A segurança na aviação comercial assenta numa atitude preventiva que tem em conta o homem, a máquina e o meio ambiente. Contudo, há casos em que fatores externos podem colocar em risco a segurança de voo, como é o caso do aparecimento de gelo, o in-flight icing, e o embate em aves, considerado na linguagem aeronáutica como bird strike.
Apesar de os aviões estarem equipados com radares meteorológicos, nem sempre é possível fugir de um ambiente hostil causado por elementos da natureza. Há fatores meteorológicos e aerodinâmicos que contribuem para a formação de gelo. Os mais importantes são: presença de água em estado líquido, temperatura, tamanho das gotas de água em suspensão e tamanho e velocidade do avião. Nos mapas da previsão meteorológica e nas mensagens enviadas pela torre aos pilotos, a formação de gelo é classificada segundo a quantidade de gelo formada na unidade de tempo. Tendo em conta esse critério, a formação de gelo pode ser leve, moderada ou forte.
O gelo acumulado nas superfícies expostas do avião faz aumentar o seu peso, aumenta a resistência ao avanço e diminui a sustentação da aeronave. Esses fatores levam ao aumento do consumo de combustível e, consequentemente, a uma menor autonomia. Importa salientar que componentes ou superfícies mais estreitas acumulam gelo mais facilmente. Além disso, quando uma aeronave penetra numa área sujeita à formação de gelo, alguns equipamentos podem ser afetados, caso do sistema de carburação, verifica-se uma quebra no rendimento do motor e, consequentemente, da potência, das antenas, o gelo acumulado dificulta as comunicações e dos tubos Pitot, o indicador de velocidade vertical, o altímetro e o velocímetro deixam de funcionar. Foi precisamente essa falha, associada ao facto de o piloto estar a descansar e do co-piloto não se ter apercebido da anomalia, que levou o voo da Air France a mergulhar no Atlântico, em 2009, quando fazia a ligação entre o Rio de Janeiro e Paris, causando a morte às 228 pessoas que estavam a bordo. Nos motores a hélice, o gelo acumulado retira eficiência às pás das hélices e reduz o rendimento da aeronave.
Um caso sério
O comandante Armindo Martins foi piloto e instrutor na Força Aérea, passou depois pela LAR e integrou o quadro de pilotos da TAP até 2021, onde foi também instrutor e verificador e coordenador do CRM. Com uma experiência acumulada de 23 mil horas de voo deu-nos a sua opinião avalizada sobre os perigos associados à formação de gelo. “É um assunto sério, que causa acidentes graves. Envolve uma série de coisas, começando pelo facto de não estarmos habituados a gelo nas pistas portuguesas, nunca fiz um de-icing [remoção do gelo ou geada das asas, fuselagem e estabilizador antes da descolagem] em Lisboa, mas depois somos confrontados com destinos onde temos de lidar com isso. Nessa altura, a consciência de saber que não domino esse ambiente leva-me a ter algumas dúvidas e, na dúvida, qualquer piloto joga sempre pelo seguro. Antes de voar, lavamos sempre o avião com jatos de água quente misturada com um produto à base de álcool para tirar o gelo das asas”, explicou. Quando está a nevar os cuidados a ter são outros “devemos fazer um anti-icing. É colocado um gel nas asas que absorve a neve. À medida que a velocidade aumenta esse gel solta-se e deixa as asas limpas, é isso que pretendemos antes de descolar”.
A informação é muito importante porque um piloto fica mais vulnerável se não tiver conhecimento dos perigos que o ameaçam. Quando estão a voar, os pilotos usam o radar meteorólogico para evitar passar em zonas onde “existem grandes nuvens de desenvolvimento vertical, são nuvens chatas, com grande instabilidade no seu interior. Quando um avião entra nessas zonas significa que vamos ter turbulência severa”, assegurou. Nesse sentido, todas as companhias aéreas de bandeira fornecem cartas meteorológicas de previsão do tempo nas rotas dos voos “os pilotos sabem em que zona pode haver formação de gelo, e, se não conseguirem evitar, preparam-se para isso. Se durante o voo houver alteração das condições climatéricas também são avisados”, salientou.
Quando são apanhados numa situação crítica, a pilotagem ganha maior relevância, como nos disse o comandante: “A nossa missão é nunca entrar nessas nuvens, até porque põe em causa os limites estruturais do avião”, e frisou que “se o radar falhar, não posso voar precisamente por causa dessas nuvens”. A única solução é desviar e procurar outra rota: “Temos de costurar para apanhar zonas onde a turbulência é menor e há menos contacto com o gelo”.
