Sangue, sofrimento, lágrimas e suor. O legado de um gigante que salvou o Ocidente

Sangue, sofrimento, lágrimas e suor. O legado de um gigante que salvou o Ocidente


Winston Churchill faleceu há sessenta anos, mas o seu legado desafia o tempo. Num período em que a Europa está em crise, a obra do estadista continua a servir de inspiração para vários líderes mundiais.


Cumpre-se, na sexta-feira, o sexagésimo aniversário da morte de Winston Churchill. O estadista, nascido na aristocracia britânica, acabaria por falecer aos noventa e um anos após décadas de complicações médicas. O nono, e último, Acidente Vascular Cerebral sofrido nove dias antes da data de falecimento acabou por se revelar fatal. Naquela manhã de domingo, em Londres, pereceu uma das figuras do século XX, mas nascia um mito. A personagem icónica no combate aos autoritarismos, numa época em que em que a civilização estava à beira do abismo, continua presente e o seu legado é incomensurável.


Ao longo do tempo, a obra de Churchill tem sido analisada e revisitada de forma exaustiva, dando aso a interpretações que de consensual têm pouco. É aclamado por uns e vilificado por outros – ao ponto de lhe ser atribuída a responsabilidade pela II Guerra Mundial -, mas a sua importância histórica ao leme das tropas de sua Majestade é inquestionável. Churchill foi, diz o historiador britânico Niall Ferguson, “o salvador da civilização ocidental”.
Churchill nasceu para mudar o mundo, assim acreditava o próprio. E que melhor forma de o fazer do que alistar-se no exército, deixando para trás um percurso académico que se adivinhava brilhante? É hoje sabido que o Bulldog britânico, como o batizaram os russos, aliou a coragem à capacidade intelectual, duas vertentes que, de forma simbiótica, moldaram tanto a sua vida quanto a obra que deixou, mesmo nunca frequentando o ambiente universitário. Paul Johnson, historiador e jornalista britânico que privou com Churchill, acredita que tal decisão o possa ter ajudado, porque “nunca aprendeu nenhum dos maus hábitos intelectuais que se adquirem na universidade, o que explica a extraordinária frescura com que abordava todo o tipo de coisas, especialmente a literatura inglesa”.

Homem de palavras “Sempre ganhei a vida”, disse Churchill por ocasião do seu octogésimo aniversário, “com a minha pena e a minha língua”. E com razão. Um comunicador por excelência, capaz de galvanizar multidões com eloquência durante uma guerra contra o brutal inimigo e de deleitar os mais ávidos leitores através de uma prosa elegante e carregada de significado. “Winston fala como escreve”, notou Charles Wilson, médico do primeiro-ministro britânico, nas suas memórias dedicadas ao tempo em que acompanhou o estadista. “Winston delicia-se com a sonoridade dos seus adjetivos”, continua Wilson, “gosta de usar quatro ou cinco palavras com o mesmo significado, como um velho que mostra as suas orquídeas, não para as exibir, mas porque as adora”.


O domínio das palavras, tanto escritas como faladas, valeu-lhe o Prémio Nobel da Literatura em 1953. “Pela sua maestria na descrição histórica e biográfica, bem como pela sua brilhante oratória na defesa de valores humanos elevados”, Churchill entrou para o Hall of Fame literário.
Estima-se que tenha escrito de oito a dez milhões de palavras, impressas em livros ou páginas de jornal, e proferido, contando apenas com os discursos, em torno de seis milhões. É por isto que o seu legado é tão vasto e transcendente. Winston Churchill produziu textos e deu discursos que continuam a ecoar no nosso ecossistema político, e a sua obra brinda-nos com lições históricas que são aplicáveis na atualidade.

Lutar pela paz Com Adolf Hitler cimentado no poder e determinado a escalar uma montanha para atingir o seu Lebensraum (espaço vital), a ameaça era evidente. Apesar do prenúncio de guerra, o Reino Unido mantinha-se convicto na sua capacidade de defesa, não reagindo à forte militarização da Alemanha nazi, embarcando numa lógica de apaziguamento que culminou em 1938. Nesse ano, em março, Hitler já tinha anexado a Áustria e ameaçado constantemente a região dos Sudetas, na Checoslováquia. Os sinais não podiam ser mais claros, mas tanto os britânicos, liderados por Neville Chamberlain, quanto os franceses, a mando de Édouard Daladier, queriam evitar a guerra a todo o custo, chegando a sugerir concessões de território para acalmar o líder do III Reich. Em setembro desse mesmo ano, Chamberlain e Daladier assinaram o famoso acordo de Munique, uma carta branca a Hitler que colocou em marcha todos os acontecimentos que são conhecidos, a começar pela invasão da Polónia em 1939.


