Foram seis os discursos na cerimónia de abertura do ano judicial, no Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), na passada segunda-feira, com quatro estreias (na verdade, três e meia, pois José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, já ali tinha falado, mas na qualidade de ministro da Justiça). Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, esteve na cerimónia pela sétima e penúltima vez, enquanto a bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, fez dupla, depois de, em 2023, logo a seguir a ter tomado posse, ali ter comparecido. Em 2024, a abertura foi desmarcada devido às eleições legislativas antecipadas.
Verdadeiros estreantes foram Rita Alarcão Júdice, ministra da Justiça desde o início de abril do ano passado; João Cura Mariano, eleito presidente do STJ e, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura, há cerca de sete meses; e Amadeu Guerra, que tomou posse como procurador-geral da República em meados de outubro passado. Na ‘plateia’ também se viam caras novas, ou, pelo menos, sentadas em novos lugares, pois o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal de Contas também têm presidentes empossados recentemente: Jorge Aragão Seia e Filipa Urbano Calvão, respetivamente.
Foi, aliás, esta mudança de cadeiras que o Presidente da República destacou na sua intervenção, onde apelou à convergência dos ‘agentes’ judiciários e políticos para uma reforma necessária e urgente na Justiça.
«Que o novo ciclo se abriu, parece indiscutível, que essa oportunidade merece ser aproveitada, também, que o tempo foge e convida a que Assembleia da República, Governo e protagonistas judiciários não desperdicem esse tempo, corresponde a um imperativo nacional. Se assim for, ganham todos os intervenientes e os portugueses», disse Marcelo Rebelo de Sousa.
Para o chefe do Estado, estas mudanças de liderança constituem uma oportunidade «renovada» e «única», para, no domínio da Justiça, escolher «mais passado ou mais futuro».
Justiça Summit?
O presidente da Assembleia da República também pôs a tónica do seu discurso na necessidade e urgência de uma reforma na Justiça, um tema que, como uma lengalenga, se repete de ano para ano, nestas cerimónias.
Aguiar Branco chegou mesmo a dizer que a reforma da Justiça «é uma promessa política mais antiga do que o novo aeroporto de Lisboa» e que, no ano passado, o projeto do aeroporto já deu alguns passos, pelo que espera que «em 2025, a reforma da Justiça também possa descolar».
E parece não querer perder tempo: «Se o problema é dar o primeiro passo, permitam-me que seja eu a fazê-lo», disse o presidente da AR, antes de anunciar uma «reunião de trabalho» para fevereiro, na Sala do Senado, no Parlamento. «Poderíamos chamar-lhe muitas coisas. Conferência. Debate. Estados gerais. Justice Summit», acrescentou, manifestando o seu desejo de que, nessa reunião, se encontrem «os pontos de convergência» e se elaborem dez propostas simples que possam «servir de base para uma revolução cultural na Justiça».
O clima entre as partes, este ano esteve ao rubro. Quem parece ter sido apanhada de surpresa com a convocatória de Aguiar-Branco foi a ministra da Justiça. Rita Júdice não estava a par dos planos do presidente da AR. «A ministra da Justiça não foi informada previamente de nenhuma reunião combinada com o senhor presidente do STJ, nem foi convidada a estar presente em tal reunião de trabalho anunciada pelo senhor presidente da Assembleia da República. Se calhar, a ideia é que o Governo não esteja presente em tal reunião», afirmou fonte oficial do Ministério.
A ausencia de Alcinda Cruz
No entanto, o discurso da ministra não fugiu à necessidade de mudanças no sistema, mas sublinhou que a tão falada reforma não se faz com «anúncios de grandiosos ‘planos estratégicos’», mas sim a «resolver os problemas um a um, mesmo que não sejam imediatamente percetíveis para o cidadão».
Nada melhor do que trazer ao palco a fria realidade. Foi, aliás, com o foco num episódio específico que começou a sua intervenção. «Há quatro dias, pouco depois da meia-noite, uma mulher de 46 anos foi morta pelo marido, em sua casa, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos. Foi degolada e ferida na barriga a golpes de faca e de tesoura. Chamava-se Alcinda Cruz. Enquanto isso, alguns dos presentes preparavam a mais importante cerimónia do ano judicial. Aqui estamos. O que temos a dizer aos filhos de Alcinda Cruz?», questionou Rita Júdice, que lembrou que a vítima já tinha apresentado uma queixa de violência doméstica em 2022, que depois foi arquivada.