O comandante Armindo Martins não tem dúvidas em afirmar que “a formação gelo é o fator externo mais perigoso durante o voo”, o que obriga o piloto a fazer uma “análise séria, objetiva e assertiva da rota a seguir”, e concluiu: “O gelo em voo é para respeitar. Não só a formação do gelo, mas também o que causa esse gelo. Há um trabalho de prevenção que deve ser feito. Importa dizer que o avião também tem defesas para isso, o bordo à volta dos motores e das asas é aquecido para evitar que se acumule gelo”, explicou.
Voar com os pássaros
As aves tendem a gostar de aeroportos porque são espaços amplos e abertos e com fontes de alimento. A sua presença exige um controlo permanente de modo a minimizar o risco colisão com os aviões. Nas aeronaves mais pequenas, com motor a hélice, o embate com pássaros pode causar graves danos estruturais, e já aconteceu partirem o para-brisas e entrarem na cabine. Nos aviões de maior dimensão com motor a jato, o embate pode provocar uma falha do motor ou perda de potência grave – o impacto no motor é responsável por 44% de todos os incidentes com aves. Podem igualmente danificar sondas, sensores e o para-brisas, feito em vidro laminado e com três camadas de acrílico. A frequência e a gravidade destes incidentes são influenciadas pela altitude da aeronave, hora do dia, condições ambientais, localização geográfica, estação do ano, espécie de aves e voo em bandos.
Segundo a ICAO Bird Strike Information System, 90% dos ataques ocorrem abaixo dos 2.500 pés (760 metros) e 80% abaixo dos 1.000 pés (300 metros), 90% tiveram lugar durante a descolagem, aproximação e aterragem, 68% aconteceram durante o dia, 85% dos ataques envolveram uma única ave e apenas 35% dos pilotos foram avisados. Estima-se que o custo anual das colisões com aves para as companhias aéreas ultrapassa atualmente os 1,1 mil milhões de dólares nos EUA e os 3,3 mil milhões de dólares em todo o mundo. De salientar que 90% desses custos se devem a atrasos e cancelamentos de voos. Estatisticamente, apenas 5% das colisões com pássaros provocam danos sérios nos aviões. No entanto, de acordo com as regras da aviação, quando há um impacto com uma ave o avião deve sair de operação para ser cuidadosamente inspecionado.
O comandante Armindo Martins considera os pássaros como mais um elemento da natureza “já que somos nós que estamos a invadir o seu espaço”, justificou. A indústria aeronáutica tem trabalhado no sentido de atenuar o problema, mas a verdade é que o encontro com aves acontece regularmente. “Uma situação dessas é sempre desagradável. Provoca danos no avião, pode dar cabo do motor, danificar a fuselagem, estragar o trem de aterragem ou até mesmo partir um vidro. Nos aviões mais pequenos, podem entrar no cockpit e ferir um piloto”, frisou. Há estratégias de defesa para reduzir esse risco. Os aeroportos colocam falcões a voar a determinadas horas do dia. São também usados drones, disparados cartuchos pirotécnicos e reprodução de gritos de socorro de aves para as assustar. Os próprios aviões têm dispositivos para afugentar a passarada, o acender e apagar das luzes é um deles. Apesar de tudo isso, Armindo Martins perdeu a conta às vezes em que bateu em pássaros. “Nunca tive problemas sérios, mas o avião sofreu danos”, e contou que “numa descolagem em Lisboa, um pássaro bateu no vidro, ficou esmagado, e acompanhou-nos a viagem toda”. O relatório de voo informa o piloto que é previsível haver concentração de pássaros na descolagem “quando isso acontece, há sempre o efeito de surpresa. Por outro lado, quando os conseguimos ver devemos reportar para a torre de controlo para que essa informação seja passada aos outros pilotos. A cultura do report é muito importante na aviação”, disse.
O encontro imediato com aves de grande porte ou bandos de pássaros é mais problemático ao descolar do que na aterragem, como disse ao i o comandante Armindo Martins. “Com algumas reticências, tudo aquilo que acontece ao descolar é sempre pior do que na aterragem. Na descolagem, estamos a subir, ainda não atingimos a velocidade de cruzeiro e estamos muito perto do solo, por isso a folga é menor. Na aproximação, já estamos a descer e mesmo que haja um embate pouco tempo depois estou a aterrar. Se tivesse de escolher, não hesitava um segundo em esolher a aterragem”. Nos últimos anos, ocorreram alguns acidentes após o encontro imediato com aves. O caso mais mediático aconteceu em 2009 quando um Airbus A320 perdeu potência nos motores e o comandante amarou com grande mestria no rio Hudson, em Nova Iorque.