- Enviou-me, há dias, um amigo, que foi meu professor de Filosofia no sexto e sétimo anos, no Liceu de Faro, um vídeo de uma sessão do festival “Nuits de Champagne”, que ocorreu em Troyes, França, em outubro passado.
Nele, podemos ver e ouvir o extraordinário Jah Fakoly, cantor africano nascido na Costa do Marfim, a cantar “Plus rien ne m’étonne”.
Este artista é conhecido, não apenas pela sua música, mas, também, pelo intenso ativismo social e, especialmente, pelo programa que desenvolveu, tendo em vista o apoio à construção de escolas no seu país e em outros da costa ocidental de África, denominado “Um Concerto, uma Escola”.
O que me leva, contudo, aqui, a chamar a atenção dos leitores para a sua música é a letra atualíssima da canção que interpretou no referido festival – “Plus rien ne m’étonne” – acompanhado por mais 850 cantores, que formavam o impressionante coro que, com ele, a cantou. (https://www.youtube.com/watch?v=fFoThCFlD3c).
Dada a atualidade da letra, vou transcrevê-la, traduzida por mim do francês para português, mesmo que, assim, ela perca alguma da sua musicalidade original.
«Partilharam o mundo / Nada mais me surpreende /.
Se me deixares a Chechénia / Deixo-te a Arménia, / Se me deixares o Afeganistão / Deixo-te o Paquistão, / Se não deixares o Haiti / Eu levo-te para Bangui, / Se me ajudares a bombardear o Iraque / Eu arranjo-te o Curdistão / Se me deixares o urânio / Eu deixo-te o alumínio, / Se me deixarem ficar com os vossos recursos / Eu ajudo-vos a livrarem-se dos Talibãs, / Se me derem muito trigo / Eu lutarei a guerra ao vosso lado, / Se me deixarem extrair o vosso ouro / Eu ajudo-vos a expulsar o general.
Partilharam África sem nos consultar / Ficam surpreendidos por estarmos desunidos / Parte do império Mandingo foi para os Wolofs / Uma parte do império Mossi foi encontrada no Gana / Parte do Império Soussou passou a fazer parte do Império Mandingo / Parte do Império Mandingo encontrava-se entre os Mossi / Partilharam África sem nos consultar /
Não creio que seja possível ser mais claro na caracterização política do mundo atual.
Está tudo dito e, por isso, mais não acrescento.
- Seguidamente ao meu último texto sobre a temporada III de Borgen, veio a saber-se que o presidente dos EUA, já depois de ter tomado posse, telefonou à primeira ministra da Dinamarca, insistindo na sua vontade de adquirir a Gronelândia.
As razões invocadas para tal pretensão são de ordem estratégico-militares e, alegadamente, respeitam à segurança dos EUA.
Claro que todos sabemos, também, que nesse território autónomo e dependente do Reino da Dinamarca, ficam ricas reservas de metais raros, necessários à fabricação de baterias para aparelhagens de telecomunicação e de inteligência artificial e, mesmo, para os modernos automóveis elétricos.
Existem, também, na Gronelândia, reservas do, por todos cobiçado, petróleo, mesmo que poucos se atrevam a dizer, agora, que o amam; nisso, convenhamos, Trump é mais sincero.
Não necessito, todavia, de explicar em que é que esta estória escandinava se relaciona com a canção de Jah Fakoly: basta ouvir, de novo, a canção
Com franca curiosidade, aguardo para ver e ouvir como as pobres comentadoras e comentadores, que povoam as nossas TVs, nos vão explicar, agora, a atual exigência dos EUA e do seu presidente, tanto mais que o ultimato que fez se dirige, nem mais nem menos, do que a um país da Nato e da União Europeia.
Mais, em que é que tal reivindicação territorial difere, substancialmente, das razões do Kremlin para ocupar uma parte da Ucrânia e exigir que esta não possa integrar a Nato.
Ainda não os ouvi dissertar sobre isso, mas já me condoo com os exercícios de contorcionismo mental a que se vão obrigar, para, coerentemente, diferenciarem a razoabilidade das razões de fundo que os nossos “inimigos” e os “nossos aliados” invocam, num e no outro caso.
- Regressando às artes, vi, no passado fim-de-semana, o filme “Ainda estou aqui” do realizador brasileiro Walter Salles, protagonizado pela atriz Fernanda Torres, filha da grande Fernanda Montenegro, que intervém, também, na sua parte final.
Bendita a mãe que tal filha teve, bendita a filha pela arte que soube guardar da mãe.
Trata-se de um filme admirável, baseado num episódio real, sobre personagens reais e a propósito da, também real, cruel repressão ocorrida no Brasil nos anos da ditadura militar contra os que militavam pelo regresso à democracia ou, simplesmente, ajudavam as famílias dos presos mais pobres a sobreviver.
Nesses tempos de guerra-fria, em meados dos anos sessenta, início dos anos setenta do século passado, muitos países da América Latina tiveram de se sujeitar aos interesses estratégicos e de segurança do grande e poderoso vizinho do Norte, a mais antiga democracia ocidental.
A “operação Condor” foi o instrumento comum, que, inspirado e patrocinado por Henry Kissinger, serviu para proteger e compatibilizar os proveitos das plutocracias da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,Paraguai e Uruguai, submetendo-os, no entanto, aos mais preponderantes interesses económicos, estratégicos e de segurança dos EUA.
Para atingir esse objetivo, foram desencadeados, com a ajuda de serviços secretos do Estado padrinho, golpes militares que derrubaram governos eleitos democraticamente.
Em seu lugar, foram investidas no poder cruéis ditaduras militares, que se prestaram, no essencial, a harmonizar os interesses das plutocracias dos seus países com os dos EUA.
Que tal plano tenha acarretado muitos milhares de mortos, desaparecidos, presos e torturados, não importou: tratou-se apenas, como sempre, de danos colaterais.
Muito pior foi, de resto, o que aconteceu, de seguida, no Iraque e no Afeganistão e, posteriormente, na Síria e na Líbia, onde, já sem proxies,desfeita a União Soviética, os militares dos EUA puderam intervir, diretamente, na defesa dos interesses do seu país.
Como Sofia Mello Breyner, só nos resta dizer, depois de visionado o referido filme brasileiro: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.”