A democracia em decadencia


Fui testemunha como deputado do expediente, que denunciei por vezes. É deplorável que continue, apesar de corromper politicamente o funcionamento e a transparência da Assembleia.


Já se ouviu praticamente tudo a respeito da decadência da democracia em que nos vamos afundando. Há muitas causas. Umas são da responsabilidade de alguns sectores, outras da responsabilidade de todos. Atentemos no que é da responsabilidade de todos. As coisas que dizem respeito apenas a alguns, podem recair apenas sobre esses. As que resultam de todos é que afectam o conjunto e geram descrédito geral.

O fenómeno tem já muitos anos. Raramente a decadência acontece de repente, antes é um lento e progressivo deslizar. Tão lento, que muitas vezes nem nos apercebemos de estar a acontecer – e negamos a decadência. Mas está mesmo a acontecer. Vem desde antes da revisão constitucional de 1997 e não cessa de agravar-se. Não tem a ver com os deputados trabalharem muito ou pouco. Sei que os deputados, em geral, trabalham muito. Mas são postos a trabalhar mal por um sistema que não brilha, que não eleva, que não é transparente, que não é leal, que tem demasiados truques.

O que se passou na sexta-feira é um bom exemplo do que não deveria acontecer. Ter acontecido não acrescentou crédito à política, nem prestígio ao Parlamento. Antes somou mais umas pedrinhas ao desprestígio e à indiferença. Nem é pela matéria que dominou o dia: a revisão da lei do aborto. É pela forma como os actores escolheram agir.

Primeira questão: a lei do aborto tinha tido a adopção decidida em referendo; ou seja, no seu núcleo definidor, só após nova aprovação referendária poderia ser revista. Entendamos a questão essencial da legitimidade política. Em 1997, o sistema político-constitucional mudou: foi introduzido o referendo, incluindo para matérias legislativas como esta. Ou seja, a Constituição abriu a porta para, em determinadas matérias e condições, serem os cidadãos a abrir o processo legislativo, autorizando-o ou não. E a Assembleia da República logo sujeitou a referendo a despenalização do aborto a pedido e o seu prazo (até às 10 semanas). O referendo de 1998 não a aprovou. Mas o referendo de 2007 aprovou-a, seguindo-se a discussão parlamentar e a adopção da lei em vigor.

O processo parlamentar que correu, agora, foi inteiramente ilegítimo: só seria legítimo se incluísse a resolução para convocar novo referendo para um dos novos prazos propostos –12 ou 14 semanas. Para honrar a democracia e servir a verdade política, na mesma linha de 1998 e 2007, a lei nunca poderia prosseguir, sem aquela condição habilitante. Há, aliás, boas razões substanciais para manter o uso do referendo. É sabido haver partidos que não têm posição sobre o tema, que reputam “de consciência”; outros afirmam que os eleitores não pensam o mesmo. Em simultâneo, é matéria que assenta em princípios e  valores de grande sensibilidade, intensamente pessoais. Por isso, é muito compreensível – e merece apoio – que, antes de concluir, o Parlamento reserve aos cidadãos a decisão sobre a oportunidade da lei e sobre o fundamental da tipificação do aborto a despenalizar.

Segunda questão: Teresa de Melo Ribeiro, jurista, escreveu, na passada sexta-feira, no Observador, no artigoA leviandade e ligeireza dos agendamentos por arrastamento: o exemplo do processo legislativo do aborto”, uma crítica detalhada e bem fundamentada a uma prática em que a Assembleia da República cai e recai frequentemente. Agora, de novo. É de tal forma que podemos mesmo considerá-la não uma escolha, mas já um vício. Aberto um processo legislativo por um ou dois partidos, à última hora juntam-se ao comboio muitos outros (por vezes, mesmo todos os outros), que avançam com os seus projectos à bica do debate e da votação na generalidade.

Esta prática dita “de arrastamento” estraga o processo legislativo que foi aberto, enfraquece a assimilação material das novas iniciativas, polui o debate na generalidade com ideias e propostas estranhas ao processo iniciado e aumenta até ao absurdo a cacofonia parlamentar. Os partidos retardatários querem fazer-se presentes no dia do baile, mas escolhem a forma errada de o fazer. A forma correcta é votar contra (se são contra), explicando porquê, sem desviar a conversa; e, se fosse o caso, anunciar que iriam apresentar novas iniciativas sobre outras questões relevantes do tema, o que fariam em tempo oportuno – ou logo a seguir, no rescaldo do debate; ou mais tarde, com a solenidade devida.

