Churchill. Um supremo ator que continua sem rival

Churchill. Um supremo ator que continua sem rival


Alguns dos maiores nomes da representação foram chamados ao longo das décadas a mergulhar no mito, tentando beliscar a pele e trazer-lhe algum tom humano, mas a dificuldade está no facto de o próprio Churchill ter sabido aliar os seus instintos políticos a uma forma de encenação insuperável


Se hoje sabemos alguma coisa sobre os gostos cinematográficos de Churchill, isto deve-se ao seu hábito de se sentar, no final de um dia atarefado de guerra, para ver um filme depois do jantar. Depois disso, inspirado, impaciente, regressava ao trabalho, contando muitas vezes que os outros fizessem o mesmo. A partir do testemunho de John Colville, secretário particular de Churchill durante a guerra, e que manteve um diário bastante detalhado a partir daquele seu vantajoso ângulo, este permite partilhar a intimidade do líder inglês naquele período em que enfrentou a hora mais trágica de uma forma que não desilude quem ainda abre um livro de História esperando encontrar nos personagens esses traços que avivam o compromisso com a lenda. No seu diário, Colville dá conta de várias dessas projeções, e revela como, em dezembro de 1940, depois de acompanhar as peripécias das personagens de E Tudo o Vento Levou, Churchill confessou que se sentia «pulverizado pela força dos seus sentimentos», e é preciso notar o peso da palavra num momento em que partes de Londres estavam a ser reduzidas a escombros e pó.

Numa das passagens das impetuosas memórias em que dá conta dos anos da sua infância e juventude, aquela que é amplamente considerada a sua obra-prima, A Minha Juventude (publicado em 1939), Churchill nota que, «desde o início de 1895 até ao momento em que escrevo, nunca tive tempo para me coçar. Posso contar quase pelos dedos os dias em que não tenho nada para fazer. Tenho vivido um interminável filme em que sou chamado a representar um papel enquanto ator». Não é de espantar, por isso, que alguns dos atores que, desde então, lhe vestiram a pele em produções cinematográficas ou televisivas, tenham mostrado o seu ar de gozo ao ouvir um adversário parlamentar tentar rebaixá-lo, acusando-o de não passar de «um ator, apaixonado pelo som da sua própria voz».

‘Porque é que os atores adoram encarnar Churchill’

Richard Burton, que mais tarde viria a encarná-lo num filme para a televisão que passou em 1974, recordava-se, numa entrevista, como certa vez, estando em cena e a representar Hamlet, se deu conta de que estava a receber um eco enfático das suas palavras à medida que as proferia, tendo ficado desconcertado ao perceber que era Churchill quem, sentado na primeira fila das bancadas, não se contendo, estava a querer roubar-lhe o papel, como se estivesse num concerto a cantar a sua canção favorita.

Nos nossos dias, o ator que é chamado para lhe dar vida em mais outra das inúmeras versões que já se organizam como um cânone, é uma espécie de homenagem, um rito de celebração em que se reconhece os méritos e a confiança que nele é depositada. Anthony Lane, o reputado crítico de cinema que escrevia nas páginas da The New Yorker, publicou em 2017 um artigo sob o título “Porque é que os atores adoram encarnar Churchill”. O texto arranca por um contorno em contraluz, assinalando todos esses adereços que, desde logo, servem de muleta para que quem lhe veste a pele possa apoiar-se nesse esforço para representar aquele líder que instintivamente reconhecia que a governação é, em parte, uma encenação. Há aqui um efeito de mise en abyme, uma vez que em grande medida Churchill era essa figura que tinha uma inclinação para os solilóquios, ensaiando uma e outra vez os seus discursos até dominar o registo mais cativante. Como revela Colville no já referido diário, «às vezes, ele precisava de semanas a cogitar antes de chegar a uma resposta que o satisfizesse. Algumas frases podiam entreouvir-se, ao passo que outras ficavam embrulhadas na respiração, e andava para trás e para a frente até deslaçar um assunto que o preocupava. Podia dirigir comentários aparentemente inconsequentes à sua família ou ao seu pessoal, ou mesmo ao seu gato de tons amarelados, enquanto que, com as frases meio mastigadas, se podia ouvi-lo a preparar uma ata para o Comité de Chefes de Estado-Maior ou um discurso para a Câmara dos Comuns».

