Propostas e decretos. As medidas contraditórias de Trump

Propostas e decretos. As medidas contraditórias de Trump


No projeto que evidencia o fortalecimento da economia e o aumento da competitividade do país, Donald Trump acaba por incorrer em algumas contradições. Assim, as opinões dividem-se entre a esperança e a preocupação.


Donald Trump promete, neste seu segundo mandato à frente dos Estados Unidos, uma nova “Era Dourada” para o país. Sempre num discurso pautado pelo regresso do excecionalismo americano, onde as reformas na economia assumem um papel de relevância acrescida, o novo Presidente tem como grande objetivo voltar a melhorar as condições de vida dos seus cidadãos. Seja através da redução de preços, do aumento dos salários reais e da preservação (e criação) dos postos de trabalho em solo americano, o plano parece ser ambicioso. Contudo, a nova Administração parece estar a incorrer em várias contradições, adotando medidas que poderão revelar-se penalizadoras para os trabalhadores e consumidores.

Trump lidera a chamada internacional conservadora, um movimento global assente na reação ao globalismo e às diretrizes supranacionais em matérias ambientais e económicas, e um dos seus principais aliados, membro da elite de Mar-a-Lago, é Javier Milei, o Presidente argentino que tem acumulado sucessos económicos em apenas um ano. Terá sido a inspiração na motosserra do homónimo argentino que Trump decidiu criar uma agência, fora do aparato Estatal, cujo objetivo é o corte das gorduras do Estado em burocracias e afins, que permitirá estabilizar as finanças públicas e que, consequentemente, criará um ambiente favorável à redução de impostos. Ainda assim, as diferenças entre o novo inquilino da Casa Branca e o libertário Milei são evidentes.

Pontos-chave do programa

O programa apresentado por Donald Trump durante a campanha é vasto e aborda praticamente todos os setores da sociedade americana. Trata-se de propostas ambiciosas que prometem alterar por completo a face da política americana e retomar algumas das medidas que já haviam sido implementadas durante o seu primeiro mandato. Deste grande leque, a nova administração publicou uma versão resumida das ações mais importantes que tenciona levar a cabo, onde merecem especial destaque temas como a segurança interna, o projeto energético, o “drenar o pântano” e a recuperação dos valores americanos. Quanto ao primeiro ponto, já entraram várias medidas em vigor (ver págs. 2-3), o projeto energético, envolto em polémica, será abordado mais à frente, a desburocratização através do Departamento de Eficiência Governamental tutelado por Elon Musk é também fundamental para o sucesso dos próximos quatro anos da Presidência Trump e, por fim, a guerra cultural é altamente importante para revigorar a moral americana após uma administração que nem sempre fez o seu melhor para preservar o legado e a história dos EUA.

As contradições económicas

Trump e o seu vice-Presidente, J. D. Vance, representam uma nova doutrina da direita americana, o pós-liberalismo, numa rotura com a linha ideológica do próprio partido e uma abordagem económica claramente mais intervencionista. “A referência do sucesso nacional”, diz Vance, “não é o número do PIB ou a bolsa de valores, mas sim se as pessoas sentem que podem criar famílias prósperas e saudáveis no nosso país”.

“As nomeações e a retórica de Trump até agora”, comunicou o fundo de investimento americano Bridgewater, em dezembro, aos seus clientes, “parecem sugerir que vai tentar ser forte e remodelar radicalmente as instituições dos EUA, o comércio global e a política externa dos EUA”. Um aviso claro aos investidores, que ainda estariam na dúvida quanto ao plano de ação da nova administração. E este redesenhar da arquitetura económica global já está em curso e poderá representar uma das contradições das propostas do novo Presidente americano.