Esta prática de “processo legislativo atropelo & molhada” prejudica todos e perturba muito a compreensão do que andam o Parlamento e os partidos a fazer.

Terceira questão: a prática que continua, embora não se verificasse neste processo, de não proceder à votação na generalidade, mas aprovar por requerimentos a “baixa à comissão sem votação”, iniciando, de seguida, um processo legislativo fraudulento. Este expediente aproveita uma norma regimental prevista para situações excepcionais e para uso em tempo muito curto, para meter um dado processo legislativo por vielas e salinhas obscuras, emergindo no plenário, no final de longos meses de laboriosa manipulação, em três votações consecutivas, obviamente viciadas: generalidade, especialidade e global final. É o “processo legislativo já está!”, um prodígio de prestidigitação.

Fui testemunha como deputado do expediente, que denunciei por vezes. É deplorável que continue, apesar de corromper politicamente o funcionamento e a transparência da Assembleia. A norma regimental pode manter a excepcionalidade, fixando-se as causas que a podem determinar (por exemplo, surgimento no debate da generalidade de questões que a comissão parlamentar deva, em prazo curto, clarificar ainda, antes da votação) e proibir terminantemente o seu abuso em todos os outros casos, assim protegendo a regra essencial: nenhuma apreciação na especialidade pode ser iniciada em comissão, sem que o plenário tenha aprovado na generalidade os projectos sobre que incide.

E há uma quarta questão: a forma como os deputados continuam a ser propostos e eleitos, à revelia da revisão constitucional de 1997, que apontou para o sistema de representação proporcional personalizada, com articulação de círculos proporcionais e uninominais e um círculo nacional de compensação. Já podíamos ter resolvido os problemas principais do crédito e prestígio parlamentar, que, como é bom de ver, só depende, primeiro, do crédito e prestígio dos deputados e, segundo, do crédito e prestígio dos partidos. Assim, lá vamos a afundar-nos no que já estava gasto e esgotado em 1997 e, 28 anos depois (!) continua a fugir do essencial em democracia: proximidade eleitos/eleitores, escrutínio, prestação de contas. Por que se foge da democracia de qualidade?

A democracia em decadencia


Fui testemunha como deputado do expediente, que denunciei por vezes. É deplorável que continue, apesar de corromper politicamente o funcionamento e a transparência da Assembleia.


Já se ouviu praticamente tudo a respeito da decadência da democracia em que nos vamos afundando. Há muitas causas. Umas são da responsabilidade de alguns sectores, outras da responsabilidade de todos. Atentemos no que é da responsabilidade de todos. As coisas que dizem respeito apenas a alguns, podem recair apenas sobre esses. As que resultam de todos é que afectam o conjunto e geram descrédito geral.

O fenómeno tem já muitos anos. Raramente a decadência acontece de repente, antes é um lento e progressivo deslizar. Tão lento, que muitas vezes nem nos apercebemos de estar a acontecer – e negamos a decadência. Mas está mesmo a acontecer. Vem desde antes da revisão constitucional de 1997 e não cessa de agravar-se. Não tem a ver com os deputados trabalharem muito ou pouco. Sei que os deputados, em geral, trabalham muito. Mas são postos a trabalhar mal por um sistema que não brilha, que não eleva, que não é transparente, que não é leal, que tem demasiados truques.

O que se passou na sexta-feira é um bom exemplo do que não deveria acontecer. Ter acontecido não acrescentou crédito à política, nem prestígio ao Parlamento. Antes somou mais umas pedrinhas ao desprestígio e à indiferença. Nem é pela matéria que dominou o dia: a revisão da lei do aborto. É pela forma como os actores escolheram agir.

Primeira questão: a lei do aborto tinha tido a adopção decidida em referendo; ou seja, no seu núcleo definidor, só após nova aprovação referendária poderia ser revista. Entendamos a questão essencial da legitimidade política. Em 1997, o sistema político-constitucional mudou: foi introduzido o referendo, incluindo para matérias legislativas como esta. Ou seja, a Constituição abriu a porta para, em determinadas matérias e condições, serem os cidadãos a abrir o processo legislativo, autorizando-o ou não. E a Assembleia da República logo sujeitou a referendo a despenalização do aborto a pedido e o seu prazo (até às 10 semanas). O referendo de 1998 não a aprovou. Mas o referendo de 2007 aprovou-a, seguindo-se a discussão parlamentar e a adopção da lei em vigor.