‘Um colosso a dominar o mundo’

Por outro lado, não lhe faltava também um sentido da forma, e um dos aspetos mais desafiantes no esforço de tentar prender nem que seja uma dimensão mais profunda do seu caráter liga-se ao facto de, além de um líder político, Churchill ter sido também um prolífico e formidável escritor, jornalista e incessante auto-publicista, cultivando minuciosamente a imagem que pretendia ver transferida para o imaginário popular. Quando um escultor achou apropriado retratá-lo com uns pés bem grandes, sustentando firmemente aquela mítica estatura, ele não gostou nada e disse-o. «Como é que eu ia saber?», perguntou o escultor, acrescentando: «Eu visualizava-o como um Colosso a dominar o mundo!». Poderíamos citar uns versos de William Blake, a quem a sua eloquência foi comparada: «E aqueles pés plantados em tempos antigos/ não terão andado sobre as verdes montanhas de Inglaterra»…

Interpretá-lo tem muito a ver com transmitir aquela autoridade e audácia, e de nada ajudam o chapéu ou as papadas, o laço manchado ou os óculos a descaírem pela ponte do nariz, nem mesmo o fumo do charuto e o compasso das baforadas. O ator pode afundar-se no colete, a corrente do relógio e acenar as vezes que quiser com o copo de uísque, mimetizar a expressão provocadora numa figura que logo se impõe como o eixo de qualquer divisão ou cena, mas, se não tiver a densidade psicológica, todos esses truques não o impedem de fracassar. No geral, como assinala Anthony Lane se há algo que liga Se há algo que liga os diferentes filmes ou séries que se detêm sobre Churchill, é que artisticamente todos deixam muito desejar, apenas servindo para cimentar de alguma forma o seu mito, sendo que, «se os virmos em repetições na televisão, podemos ficar com eles por uma questão de conforto e na esperança de aprender algo novo. Mas, apesar de o papel central ter atraído intérpretes do mais alto nível, nenhum realizador de igual estatura abordou uma matéria tão espinhosa».

De Burton a Oldman

Vale a pena elencar alguns dos nomes que logo vêm à memória entre os atores que, ao longo das décadas, nos deram apesar de tudo retratos marcantes de Churchil, e se já referimos Burton, logo a seguir deve destacar-se a prestação de Albert Finney, que conquistou um Emmy depois de exumar o mesmo título em que Burton apareceu em 1974, The Gathering Storm. O filme mais recente foi para o ar em 2002 e, de forma sucinta, em meros 90 minutos, evoca os difíceis anos do exílio político de Churchill, quando o seu casamento estava sob a maior tensão, naqueles anos que precederam a antes da II Guerra Mundial, quando só ele parecia reconhecer a ameaça que Hitler e uma Alemanha rearmada representavam para a Europa. O exímio Brendan Gleeson assumiu o papel em 2009, no filme Into the Storm, sendo até à data o único irlandês a fazê-lo, nesta da fita anterior. O filme segue Churchill desde a sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro até à sua demissão sumária pelo eleitorado em 1945. São de assinalar também as performances de Brian Cox, Timothy Spall e Viktor Stanitsyn, que lhe vestiu a pele nada menos que quatro vezes. Na televisão, em 2016, tanto Michael Gambon, em Churchill’s Secret, como John Lithgow, em The Crown, encarnaram um Churchill a quem a idade começa por fim a pesar. Sem surpresa, a interpretação que de certo de modo estabeleceu um padrão, e que de ora em diante obrigará todos os atores a medirem-se com ela, foi a de Gary Oldman, no filme de Joe Wright The Darkest Hour, 2017.

Num corte que nos coloca no final da primavera de 1940, o filme cobre a demissão de Neville Chamberlain, um primeiro-ministro então sitiado, e a sua substituição, depois de muita resistência e de grandes disputas, por Winston Churchill. Oldman não deixou de reconhecer que a sua conquista do Ócar de melhor ator se devia em grande parte à completa transformação física, conseguida por Kazuhiro Tsuji, que eliminou o obstáculo mais importante e que impediria a maioria dos espectadores de se deixarem absorver pelo drama histórico. Baseado no diário Colville, o guião de Anthony McCarten é inteligente, ágil e bem pesquisado, e se sofre como qualquer produção sobre o período pelo nosso conhecimento retrospetivo, uma vez que a audiência já sabe que aquele homem vai enfrentar e superar uma tempestade após a outra, e que os seus detratores vão ter de engolir o desdém que lhe mostraram, o filme consegue captar a sensação de estarmos a presenciar um momento culminante, centrando o guião nas semanas mais importantes não só da vida de Churchill, mas também do século XX.