As coisas mudam… falta saber se para melhor


80 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, não conseguimos mais do que pôr uma fina camada de verniz civilizacional que abre fendas e se desfaz ao toque de finados de um qualquer bruto chamado Putin ou Trump.


Nasci em 1958 e as Nações Unidas já existiam há 13 anos.

Em 66 anos de vida convivi com a ONU e as instituições de Bretton Woods – o Banco Mundial e o FMI – e a NATO.

A CEE, agora União Europeia, fundada em 1957 – tratado de Roma – tem mais um ano do que eu.

Estas instituições que são a espinha dorsal do mundo de regras que regiam as relações internacionais, acompanharam toda a minha vida e portanto parecem-me imutáveis e perenes.

Imagino um ateniense do século V a.C., que tivesse nascido quando a liga de Delos já existia e para quem a possibilidade da guerra do Peloponeso fosse uma fantasia distante. E no entanto… o mundo em que nasceu estava à beira da extinção.

Da mesma forma, as alterações radicais do sistema internacional a que estamos a assistir, podem determinar nas próximas décadas, ou anos, o fim da prevalência do mundo ocidental no sistema económico internacional, o fim da NATO ou até a desagregação da União Europeia, que muitos temem e alguns desejam.

Aquilo que Oswald Spengler chamava em 1917 “a decadência do Ocidente”, é o sentimento difuso mas prevalecente, de que as alterações climáticas poderão estar a conduzir-nos a uma crise existencial, a emergência da AI pode conduzir a humanidade à subserviência perante uma inteligência superior, a ascensão imparável de blocos económicos concorrentes com o nosso, tudo confluiu para a redução da relevância relativa do mundo Ocidental, de década para década.

As novas referências de boa parte da humanidade são cada vez menos os valores que o Ocidente produziu e defende, o que conduz a que, por exemplo, uma boa parte do mundo observe, sem condenação ou até com indiferença, o ataque da Rússia à Ucrânia.

A perda de relevância do Ocidente e das instituições por si criadas, tem um enorme impacto no mundo, mas também sobre nós próprios. Corremos o risco sério de nos transformarmos naquilo que Adam Smith na “Riqueza das Nações” chamou de “estado estacionário”: a condição a que fica reduzido um país que já foi rico e parou de crescer.

Esses estados tornam-se socialmente regressivos, valorizando cada vez menos os rendimentos do trabalho; elites corruptas e oligárquicas exploram crescentemente o sistema político em seu favor, criando níveis de desigualdade cada vez maiores, estabelecendo um regime de capitalismo de compadrio; dá-se uma acentuada degenerescência das instituições que sustentam o estado democrático de direito, a nível interno, e do sistema de regras que regem a vida internacional.

Aquilo que durante décadas convencionamos chamar “o ocidente” e a que a parlança da esquerda designa por “norte global”, assenta em cinco pilares essenciais: uma economia de mercado, mais ou menos social; a existência de um estado de direito dotado de instituições fortes e consensuais; a existência de uma sociedade civil livre e informada; e, claro, um sistema de governo representativo assente em instituições democráticas; finalmente, um sistema de regras corporizadas no funcionamento comummente aceite de instituições internacionais, que regem as relações entre estados e blocos regionais.

Não poucos pensadores, desde há uma ou duas décadas, têm-nos vindo a explicar que este complexo de regras, instituições e formas de organização social, está a morrer.

A grande crise de 2008-2012, foi apenas um sintoma e não a causa de uma doença profunda que corrói o Ocidente. Não é que ter nascido na Europa ou na América do Norte, na segunda metade do século XX não fosse preferível a ter nascido em qualquer outra parte do mundo. O que acontece é que o poder real deste “ocidente” tem vindo a declinar em termos relativos face ao resto do mundo (Niall Ferguson, The West and he Rest), como a ascensão da China bem comprova.

Não tenho grandes dúvidas de que os ocidentais se tornaram extremamente complacentes consigo mesmos e com o mundo que os rodeia, tendo dedicado recursos que excedem a sua capacidade de financiamento – ou seja, a capacidade subjacente das suas economias – à criação de estados sociais extremamente generosos, de sistemas de saúde universal e gratuita, incompatíveis com o progressivo envelhecimento da população.

