Nasci em 1958 e as Nações Unidas já existiam há 13 anos.
Em 66 anos de vida convivi com a ONU e as instituições de Bretton Woods – o Banco Mundial e o FMI – e a NATO.
A CEE, agora União Europeia, fundada em 1957 – tratado de Roma – tem mais um ano do que eu.
Estas instituições que são a espinha dorsal do mundo de regras que regiam as relações internacionais, acompanharam toda a minha vida e portanto parecem-me imutáveis e perenes.
Imagino um ateniense do século V a.C., que tivesse nascido quando a liga de Delos já existia e para quem a possibilidade da guerra do Peloponeso fosse uma fantasia distante. E no entanto… o mundo em que nasceu estava à beira da extinção.
Da mesma forma, as alterações radicais do sistema internacional a que estamos a assistir, podem determinar nas próximas décadas, ou anos, o fim da prevalência do mundo ocidental no sistema económico internacional, o fim da NATO ou até a desagregação da União Europeia, que muitos temem e alguns desejam.
Aquilo que Oswald Spengler chamava em 1917 “a decadência do Ocidente”, é o sentimento difuso mas prevalecente, de que as alterações climáticas poderão estar a conduzir-nos a uma crise existencial, a emergência da AI pode conduzir a humanidade à subserviência perante uma inteligência superior, a ascensão imparável de blocos económicos concorrentes com o nosso, tudo confluiu para a redução da relevância relativa do mundo Ocidental, de década para década.
As novas referências de boa parte da humanidade são cada vez menos os valores que o Ocidente produziu e defende, o que conduz a que, por exemplo, uma boa parte do mundo observe, sem condenação ou até com indiferença, o ataque da Rússia à Ucrânia.
A perda de relevância do Ocidente e das instituições por si criadas, tem um enorme impacto no mundo, mas também sobre nós próprios. Corremos o risco sério de nos transformarmos naquilo que Adam Smith na “Riqueza das Nações” chamou de “estado estacionário”: a condição a que fica reduzido um país que já foi rico e parou de crescer.
Esses estados tornam-se socialmente regressivos, valorizando cada vez menos os rendimentos do trabalho; elites corruptas e oligárquicas exploram crescentemente o sistema político em seu favor, criando níveis de desigualdade cada vez maiores, estabelecendo um regime de capitalismo de compadrio; dá-se uma acentuada degenerescência das instituições que sustentam o estado democrático de direito, a nível interno, e do sistema de regras que regem a vida internacional.
Aquilo que durante décadas convencionamos chamar “o ocidente” e a que a parlança da esquerda designa por “norte global”, assenta em cinco pilares essenciais: uma economia de mercado, mais ou menos social; a existência de um estado de direito dotado de instituições fortes e consensuais; a existência de uma sociedade civil livre e informada; e, claro, um sistema de governo representativo assente em instituições democráticas; finalmente, um sistema de regras corporizadas no funcionamento comummente aceite de instituições internacionais, que regem as relações entre estados e blocos regionais.
Não poucos pensadores, desde há uma ou duas décadas, têm-nos vindo a explicar que este complexo de regras, instituições e formas de organização social, está a morrer.
A grande crise de 2008-2012, foi apenas um sintoma e não a causa de uma doença profunda que corrói o Ocidente. Não é que ter nascido na Europa ou na América do Norte, na segunda metade do século XX não fosse preferível a ter nascido em qualquer outra parte do mundo. O que acontece é que o poder real deste “ocidente” tem vindo a declinar em termos relativos face ao resto do mundo (Niall Ferguson, The West and he Rest), como a ascensão da China bem comprova.
Não tenho grandes dúvidas de que os ocidentais se tornaram extremamente complacentes consigo mesmos e com o mundo que os rodeia, tendo dedicado recursos que excedem a sua capacidade de financiamento – ou seja, a capacidade subjacente das suas economias – à criação de estados sociais extremamente generosos, de sistemas de saúde universal e gratuita, incompatíveis com o progressivo envelhecimento da população.
Ao mesmo tempo, sobretudo na Europa, confiamo-nos na existência de regras na vida internacional em detrimento da prossecução determinada de políticas de defesa colectiva. Chegamos ao ponto em que a Rússia, com um PIB de 3% do dos países da NATO, produz mais munições por ano que a Europa e os Estados Unidos em conjunto…
O que verificamos hoje é que em conjunto e em cada um dos seus elementos constituintes, o “ocidente” parece ter entrado num processo de degenerescência cujos limites e termo não descortinamos.
Na Europa, vemos a marcha que parece imparável da extrema-direita populista, cuja agenda nativista e nacionalista aponta para a tribalização. Nos Estados Unidos assistimos ao espectáculo deprimente de um Presidente eleito por uma maioria significativa dos americanos, ameaçar países aliados no seio da NATO (Canadá e Dinamarca e por via desta toda a União Europeia) com intervenções militares ou violentas sanções económicas se recusarem as “propostas irrecusáveis” que lhes faz. Da mesma forma, ameaça um país do seu hemisfério americano, o Panamá, com a ocupação militar de uma parte do território, como se estivéssemos de regresso ao tempo da política das canhoeiras.
Seria, em suma, o fim da NATO e do mundo de regras da política internacional que deu origem à Nações Unidas; seria o triunfo da “doutrina Putin” das relações internacionais: a lei do mais forte prevalecerá.
80 anos depois do fim da segunda guerra mundial, não conseguimos mais do que pôr uma fina camada de verniz civilizacional que abre fendas e se desfaz ao toque de finados de um qualquer bruto chamado Putin ou Trump.
Sobre as causas dessa degenerescência podem-se escrever livros e foram escritas dezenas ou centenas, mas a verdade é que o futuro não está escrito e que o futuro para que essa degenerescência aponta é apenas um dos muitos resultados possíveis se não fizermos nada.
Como já tenho escrito (por ex: a Europa no seu Labirinto, I , 25 de Novembro de 2024) a União Europeia tem os meios e os recursos para sustentar o seu lugar central no mundo que a sua posição geográfica e económica lhe permitem. É preciso é que o queira.
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do Manifesto por
uma Democracia de Qualidade