Trump, a era dourada


A tomada de posse de Trump foi minuciosamente coreografada para exibir, detalhadamente, a tomada do poder. Dir-me-ão: não são assim todas as tomadas de posse? Desta vez foi diferente.


Por força da meteorologia perdeu-se a grandeza arquitectónica com que Washington foi desenhada, quando foi procurado um lugar de destaque para a capital da jovem nação. Não querendo perder na comparação com as capitais europeias tal como existiam no final do século XVIII (a novel capital teve direito a um arquitecto francês, Pierre Charles L’Enfant, que a desenhou em 1791). O acantonamento de Trump num pavilhão desportivo (Capital One Arena, com 20 000 lugares) forneceu as condições ideais para uma cerimónia intimista, desenhada a pensar na televisão e no personagem televisivo que deu a conhecer Trump aos americanos. The Donald não desiludiu: auto-glorificou-se, explicou o papel ancilar de Deus na vitória eleitoral, foi aclamado, dialogou com os apoiantes vindos dos quatro cantos dos EUA, elogiou os por si escolhidos para integrarem o Governo, percorreu, várias vezes, todas as etapas de um discurso motivacional, legislou em directo e distribuiu as canetas com que assinou as ordens executivas, emprestando-lhes o mesmo poder de atracção que em tempos de Verão do século passado se obtinha com o lançamento de bolas de futebol a partir de avionetas voando sobre as praias domingueiras.

A cenografia apostou nas cores da bandeira nacional, azul e vermelho, não esquecendo o simbolismo partidário, respectivamente, Democrata e Republicano, com o vermelho a ser a cor dominante. No entanto Trump tem cor própria: de Mar a Lago ao apartamento de Nova Iorque, passando pela redecorada Sala Oval na Casa Branca, domina o dourado. Cor difícil, ao ponto de Michel Pastoureau, o teórico da cor, ter deixado o amarelo para o fim do seu quinteto sobre os poderes e os mistérios das cores. Explicando a ambivalência da cor amarela e os favores e desfavores que ao longo dos séculos foi colhendo escreveu: “La couleur dorée a absorbé les symboles positifs: le soleil, la lumière, la chaleur et donc symboliquement la vie, l’énergie, la joie et la puissance. L’or est vu comme une couleur brillante, luisante, éclairante et qui réchauffe. Le jaune, alors dépossédé de ces côtés positifs, est devenu une couleur éteinte, mate, triste, rappelant le déclin, l’automne, la maladie. Il a été aussi transformé en symbole de trahison, de tromperie, de mensonge.” O dourado nasce do amarelo (a cor da traição, do engano da mentira) e autonomizou-se, quiçá depressa demais, procurando numa cor que pede ao ouro uma superioridade que não encontra em quem a reivindica. Trump só poderia ser dourado.

O anúncio, feito por Trump, durante a tomada de posse, de uma nova era dourada, tem mais a ver com o pastiche da legitimação novo-rica, presente na decoração dos interiores das suas moradas, onde tudo é dourado (como na saudosa loja dos móveis Kol, à Columbano Bordalo Pinheiro, em Lisboa) e não com a periodificação da história da humanidade (confundida com a Grécia, mas passível de generalização) cantada por Hesíodo, dividida em cinco idades, em sucessões metálicas, de crescente dificuldade e menor conforto, passando do ouro ao ferro. A idade de ouro permitia o convívio livre entre os deuses e os mortais. Como se sabe, a televisão possibilita alguma aproximação entre deuses e mortais. Com a ajuda de Trump (que já cunha cibermoeda), Musk, Zuckerberg e restantes cibercratas estão activamente a trabalhar para fazer chover ouro.

Trump, a era dourada


A tomada de posse de Trump foi minuciosamente coreografada para exibir, detalhadamente, a tomada do poder. Dir-me-ão: não são assim todas as tomadas de posse? Desta vez foi diferente.


Por força da meteorologia perdeu-se a grandeza arquitectónica com que Washington foi desenhada, quando foi procurado um lugar de destaque para a capital da jovem nação. Não querendo perder na comparação com as capitais europeias tal como existiam no final do século XVIII (a novel capital teve direito a um arquitecto francês, Pierre Charles L’Enfant, que a desenhou em 1791). O acantonamento de Trump num pavilhão desportivo (Capital One Arena, com 20 000 lugares) forneceu as condições ideais para uma cerimónia intimista, desenhada a pensar na televisão e no personagem televisivo que deu a conhecer Trump aos americanos. The Donald não desiludiu: auto-glorificou-se, explicou o papel ancilar de Deus na vitória eleitoral, foi aclamado, dialogou com os apoiantes vindos dos quatro cantos dos EUA, elogiou os por si escolhidos para integrarem o Governo, percorreu, várias vezes, todas as etapas de um discurso motivacional, legislou em directo e distribuiu as canetas com que assinou as ordens executivas, emprestando-lhes o mesmo poder de atracção que em tempos de Verão do século passado se obtinha com o lançamento de bolas de futebol a partir de avionetas voando sobre as praias domingueiras.

A cenografia apostou nas cores da bandeira nacional, azul e vermelho, não esquecendo o simbolismo partidário, respectivamente, Democrata e Republicano, com o vermelho a ser a cor dominante. No entanto Trump tem cor própria: de Mar a Lago ao apartamento de Nova Iorque, passando pela redecorada Sala Oval na Casa Branca, domina o dourado. Cor difícil, ao ponto de Michel Pastoureau, o teórico da cor, ter deixado o amarelo para o fim do seu quinteto sobre os poderes e os mistérios das cores. Explicando a ambivalência da cor amarela e os favores e desfavores que ao longo dos séculos foi colhendo escreveu: “La couleur dorée a absorbé les symboles positifs: le soleil, la lumière, la chaleur et donc symboliquement la vie, l’énergie, la joie et la puissance. L’or est vu comme une couleur brillante, luisante, éclairante et qui réchauffe. Le jaune, alors dépossédé de ces côtés positifs, est devenu une couleur éteinte, mate, triste, rappelant le déclin, l’automne, la maladie. Il a été aussi transformé en symbole de trahison, de tromperie, de mensonge.” O dourado nasce do amarelo (a cor da traição, do engano da mentira) e autonomizou-se, quiçá depressa demais, procurando numa cor que pede ao ouro uma superioridade que não encontra em quem a reivindica. Trump só poderia ser dourado.

O anúncio, feito por Trump, durante a tomada de posse, de uma nova era dourada, tem mais a ver com o pastiche da legitimação novo-rica, presente na decoração dos interiores das suas moradas, onde tudo é dourado (como na saudosa loja dos móveis Kol, à Columbano Bordalo Pinheiro, em Lisboa) e não com a periodificação da história da humanidade (confundida com a Grécia, mas passível de generalização) cantada por Hesíodo, dividida em cinco idades, em sucessões metálicas, de crescente dificuldade e menor conforto, passando do ouro ao ferro. A idade de ouro permitia o convívio livre entre os deuses e os mortais. Como se sabe, a televisão possibilita alguma aproximação entre deuses e mortais. Com a ajuda de Trump (que já cunha cibermoeda), Musk, Zuckerberg e restantes cibercratas estão activamente a trabalhar para fazer chover ouro.