É por esta inação britânica, especialmente entre 1932 e 1938, que Churchill acabaria por publicar um volume intitulado While England Slept (Enquanto a Inglaterra dormia), onde critica duramente a abordagem a uma ameaça como Hitler e foca o seu discurso numa lógica realista de paz pela força. “Sempre defendi”, dizia Churchill, “que as guerras e outras contendas devem ser combatidas com força e determinação até à vitória esmagadora, oferecendo depois a mão da amizade aos vencidos. Assim, estive sempre contra os pacifistas durante a contenda, e contra os jingoes [nacionalistas exacerbados] no seu final”.


“Não tenho nada a oferecer além de sangue, sofrimento, lágrimas e suor”, garantiu Churchill ao chegar pela primeira vez ao executivo britânico, em maio de 1940. Uma frase premonitória do esforço de guerra que se adivinhava e que ainda hoje é utilizada em momentos de dificuldade. Ainda assim, a sua inabalável resistência contra a Alemanha nazi não aconteceu, naturalmente, sem momentos de dúvida. Aquando do bombardeamento de várias cidades alemãs, particularmente a cidade de Dresden, Churchill expressou o conflito moral em que se envolveram os aliados: “Somos como os animais? Será que estamos a levar as coisas longe demais?”.


Winston Churchill possuía, acima de tudo, um profundo conhecimento da história. Assim, a sua afirmação no final da II Guerra Mundial, onde diz que “Nada é mais caro, nada é mais estéril do que a vingança”, não é surpreendente, naquele que foi um exercício relativamente simples de análise ao que acontecera há sensivelmente trinta anos no Tratado de Versalhes. Talvez, sem as reparações de guerra onerosas para a Alemanha em 1918, o século XX poderia ter seguido um rumo diferente.
Por isto, Churchill era um realista e pragmático sem perder a chama liberal e idealista, focando sempre a sua ideia de paz no princípio da segurança coletiva, à imagem da extinta Liga das Nações e futura Organização das Nações Unidas. “Se nesta conjuntura continuo na vida pública”, dizia Churchill em outubro de 1951, quando iniciou a sua segunda passagem pelo número 10 de Downing Street, “é porque, com ou sem razão, acredito sinceramente que posso ser capaz de dar uma importante contribuição à prevenção de uma Terceira Guerra Mundial ena consolidação dos acordos para uma paz duradoura que os povos de todas as raças e em todos os países tão fervorosamente desejam”. O idealismo estava bem patente nesta versão mais madura de Churchill, o que não lhe toldou a capacidade analítica para entender que o mundo estaria a entrar noutro tipo de conflito, desta feita com os outrora aliados da União Soviética.

Admiração dos contemporâneos O resumo do legado de Churchill é mais preciso quando descrito pelos seus contemporâneos. Dwight D. Eisenhower, Comandante Supremo da Força Expedicionária Aliada na Europa, General responsável pela operação Overlord, na Normandia, e posteriormente Presidente dos EUA, disse: “Nos próximos anos, haverá uma imensidão de palavras que esforçadamente tentarão interpretar os motivos, descrever as realizações e exaltar as virtudes de Winston Churchill – soldado, estadista e cidadão que dois grandes países se orgulharam de reivindicar como seu. Entre todas as coisas que serão escritas ou faladas, ressoará por todos os séculos um incontestável estribilho: Eis aqui o campeão da liberdade”. Também o primeiro-ministro australiano, Robert Menzies, apresentou uma descrição semelhante e que parece ser consensual ao analisar a história de forma rigorosa: “Foi por ser um grande ser humano que, nos nossos dias mais negros, acendeu as luzes da esperança em tantos lares e libertou tantas das amarras do desespero. Não houve ninguém como ele nas nossas vidas (…) Houve, no decurso da história de que há registo, alguns homens poderosos que envolveram o mundo em trevas. Winston Churchill, pelo contrário, foi uma fonte de luz e esperança”.


Posto isto, o legado de Churchill continua vivo, principalmente num momento em que a Europa atravessa momentos de crise. Numa vida de altos e baixos, sucessos e desaires, Winston Churchill galvanizou populações como ninguém e levou a democracia liberal à sua popularidade máxima. O icónico primeiro-ministro tinha como grande objetivo livrar as gerações futuras do flagelo da guerra e a sua ação contra as ameaças autoritárias é considerada como um balão de oxigénio para a civilização ocidental.