Sempre forte na crítica à administração anterior quanto ao fenómeno inflacionário, Trump pode estar a dar passos para agravar um dos problemas que mais afeta os consumidores. O seu amor pelas tarifas às importações é evidente, e Trump vê nelas um mecanismo de coagir outras potências. Mas que impacto terão realmente na economia americana? Primeiro, as suas intenções de colocar tarifas de 60% às importações chinesas e de 25% às importações canadianas e mexicanas poderão “fazer descarrilar” o combate à inflação, advertia Janet Yellen, então secretária do Tesouro americano, em dezembro. Declaração à qual Stephen Moore, um assessor de Trump, respondeu, citado pelo Financial Times: “Trump aumentou as tarifas no seu primeiro mandato, mas onde estava a inflação? Não houve nenhuma”. A inflação é causada pelo aumento do dinheiro em circulação, causando a desvalorização do mesmo, não estando por isso o aumento das tarifas relacionado diretamente com o fenómeno inflacionário. O aumento das tarifas provocará certamente o aumento dos preços de vários produtos, deteriorando o poder de compra dos americanos, mas não é esse o maior problema desta medida querida ao novo Presidente americano, segundo a The Economist. “O maior problema é que prejudicam o crescimento económico e a inovação”, pode ler-se na revista.

A questão das tarifas é maioritariamente avaliada no prisma das relações com a China, o adversário direto dos EUA e o que será alvo de percentagens mais elevadas. André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, acredita que esta situação com os chineses “é discutível”, mas que o “foco protecionista vai muito para além disso”. “Se os Estados Unidos estão a perder”, continua, “então aplicam-se tarifas. É uma visão de jogo de soma nula. Uma ideia de que alguém tem de ganhar a alguém que tem de perder”. O professor aborda a tendência protecionista dos últimos quinze anos nos Estados Unidos, acreditando que Trump “é mais um sintoma do que uma causa” e que a diferença entre Trump e os democratas é o facto de “Trump ser explícito, apresentando o protecionismo como algo positivo em si mesmo”. “Também é verdade que aquilo que se designa nas últimas décadas por comércio livre, muitas vezes tem pouco de comércio livre”, nota Azevedo Alves, “É um emaranhado de tratados e de acordos preferenciais e de favoritismos a grupos e a setores específicos que, em si mesmo, e sem colocar em causa a apetência protecionista de Trump, também é um erro acreditar que no outro lado existe uma visão idílica de comércio livre”.

Mas esta visão protecionista leva-nos a outra contradição, acredita André Azevedo Alves, uma vez que Trump “tem, num plano interno, um discurso bastante pró-liberdade económica”. Quanto à promessa da redução do défice fiscal de 6,5% para 3%, utilizando as receitas provenientes das tarifas, a redução do gasto público e o crescimento económico, o professor da Universidade Católica identifica “se não uma contradição, pelo menos uma tensão, porque se a aposta for acelerar o crescimento económico, claramente que um reforço substancial dos níveis de protecionismo, não só não favorecerá ganhos de eficiência e crescimento económico como terá mais custos”. No plano nacional, acredita Azevedo Alves, “há o objetivo de retirar o Estado do caminho, deixar a atividade económica funcionar e favorecer o crescimento económico, mas no que toca à esfera do comércio internacional é aparentemente o contrário, sendo um Estado não só forte, mas também interventivo”.

Ainda assim, diz o professor, que “quanto maior for a economia, menores são os efeitos do protecionismo”, independentemente de “ter um efeito destruidor de riqueza e de ser mau para o desenvolvimento económico”.

Por fim, André Azevedo Alves identifica outra possível contradição: “No próprio discurso dizer às empresas que para não haver tarifas têm de produzir nos Estados Unidos, também é, em si mesmo, para além das tarifas, um indicador de intervencionismo em termos de política industrial (…) Isto é uma fonte potencial de maior burocracia, de maior corrupção e de maior favoritismo. O efeito final é ser criada, no fundo, uma oligarquia financeira e industrial em grande proximidade com o poder político, que a favorecerá no processo de tomada de decisão”.

Assim, muitas expectativas recaem sobre a nova administração Trump neste setor, que, como se vê, apresenta várias incongruências, tensões e até contradições.