«Alcinda Cruz é a grande ausência, e o grande silêncio, nesta sala e nesta cerimónia», declarou, defendendo que as vítimas devem ocupar um lugar cimeiro do sistema judicial e que não se refere apenas à violência doméstica.
A ministra sublinhou que «também muitas vítimas de crimes económicos e financeiros ficam com as vidas desfeitas. Também o Estado, e, por conseguinte, todos nós, cidadãos que pagam impostos, somos vítimas colaterais de tais crimes». De seguida, aproveitou para anunciar que este mês ficará concluído um projeto de reformulação do mecanismo de confisco de bens obtidos através de crimes de corrupção.
Fez também uma nota sobre a «vigília silenciosa» dos oficiais de Justiça, que ocorria àquela hora à porta do Supremo, sublinhando que estes profissionais «já tiveram provas da determinação e da boa-fé do Governo em resolver os problemas da classe». «Os funcionários judiciais sabem que têm na ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os Tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova», garantiu.
Disputa pelo controlo dos inquéritos
A questão dos funcionários judiciais também mereceu destaque do novo procurador-geral da República (PGR). Amadeu Guerra, que assumiu o cargo há três meses, teve uma estreia repleta de duras críticas e recados ao Governo, a começar pela ‘cobrança’ de Fundos Comunitários para garantir a autonomia financeira da Procuradoria.
A Procuradoria-Geral da República, lamentou Amadeu Guerra, «não obteve ganhos significativos ao nível das tecnologias e sistemas de informação, dos quais está carenciada, não dispondo, sequer, de verba para assegurar a interoperabilidade dos seus sistemas com o CITIUS», o sistema informático dos tribunais. «As verbas disponíveis foram concentradas, tanto quanto se sabe, no Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) e na Direção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ)», entidades que estão na dependência do Ministério da Justiça.
O PGR acusou o IGFEJ de não ter demonstrado disponibilidade para resolver o problema do tratamento de dados dos inquéritos (que desde 2023 estão no CITIUS e, portanto, sob a alçada do IGFEJ, dependente do Governo) e interpelou diretamente a ministra sobre esta matéria: «Espera-se que o Governo garanta que são os responsáveis dos tratamentos (o CSM e a PGR) que decidem onde são armazenados os dados, quem assegura o direito de informação, acesso e correção dos dados dos cidadãos». Isto depois de relatar que o IGFEJ, tutelado pelo Ministério da Justiça, «tem criado dificuldades» e «não tem demonstrado disponibilidade para integrar, no sistema CITIUS, qualquer aplicação vocacionada para o inquérito», nomeadamente «uma aplicação informática capaz de colmatar essas limitações», que foi desenvolvida pela PGR.
«Não nos podemos conformar com a situação atual e queremos que os inquéritos do DCIAP e do DIAP – com informação sensível e mediática – estejam sob o nosso controlo e não sob o controlo do IGFEJ, entidade dependente do Ministério da Justiça. É uma questão de princípio e não implica qualquer desconfiança concreta em relação às pessoas que ocupam cargos no Ministério da Justiça ou no IGFEJ», avisou. Para o líder do Ministério Público, a situação constitui uma «violação de princípios basilares e estruturantes do Estado de Direito Democrático».
Em resposta ao Nascer do SOL, o Ministério da Justiça defendeu que «não deve haver dogmas nesta matéria», mas que «é preciso saber ao certo de que se está a falar – da posse ou da gestão da infraestrutura, dos dados, da segurança, do segredo de Justiça, da armazenagem dos processos, de programas, ou outros aspetos?». E lembrou que também é uma entidade do Ministério a Justiça quem armazena os processos em papel de todos os tribunais e que «nunca isso criou qualquer desconfiança».
Para a tutela, a posse ou gestão de uma infraestrutura informática não pode ser associada a qualquer ameaça à independência dos tribunais.
«O IGFEJ não controla os inquéritos criminais, o que faz é disponibilizar a plataforma que permite realizar a tramitação eletrónica dos processos judiciais e dos inquéritos nos processos penais. Não se encontra posta em causa, com a solução atualmente vigente, a segurança dos dados», garantiu a ministra, ao Diário de Notícias, depois da sessão solene no STJ.
«Não foram tomadas medidas, nem serão até estarem estudados e clarificados os seus fundamentos», reforçou ao Nascer do SOL fonte do Ministério.
