Na vida política nacional instalou-se, ao longo das últimas décadas, uma deriva de contradição que consiste no esgrimir dos legados governativos do passado, sem que os protagonistas tenham a humildade de os avaliar e reconhecer que nem tudo do que foi feito correu bem, sobretudo se tivermos em conta os impactos na vida das pessoas, nas dinâmicas das comunidades e nos resultados obtidos. O legado é um valor supremo, dogmático, que não admite questionamento, interrogações ou desvios na sua defesa. Foi assim, em 2011 por parte de alguns no Partido Socialista, com a governação de José Sócrates; depois, em 2014, no Partido Social Democrata com a governação de Pedro Passos Coelho e agora, em 2025, de novo no PS em relação à governação de António Costa.
É este fenómeno de cepa torta que está presente na comoção de boa parte dos protagonistas políticos que contestaram as afirmações de Pedro Nuno Santos sobre a imigração, reconhecendo que nem tudo o que foi feito no governo PS correu bem. Entre a defesa intransigente de um legado sem boa tradução concreta, até na vida dos imigrantes, a defesa de posições ideológicas desfasadas da realidade e manifestas overdoses de permanência em bolhas dos corredores do poder sem nexo com a vida concreta, emergiram recorrentes e renovados fustigantes da avaliação crítica e da necessidade de mudar o quadro de acesso e de integração dos imigrantes.
A cepa torta reside na intransigência em admitir a crítica ao passado. O erro faz parte do processo de decisão e de execução. Não pode estar sujeito na vida laica ao peso e à cominação do pecado no plano religioso. A cegueira na defesa do legado e na rejeição liminar de qualquer avaliação crítica das opções, caminhos e resultados do passado é a cepa torta da política. Não gera ambiente para que se aprenda com os erros, melhore as soluções e se seja mais eficaz nos resultados. Foi assim com José Sócrates, depois da vinda da Troika, subscrita pelos que não queriam que se esboçassem críticas ou houvesse demarcação em relação ao sentido de parte da governação, em que participaram, volta a ser assim com o anterior governo de António Costa. O PSD é igual com o acervo da governação de Pedro Passos Coelho, entre a defesa intransigente da ida além da Troika e os esboços de demarcação desse registo mais liberal do que social-democrata.
Não reconhecer os erros é fazer parte da cepa torta, da incapacidade de evoluir para responder às necessidades, aos bloqueios e à ambição de melhores soluções para as pessoas, as comunidades e os países.
Como é possível não reconhecer como, antecipámos há muito, antes da concretização do erro, que acabar com o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), era uma opção desastrosa?
Como é possível verberar humanismo para os imigrantes quando temos situações de acolhimento que correspondem a quadros de habitação, de higiene e de integração piores do que os vividos pelos portugueses no século passado nos destinos de emigração?
Como é possível não compreender que o desequilíbrio da chegada em massa, ao ponto de gerar uma incapacidade de resposta dos serviços que tutelavam de cerca de 440 mil processos pendentes, produziu danos negativos na coesão das comunidades e nos padrões de acolhimento e integração com mínimos de decência?
Como é possível que, não tendo tido a capacidade de ver os sinais, de antecipar as tendências e de reagir com soluções, o posicionamento persista em mais do mesmo, numa intransigência só para defender as suas passagens pelo exercício do poder? Depois de terem gerado situações desumanas para os imigrantes, de ter gerado um mercado eleitoral sólido para os populismos, de terem destruído o que funcionava, só precisando de mais recursos, e de terem desestabilizado os pontos de equilíbrio das comunidades.
E sim, quem procura Portugal para viver “tem de perceber que há uma partilha de um modo de vida, uma cultura que deve ser respeitada”, chama-se contrato social, consagrado em direitos e deveres constitucionais que são para todos os que estão no território nacional. Um dos pilares que mais tem minado a coesão social, não tendo a ver com a imigração, é haver em comunidades quem se ache acima da lei, gerando impunidade e indignação que são pasto para os populismos e os sentimentos de injustiça. As regras individuais e comunitárias são para todos, sob pena de gerarmos situações insustentáveis, no limiar da rutura como as que foram atingidas, com impactos na normalidade da vida em comunidade e nas opções de gestão das autarquias locais. Não fazer nada, agarrado a um legado que não acolheu e não integrou com equilíbrio, não é solução. É a trágica cepa torta nacional, incapaz de reconhecer os erros a partir dos resultados e dos impactos. É, mais do que tempo, de reconhecer os erros e evoluir na proposta de melhoria, agora já com o constrangimento dos exageros registados e do que geraram. É campo minado, mas só precisa de que quem não fez melhor, deixe fazer. Podemos fazer pedagogia, mas, já que não podemos mudar o povo, resta-nos ajustar as políticas para ter melhores soluções. Não o fazer é do domínio da cepa torta, não progredir, estar sempre na mesma situação.
NOTAS FINAIS
GOVERNO E O DOMÍNIO DA GAROTICE. A posição do secretário-geral do PS sobre a imigração abriu condições para ajustes que consagrem melhores soluções, estáveis e eficazes, para o problema que temos, entre as necessidades e as disfunções das soluções de integração que temos. O governo, sem maioria parlamentar, em vez de aproveitar a abertura, preferiu capitalizar a mudança de posição do partido. Preferiu a politiquice do curto prazo a uma visão estratégica de futuro. Garotice!
A IMPLOSÃO CONCRETA DA NARRATIVA DO BE E DO CHEGA. Um deputado que alegadamente furta malas nos aeroportos e despedimentos de funcionários do partido em período de amamentação são tiros nos porta-aviões das narrativas de autoridade política do BE e do CHEGA. Podem disfarçar, mas haverá um antes e um depois disto.
DE CLIMÁXIMOS A CLIMÍNIMOS. Que tão intensos estiveram os ativistas em perturbar o quotidiano dos cidadãos e em danificar património público e privado que ficaram extenuados e exauridos de energia para contestar a anunciada saída dos Estados Unidos da América de Trump do Acordo de Paris. Um simples pio de contestação. Um gesto. Uma ação. Nada.