Marisa Paredes. A atriz que escreveu o seu próprio destino

Marisa Paredes. A atriz que escreveu o seu próprio destino


1946-2024. A atriz preparava-se para voltar aos palcos em 2025.


Costuma-se enaltecer as atrizes que encheram de vida o palco e se fizeram as suas «grandes damas», mas se Marisa Paredes certamente foi uma delas, não foi a ovação nem o fascínio das audiências que a elevou a essa estatura. Foi ela mesma, desde criança, desde os seus cinco anos, que não sentiu que a realidade combinasse com ela, parecendo-lhe uma flor gasta face à projeção de que o teatro era capaz, impregnando o imaginário de formas vivas, desse aroma adocicado e inebriante das fantasias. Cresceu numa casa pobre mas com vista para o Teatro Espanhol, na madrilena Plaza de Santa Ana, era a última de quatro irmãs, filhas de um operário de uma fábrica de cervejas e de uma porteira, e os seus olhos escapavam das tarefas e obrigações que lhe foram impostas desde cedo, buscando as silhuetas das atrizes elegantemente vestidas, presenças que marcavam um contraste encadeante face à envolvência. Sonhava libertar-se da servidão que consumia a vida dos pais, ansiando por mergulhar naquele mundo da boémia que significava para ela escapar ao seu destino.

Espanha de luto
Assim, a sua vida foi essa evasão que se tornou possível com o fim da ditadura franquista, e o anúncio da sua morte, no passado dia 17, deixou Espanha de luto, sendo um acontecimento inesperado para uma mulher que, aos 78 anos, segundo os amigos, estava cheia de vida, tendo marcado presença numa série de eventos públicos nos últimos meses, e que se preparava para regressar aos palcos em 2025, com o encenador com quem firmou um dos grandes pactos artísticos da sua carreira, Lluís Pasqual, para a estreia de uma peça cujo título ganha agora um amargo acento irónico: Cargada de Futuro. Depois de o coração lhe ter falhado, multiplicaram-se as homenagens, e Pedro Almodóvar, o grande responsável por dar-lhe uma audiência global, notou que ela tinha um porte e uma força que a diferenciavam, uma «elegância transcendente, e que lhe era tão natural que não se identificava com nenhuma classe social». Num certo sentido, o tão célebre realizador espanhol assinalou o facto de Marisa Paredes ser uma criação dela mesma, aquela miúda de origens humildes, mas sempre altiva, que sempre soube o que queria e veio a transformar-se nessa diva orgulhosa que foi aclamada pelas suas interpretações nos palcos, na televisão e no grande ecrã.

Da costura aos palcos
Marisa Paredes foi obrigada a deixar a escola aos 11 anos para começar a trabalhar como costureira numa casa de modas. Ali, e devido à sua constituição, logo foi apelidada de Pajarito (Passarinho), lembrando uma personagem do universo de Benito Pérez Galdós. Se nunca pode assistir a uma peça de teatro, talvez essa proximidade distante tenha servido para acicatar mais ainda a sua admiração pela vida dos atores, e em casa não largava o rádio, onde as peças eram transmitidas. Aprendeu o ofício de costureira, que a ajudou a dar os pontos na fantasia que ia construindo, e aos 14 anos, aquela mesma praça que a viu nascer deu-lhe a sua primeira oportunidade, pois ali se desenrolavam as filmagens de um filme de José María Forqué, 091, Policía al Habla (1960), tendo ela feito o cerco à equipa para ver se a aceitavam. Assim, ainda adolescente, teve o seu primeiro papel, o de prostituta com um vestido vermelho. A cor que, muitos anos mais tarde, Almodóvar viria a provar uma e outra vez que lhe assentava na perfeição.
No ano seguinte, conseguiu ser contratada pelo Teatro Cómico, mas o pai impediu-a de levar a sua avante. Fez a guerra em casa, fazendo da mãe um aliado contra o pai, e em breve ganhava um lugar no Teatro de la Comedia, onde começou, aos 16 anos, contracenando com Conchita Montes numa peça de José López Rubio, Esta noche tampoco (1961), no papel da criada. Isto até uma indisposição de Carmen Sainz de la Maza a levou a ter levado a ser promovida a donzela. Tinha a sorte do seu lado, e não demorou a integrar os elencos em peças dramáticas que era reproduzidas pelo canal público, tendo repetido em entrevistas que foi só quando os vizinhos começaram a felicitá-la depois de a verem na Uno que o pai, por fim, começou a ver com outros olhos o percurso em que a filha se lançara.


Se o teatro fez dela uma das grandes intérpretes dramáticas da sua geração, foi através do cinema que alcançou projeção mundial, tendo trabalhado não só com Almodóvar – Negros Hábitos (1983), Saltos Altos (1991), A Flor do Meu Segredo (1995), Tudo sobre a Minha Mãe (1999) e o mais recente A Pele onde Eu Vivo (2011) – como com Arturo Ripstein, Agustí Villaronga, Guillermo del Toro entre outros. Com Manoel de Oliveira fez Espelho Mágico (2005), filme baseado na obra A Alma dos Ricos, de Agustina Bessa-Luís, e que contava ainda no elenco com Isabel Ruth, Leonor Silveira, Luis Miguel Cintra, Lima Duarte e Michel Piccoli, e o qual, segundo Paredes, contava «uma história realmente delirante» a partir da «ideia tão curiosa de que os ricos também choram».

Origens humildes
Como fazia questão de mencionar em muitas das entrevistas que deu, as suas origens humildes tiveram um papel decisivo na forma como encarava o mundo e mesmo se deixara de ser ela a coser os vestidos para outras vestirem, mesmo usando os vestidos fluidos de Sybilla, a sua estilista fetiche, e apesar do porte aristocrático que podia envergar, Paredes tinha uma consciência operária gravada no seu íntimo. Numa entrevista à revista ICON, citada pelo El País, lembrava uma conversa que teve em tempos com a mãe. «A diferença de classes era muito clara. Um dia perguntei à minha mãe porque é que éramos pobres. Ela disse-me: ‘Isto é herdado, filha, tal como a alternativa. Ser rico é herdado, e ser pobre também. Isso, isso é o que eu tenho aqui [apontando para a cabeça]». Daí que tenha sempre mantido uma postura interventiva, sendo de esquerda e feminista, defendendo a cultura e as causas ambientais.


Daí que tenha assumido posições cada vez mais impetuosas e até arriscadas numa altura em que a extrema-direita voltou a assumir protagonismo na cena política: «Acredito cada vez mais na sociedade civil como a chave para o progresso da sociedade. Acredito nas associações. Os políticos têm sempre os seus compromissos e vão até onde podem, mas a sociedade civil… José Luis Sampedro disse-o, se as pessoas se apercebessem da força que têm, as coisas mudariam mais depressa. Mas as pessoas não pensam e votam (…) sem ideologia, por inércia». Assim, mostrava-se cada vez mais empenhada e, em 2003, numa altura em que presidia à Academia Espanhola de Cinema, teve um papel de destaque nos protestos contra a guerra no Iraque, denunciando as mentiras da Casa Branca quanto à existência de armas de destruição de massa, e mais recentemente manifestou-se também quando o Vox, depois de chegar a governos regionais em alianças com o PP, ter censurado uma série de peças e filmes, impedindo a sua exibição em várias zonas de Espanha.