Acordo de Paris e a emergência energética

De todas as ordens executivas assinadas no primeiro dia por Donald Trump, as que tratam de questões ambientais saltam imediatamente à vista, provocando esta reação por se tratar de mudanças significativas e cujo impacto não é de menosprezar.  O Acordo de Paris, um tratado assinado por 195 países cujo objetivo é limitar o aquecimento global, é um marco internacional na luta contra as alterações climáticas. Donald Trump já tinha anunciado a retirada dos EUA do acordo no seu primeiro mandato, uma medida revertida prontamente pela administração Biden em 2021. Agora, mais uma vez, Trump quebra o vínculo americano e volta a gerar preocupação.

“O Acordo de Paris”, disse Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, “continua a ser a melhor esperança da humanidade. Continuaremos a trabalhar com todas as nações que querem travar o aquecimento global”. Mas a indignação mais surpreendente veio do chefe da missão diplomática da China na Colômbia, Chu Jingyang, que se mostrou preocupado “pela retirada dos EUA”. “As alterações climáticas são um desafio comum a toda a humanidade. Nenhum país pode salvar-se por si só”, disse o representante do país mais poluidor do mundo, responsável por cerca de 30% das emissões globais de dióxido de carbono.

Trump tinha classificado o tratado como uma “fraude”, reforçando a sua máxima “drill, baby, drill”, fazendo referência à exploração de petróleo e de gás em território americano. “Vamos fazer baixar os preços, encher de novo as nossas reservas estratégicas até ao topo e exportar a energia americana para todo o mundo”, anunciou o recém-empossado Presidente. Com esta retirada, os EUA juntam-se a um leque de países composto pela Líbia, Iémen e Irão.

Além desta decisão, Trump gerou mais controvérsia ao assinar um decreto onde declara uma “emergência energética nacional”. Mais uma vez, esta medida pode representar uma contradição substancial. “Confrontado com o que considera ser uma escassez catastrófica de energia”, atira Simon Mundy no Financial Times, “o novo Presidente dos EUA travou a fundo numa das fontes de energia que mais cresce no país”. “A enxurrada de ordens executivas de Donald Trump na segunda-feira, em que anunciou uma emergência energética nacional e impôs uma proibição indefinida de novas aprovações para parques eólicos”, continua Mundy, “parece incoerente se assumirmos que a sua principal preocupação é verdadeiramente a segurança energética e a acessibilidade dos preços”. “Só faz sentido sob o prisma de uma guerra cultural em que – pelo menos aos olhos de Trump – os combustíveis fósseis estão associados a valores conservadores e as energias renováveis à esquerda”, concluiu.

O jornalista do Financial Times responsável por assuntos ambientais identifica mais uma contradição na abordagem de Trump aos assuntos energéticos, que se mostrou preocupado com o impacto ambiental dos projetos eólicos em terra e no mar sobre a vida selvagem, algo que “contrasta bastante com o silencio sobre o bem-estar das aves e dos mamíferos no Refúgio Nacional de Vida Selvagem no Alasca, que Trump declarou ontem aberto à exploração de petróleo e gás”. “Por um lado, o apoio ao investimento contínuo no setor [das energias renováveis] criará empregos, aumentará a segurança energética, reforçará a competitividade económica […) e ajudará o país na sua disputa estratégica com a China. Por outro lado, minar o investimento ecológico será benéfico para um grande número de apoiantes de Trump, que veem como parte de uma agenda de esquerda, e especialmente para os magnatas da indústria petrolífera que têm sido grandes doadores das campanhas dele e dos seus aliados”, concluiu Simon Mundy.

Posto isto, muito estará em jogo nestes próximos quatro anos, tanto para os Estados Unidos quanto para o mundo. O novo Presidente divide opiniões e as contradições, ou tensões, nas suas propostas (e decretos) fazem soar os alarmes. Ainda assim, o mandato começou agora e resta aguardar pelos resultados desta administração Trump 2.0.