O processo parlamentar que correu, agora, foi inteiramente ilegítimo: só seria legítimo se incluísse a resolução para convocar novo referendo para um dos novos prazos propostos –12 ou 14 semanas. Para honrar a democracia e servir a verdade política, na mesma linha de 1998 e 2007, a lei nunca poderia prosseguir, sem aquela condição habilitante. Há, aliás, boas razões substanciais para manter o uso do referendo. É sabido haver partidos que não têm posição sobre o tema, que reputam “de consciência”; outros afirmam que os eleitores não pensam o mesmo. Em simultâneo, é matéria que assenta em princípios e  valores de grande sensibilidade, intensamente pessoais. Por isso, é muito compreensível – e merece apoio – que, antes de concluir, o Parlamento reserve aos cidadãos a decisão sobre a oportunidade da lei e sobre o fundamental da tipificação do aborto a despenalizar.

Segunda questão: Teresa de Melo Ribeiro, jurista, escreveu, na passada sexta-feira, no Observador, no artigoA leviandade e ligeireza dos agendamentos por arrastamento: o exemplo do processo legislativo do aborto”, uma crítica detalhada e bem fundamentada a uma prática em que a Assembleia da República cai e recai frequentemente. Agora, de novo. É de tal forma que podemos mesmo considerá-la não uma escolha, mas já um vício. Aberto um processo legislativo por um ou dois partidos, à última hora juntam-se ao comboio muitos outros (por vezes, mesmo todos os outros), que avançam com os seus projectos à bica do debate e da votação na generalidade.

Esta prática dita “de arrastamento” estraga o processo legislativo que foi aberto, enfraquece a assimilação material das novas iniciativas, polui o debate na generalidade com ideias e propostas estranhas ao processo iniciado e aumenta até ao absurdo a cacofonia parlamentar. Os partidos retardatários querem fazer-se presentes no dia do baile, mas escolhem a forma errada de o fazer. A forma correcta é votar contra (se são contra), explicando porquê, sem desviar a conversa; e, se fosse o caso, anunciar que iriam apresentar novas iniciativas sobre outras questões relevantes do tema, o que fariam em tempo oportuno – ou logo a seguir, no rescaldo do debate; ou mais tarde, com a solenidade devida.

Esta prática de “processo legislativo atropelo & molhada” prejudica todos e perturba muito a compreensão do que andam o Parlamento e os partidos a fazer.

Terceira questão: a prática que continua, embora não se verificasse neste processo, de não proceder à votação na generalidade, mas aprovar por requerimentos a “baixa à comissão sem votação”, iniciando, de seguida, um processo legislativo fraudulento. Este expediente aproveita uma norma regimental prevista para situações excepcionais e para uso em tempo muito curto, para meter um dado processo legislativo por vielas e salinhas obscuras, emergindo no plenário, no final de longos meses de laboriosa manipulação, em três votações consecutivas, obviamente viciadas: generalidade, especialidade e global final. É o “processo legislativo já está!”, um prodígio de prestidigitação.

Fui testemunha como deputado do expediente, que denunciei por vezes. É deplorável que continue, apesar de corromper politicamente o funcionamento e a transparência da Assembleia. A norma regimental pode manter a excepcionalidade, fixando-se as causas que a podem determinar (por exemplo, surgimento no debate da generalidade de questões que a comissão parlamentar deva, em prazo curto, clarificar ainda, antes da votação) e proibir terminantemente o seu abuso em todos os outros casos, assim protegendo a regra essencial: nenhuma apreciação na especialidade pode ser iniciada em comissão, sem que o plenário tenha aprovado na generalidade os projectos sobre que incide.

E há uma quarta questão: a forma como os deputados continuam a ser propostos e eleitos, à revelia da revisão constitucional de 1997, que apontou para o sistema de representação proporcional personalizada, com articulação de círculos proporcionais e uninominais e um círculo nacional de compensação. Já podíamos ter resolvido os problemas principais do crédito e prestígio parlamentar, que, como é bom de ver, só depende, primeiro, do crédito e prestígio dos deputados e, segundo, do crédito e prestígio dos partidos. Assim, lá vamos a afundar-nos no que já estava gasto e esgotado em 1997 e, 28 anos depois (!) continua a fugir do essencial em democracia: proximidade eleitos/eleitores, escrutínio, prestação de contas. Por que se foge da democracia de qualidade?