Ao mesmo tempo, sobretudo na Europa, confiamo-nos na existência de regras na vida internacional em detrimento da prossecução determinada de políticas de defesa colectiva. Chegamos ao ponto em que a Rússia, com um PIB de 3% do dos países da NATO, produz mais munições por ano que a Europa e os Estados Unidos em conjunto…

O que verificamos hoje é que em conjunto e em cada um dos seus elementos constituintes, o “ocidente” parece ter entrado num processo de degenerescência cujos limites e termo não descortinamos.

Na Europa, vemos a marcha que parece imparável da extrema-direita populista, cuja agenda nativista e nacionalista aponta para a tribalização. Nos Estados Unidos assistimos ao espectáculo deprimente de um Presidente eleito por uma maioria significativa dos americanos, ameaçar países aliados no seio da NATO (Canadá e Dinamarca e por via desta toda a União Europeia) com intervenções militares ou violentas sanções económicas se recusarem as “propostas irrecusáveis” que lhes faz. Da mesma forma, ameaça um país do seu hemisfério americano, o Panamá, com a ocupação militar de uma parte do território, como se estivéssemos de regresso ao tempo da política das canhoeiras.

Seria, em suma, o fim da NATO e do mundo de regras da política internacional que deu origem à Nações Unidas; seria o triunfo da “doutrina Putin” das relações internacionais: a lei do mais forte prevalecerá.

80 anos depois do fim da segunda guerra mundial, não conseguimos mais do que pôr uma fina camada de verniz civilizacional que abre fendas e se desfaz ao toque de finados de um qualquer bruto chamado Putin ou Trump.

Sobre as causas dessa degenerescência podem-se escrever livros e foram escritas dezenas ou centenas, mas a verdade é que o futuro não está escrito e que o futuro para que essa degenerescência aponta é apenas um dos muitos resultados possíveis se não fizermos nada.

Como já tenho escrito (por ex: a Europa no seu Labirinto, I , 25 de Novembro de 2024) a União Europeia tem os meios e os recursos para sustentar o seu lugar central no mundo que a sua posição geográfica e económica lhe permitem. É preciso é que o queira.

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do Manifesto por

uma Democracia de Qualidade

As coisas mudam… falta saber se para melhor


80 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, não conseguimos mais do que pôr uma fina camada de verniz civilizacional que abre fendas e se desfaz ao toque de finados de um qualquer bruto chamado Putin ou Trump.


Nasci em 1958 e as Nações Unidas já existiam há 13 anos.

Em 66 anos de vida convivi com a ONU e as instituições de Bretton Woods – o Banco Mundial e o FMI – e a NATO.

A CEE, agora União Europeia, fundada em 1957 – tratado de Roma – tem mais um ano do que eu.

Estas instituições que são a espinha dorsal do mundo de regras que regiam as relações internacionais, acompanharam toda a minha vida e portanto parecem-me imutáveis e perenes.

Imagino um ateniense do século V a.C., que tivesse nascido quando a liga de Delos já existia e para quem a possibilidade da guerra do Peloponeso fosse uma fantasia distante. E no entanto… o mundo em que nasceu estava à beira da extinção.

Da mesma forma, as alterações radicais do sistema internacional a que estamos a assistir, podem determinar nas próximas décadas, ou anos, o fim da prevalência do mundo ocidental no sistema económico internacional, o fim da NATO ou até a desagregação da União Europeia, que muitos temem e alguns desejam.

Aquilo que Oswald Spengler chamava em 1917 “a decadência do Ocidente”, é o sentimento difuso mas prevalecente, de que as alterações climáticas poderão estar a conduzir-nos a uma crise existencial, a emergência da AI pode conduzir a humanidade à subserviência perante uma inteligência superior, a ascensão imparável de blocos económicos concorrentes com o nosso, tudo confluiu para a redução da relevância relativa do mundo Ocidental, de década para década.

As novas referências de boa parte da humanidade são cada vez menos os valores que o Ocidente produziu e defende, o que conduz a que, por exemplo, uma boa parte do mundo observe, sem condenação ou até com indiferença, o ataque da Rússia à Ucrânia.

A perda de relevância do Ocidente e das instituições por si criadas, tem um enorme impacto no mundo, mas também sobre nós próprios. Corremos o risco sério de nos transformarmos naquilo que Adam Smith na “Riqueza das Nações” chamou de “estado estacionário”: a condição a que fica reduzido um país que já foi rico e parou de crescer.