Amadeu Guerra também não esqueceu o protesto no exterior do tribunal: «O maior constrangimento com que se depara a administração da Justiça é – neste momento – a carência de oficiais de Justiça, a falta de motivação destes, bem como a não aprovação e publicação de um Estatuto dos Oficiais de Justiça que contribua para melhorar o seu estatuto profissional», sublinhou. E nem o concurso, a decorrer, para a entrada de 750 oficiais de Justiça é suficiente para resolver a carência destes profissionais, sublinhou. Segundo as suas contas, irão continuar a faltar 81 profissionais na Procuradoria-Geral Regional de Coimbra, 123 nas procuradorias-gerais regionais de Évora e Lisboa e 155 na do Porto.
A terminar, numa nota mais positiva, o PGR anunciou que a reformulação do mecanismo de recuperação de ativos está em marcha. «Todos os magistrados do Ministério Público interiorizam a indispensabilidade de realizar uma investigação patrimonial e financeira tendente a confiscar, aos criminosos, as vantagens que obtiveram com a prática do crime. Só deste modo conseguiremos intervir, eficazmente, numa das principais (senão a principal) causas da corrupção e crimes conexos», disse, referindo que esta «nova cultura de recuperação de ativos» obriga a uma reflexão do Gabinete de Administração de Bens (GAB) – que funciona na tutela do IGFEJ) e do Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA), da alçada da Polícia Judiciária.
Amadeu Guerra informou ainda que já falou com Luís Neves, diretor da PJ, que «se mostrou disponível e entusiasmado». O procurador defendeu também que os «bens recuperados devem ser vendidos mais rapidamente, evitando que se degradem e percam valor, como acontece com os automóveis que permanecem anos a fio em armazéns».
Lição de Gandalf
Num remake de ‘amor em tempos de cólera’ que remete para os processos mais mediáticos que queimaram a Justiça em lume posto, um dos discursos mais críticos foi o do ‘dono’ da casa, o presidente do STJ, que usou palavras como «inação» e «inércia» para classificar tudo o que não se fez sobre a tão falada e pedida reforma da Justiça, embora tenha destacado, por outro lado, a disponibilidade da ministra da Justiça para ouvir e debater propostas de soluções.
A queixa pareceu mais dirigida à própria Assembleia da República. Para o juiz conselheiro, na Justiça está-se, «escusadamente, numa corrida contra o tempo». «Se o tempo da Justiça é muitas vezes acusado de se caracterizar por uma lentidão exasperante, o que dizer do tempo da feitura das leis», questionou.
João Cura Mariano insistiu na urgência de repensar os procedimentos legislativos governamentais e parlamentares, para que, «sem prescindir da necessária reflexão e discussão e sem diminuição da qualidade do resultado», as leis consigam acompanhar as constantes alterações das realidades que visam regular. E assim, como Amadeu Guerra também já tinha feito em relação à Procuradoria, também o presidente do Supremo apontou o dedo à falta de autonomia financeira dos tribunais, «tantas vezes prometida e jurada».
A persistência dos problemas aos quais tinha colocado uma ‘pulseira vermelha’ há sete meses, suscita ao juiz «inquietantes interrogações»: «Como é possível tamanha inércia política? Como é possível este desinteresse pelas condições de exercício da função judicial? Como é possível tudo isto acontecer, ou melhor, nada acontecer?».
A propósito, lembrou Gandalf, personagem do Senhor do Anéis, que, numa passagem desta obra de Tolkien, terá dito: «Não nos é dado escolher o tempo em que vivemos, mas apenas o que fazer com os tempos em que nos foi dado viver».
O ataque aos advogados
Também as palavras da bastonária da Ordem dos Advogados (OA) foram duras, em especial no que diz respeito as alterações legislativas recentes que afetaram os estatutos da OA. «Não podemos deixar hoje de lembrar o ataque que foi feito a esta liberdade da profissão, no último ano, quando se impôs a esta classe uma alteração do seu estatuto profissional que, entre outras alterações, obrigou à criação de um Conselho de Supervisão presidido por um não advogado e abriu a prática de atos próprios da advocacia a não advogados, fazendo perigar o próprio estado de direito democrático», afirmou, numa intervenção muito virada para a sua classe. Esta pode, aliás, ser a última vez de Fernanda de Almeida Pinheiro como oradora, pois, em março, está confirmada a realização de eleições antecipadas na Ordem, em março.