, da licença de parentalidade alargada, que se poderia estender até julho. «A ‘caridade’ que a direção do partido alega ter tido para comigo ignora a obrigatoriedade de pagamento dos meus direitos no quadro legal de despedimento».

E lança nova farpa: «O partido alega que houve uma extinção do meu posto de trabalho, mas aquilo que aconteceu, de facto, foi uma supressão de várias funções. Quer eu, quer a outra trabalhadora mãe despedida, seríamos totalmente capazes de desempenhar qualquer uma das funções necessárias para a continuidade da equipa».

Por fim, chega à conclusão: «Não acho que seja justo, nem para mim, nem para o Bloco, eu continuar a silenciar-me. A esquerda também precisa de autocrítica e de uma reflexão profunda sobre o seu feminismo e a sua relação com os trabalhadores, com as trabalhadoras e com as pessoas que cuidam».

Entretanto, o nosso jornal teve acesso a um email de Érica, uma das trabalhadoras despedidas, enviado a militantes de dirigentes do Bloco de Esquerda, no qual conta o processo e a experiência.