Esses estados tornam-se socialmente regressivos, valorizando cada vez menos os rendimentos do trabalho; elites corruptas e oligárquicas exploram crescentemente o sistema político em seu favor, criando níveis de desigualdade cada vez maiores, estabelecendo um regime de capitalismo de compadrio; dá-se uma acentuada degenerescência das instituições que sustentam o estado democrático de direito, a nível interno, e do sistema de regras que regem a vida internacional.

Aquilo que durante décadas convencionamos chamar “o ocidente” e a que a parlança da esquerda designa por “norte global”, assenta em cinco pilares essenciais: uma economia de mercado, mais ou menos social; a existência de um estado de direito dotado de instituições fortes e consensuais; a existência de uma sociedade civil livre e informada; e, claro, um sistema de governo representativo assente em instituições democráticas; finalmente, um sistema de regras corporizadas no funcionamento comummente aceite de instituições internacionais, que regem as relações entre estados e blocos regionais.

Não poucos pensadores, desde há uma ou duas décadas, têm-nos vindo a explicar que este complexo de regras, instituições e formas de organização social, está a morrer.

A grande crise de 2008-2012, foi apenas um sintoma e não a causa de uma doença profunda que corrói o Ocidente. Não é que ter nascido na Europa ou na América do Norte, na segunda metade do século XX não fosse preferível a ter nascido em qualquer outra parte do mundo. O que acontece é que o poder real deste “ocidente” tem vindo a declinar em termos relativos face ao resto do mundo (Niall Ferguson, The West and he Rest), como a ascensão da China bem comprova.

Não tenho grandes dúvidas de que os ocidentais se tornaram extremamente complacentes consigo mesmos e com o mundo que os rodeia, tendo dedicado recursos que excedem a sua capacidade de financiamento – ou seja, a capacidade subjacente das suas economias – à criação de estados sociais extremamente generosos, de sistemas de saúde universal e gratuita, incompatíveis com o progressivo envelhecimento da população.

Ao mesmo tempo, sobretudo na Europa, confiamo-nos na existência de regras na vida internacional em detrimento da prossecução determinada de políticas de defesa colectiva. Chegamos ao ponto em que a Rússia, com um PIB de 3% do dos países da NATO, produz mais munições por ano que a Europa e os Estados Unidos em conjunto…

O que verificamos hoje é que em conjunto e em cada um dos seus elementos constituintes, o “ocidente” parece ter entrado num processo de degenerescência cujos limites e termo não descortinamos.

Na Europa, vemos a marcha que parece imparável da extrema-direita populista, cuja agenda nativista e nacionalista aponta para a tribalização. Nos Estados Unidos assistimos ao espectáculo deprimente de um Presidente eleito por uma maioria significativa dos americanos, ameaçar países aliados no seio da NATO (Canadá e Dinamarca e por via desta toda a União Europeia) com intervenções militares ou violentas sanções económicas se recusarem as “propostas irrecusáveis” que lhes faz. Da mesma forma, ameaça um país do seu hemisfério americano, o Panamá, com a ocupação militar de uma parte do território, como se estivéssemos de regresso ao tempo da política das canhoeiras.

Seria, em suma, o fim da NATO e do mundo de regras da política internacional que deu origem à Nações Unidas; seria o triunfo da “doutrina Putin” das relações internacionais: a lei do mais forte prevalecerá.

80 anos depois do fim da segunda guerra mundial, não conseguimos mais do que pôr uma fina camada de verniz civilizacional que abre fendas e se desfaz ao toque de finados de um qualquer bruto chamado Putin ou Trump.

Sobre as causas dessa degenerescência podem-se escrever livros e foram escritas dezenas ou centenas, mas a verdade é que o futuro não está escrito e que o futuro para que essa degenerescência aponta é apenas um dos muitos resultados possíveis se não fizermos nada.

Como já tenho escrito (por ex: a Europa no seu Labirinto, I , 25 de Novembro de 2024) a União Europeia tem os meios e os recursos para sustentar o seu lugar central no mundo que a sua posição geográfica e económica lhe permitem. É preciso é que o queira.

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do Manifesto por

uma Democracia de Qualidade