O número de atropelamentos não pára de aumentar. A zona de Lisboa não tem escapado a esta tendência e há menos de uma semana o país deparou-se com a notícia da morte do presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), Pedro Sobral, na sequência de um atropelamento na Avenida da Índia, onde circulava de bicicleta. O condutor acabou por se entregar horas mais tarde. Poucos meses antes, em setembro, morreu Afonso Gonçalves, um jovem de 21 anos, atropelado na zona de Alvalade, foi transportado ainda com vida para o Hospital de São José, em Lisboa, onde viria a morrer. O condutor fugiu do local, mas várias testemunhas que assistiram dizem que o acidente aconteceu na passadeira. O homem de 46 anos acabou por ser detido depois de ter sido revelado que continuava a conduzir um táxi, apesar de já ter atropelado mortalmente duas pessoas. Na mesma zona, duas semanas antes tinha morrido outra pessoa atropelada na Avenida das Forças Armadas.
Os dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, bem como da GNR e PSP, têm apontado para uma realidade preocupante no que diz respeito ao número de atropelamentos em Portugal.
Este cenário tem gerado uma onda de indignação e preocupação entre familiares de vítimas, como Paulo Gonçalves, que perdeu o filho Afonso e juntamente com a esposa têm vindo a público exigir mudanças na legislação e na perceção social acerca destes crimes. «O caso do Afonso não é único, mas dói de uma forma indescritível», começa por afirmar Paulo, ao Nascer do SOL. E aponta o dedo ao condutor. «Esta pessoa tinha um cadastro completamente inacreditável, mas continuava a circular livremente. Como é possível?» questiona o pai, defendendo que é urgente que a moldura penal para crimes rodoviários seja revista. «Deviam ser tratados como homicídios, porque é isso que são», salienta.
Além da luta por justiça para o filho, Paulo e a esposa criaram a página Justiça pelo Afonso nas redes sociais. O objetivo vai além da condenação do responsável pelo atropelamento: é uma missão de sensibilização pública. «Não é só sobre o Afonso, é sobre evitar que outras famílias passem por isto. Queremos chamar a atenção para a impunidade que se sente na estrada», explica.
O perigo na passadeira
O aumento dos atropelamentos traz à tona uma sensação de insegurança generalizada. «Todos nós já estivemos numa passadeira e vimos carros que simplesmente não querem parar. Há uma impunidade latente, mesmo antes de acontecer uma tragédia», refere Paulo, afirmando que a sociedade precisa de uma mudança cultural urgente no que diz respeito ao uso do automóvel. «Um carro é das piores armas que existem. As pessoas não têm noção do impacto destrutivo que podem causar. As pessoas têm de perceber que um acidente pode tirar vidas e destruir famílias. Não é apenas uma infração; é um crime com consequências irreversíveis».
Cerco mais apertado
Situações que levaram a Câmara de Lisboa a agir ao anunciar que irá implementar um conjunto de medidas de acalmia de tráfego para toda a extensão do eixo viário constituído pela Avenida das Forças Armadas e a Avenida dos Estados Unidos da América com o objetivo de tornar este eixo da cidade mais seguro. Ao nosso jornal, a autarquia diz que a ideia passa por implementar várias medidas, como o reforço na sinalização das passadeiras através de preenchimento a vermelho e de pisos antiderrapantes na aproximação das passagens de peões, assim como nos locais em que a medida se justifique, implementação de pictogramas no pavimento com a indicação do limite da velocidade e instalação da respetiva sinalização vertical, adoção de corredores ‘BUS’ em zonas onde seja possível a sua implementação, criação de novos atravessamentos pedonais em novos locais, introdução de alterações ao funcionamento dos semáforos (existente e novo), por forma a reduzir a velocidade e impedir a passagem sucessiva de semáforos ‘em verde’. Outras medidas passam por impossibilitar os atravessamentos indevidos fora das passagens de peões através da implementação de gradeamentos (guarda-corpos), promovendo o encaminhamento pedonal para as passadeiras existentes, implementação e sinalização de um conjunto sequencial de radares ao longo do eixo Av. EUA / Entrecampos / Av. Forças Armadas.
Ao Nascer do SOL, o vice-presidente da câmara, Filipe Anacoreta Correia, não hesita: «Como condutor reconheço que atualmente tenho um comportamento mais cuidado e ando em geral a uma velocidade menor dentro de Lisboa por causa dos radares».
Ainda assim, de acordo com os últimos dados pela autarquia, divulgados ao nosso jornal indicam que, de 2022 a 2024, a média anual de mortes por atropelamento é de 2,3 , isto é, neste mandato, enquanto a média dos 10 anos anteriores (2012-2021) é de 8,6.
Em 2024 foram registados quatro mortes por atropelamento. Um número superior ao que foi verificado em 2023 e em 2022 quando foram registadas duas.
O que dizem os números
Nos últimos cinco dias, a GNR e a PSP registaram 13 mortes em quase dois mil acidentes. Na área de ação da GNR foram registados 1.144 acidentes com 10 vítimas mortais, 33 feridos graves e 322 feridos leves desde as zero horas de 20 de dezembro, dia em que se iniciou a operação Natal e Ano Novo 2024/2025, enquanto na área de responsabilidade da PSP foram registados 794 acidentes, dos quais resultaram 298 feridos (13 feridos graves e 285 feridos ligeiros) e três vítimas mortais.
Um número que vem engrossar os dados que já tinha sido dados ao nosso jornal. A GNR reportou 1.128 acidentes com vítimas entre janeiro e setembro de 2024. Destes, 154 envolveram fugas do local e 355 ocorreram em passadeiras. Até ao final de setembro, os atropelamentos resultaram em 30 mortes, 147 feridos graves e 1.014 feridos leves. A maioria dos casos envolve veículos ligeiros. Durante todo o ano de 2023, foram registados 1.585 acidentes com vítimas e 509 deram-se em passadeiras. Os atropelamentos provocaram 46 mortes, 167 feridos graves e 1.427 feridos leves.
Para acidentes com fuga ou dúvidas sobre a identidade do condutor, a GNR aciona o Núcleo de Investigação de Crimes em Acidentes de Viação (NICAV). «O NICAV inicia de imediato as diligências necessárias para identificar o condutor/viatura, bem como as causas inerentes ao acidente de viação», explica, referindo que «existindo dolo ou suspeita de dolo, o NICAV e a patrulha efetuam as diligências necessárias para a gestão do local do crime e acautelar meios de prova».
A PSP também destaca um aumento nos números de atropelamentos em 2024, com 3.107 ocorrências registadas até 20 de novembro. Este número representa uma ligeira redução em relação ao valor total de 2023 (3.466), mas as mortes cresceram, passando de 11 em 2023 para 24 em 2024. Este é o número mais elevado de que a força de segurança tem registo desde 2019. Cerca de 300 destes acidentes envolveram fuga, embora não tenham resultado em mortes.
«No que concerne ao tipo de veículo em que se regista mais atropelamentos, corresponde ao automóvel ligeiro (todos os anos)», realça a PSP. Embora os dados de ambas as autoridades sejam provisórios, o aumento das fatalidades e a persistência de atropelamentos em passadeiras sugerem a necessidade de medidas mais incisivas. As autoridades enfatizam a importância da fiscalização, educação rodoviária e uma maior responsabilização de condutores.
A realidade europeia
Segundo dados divulgados em março, Portugal registou 60 mortes por milhão de habitantes em acidentes rodoviários em 2022, ocupando o sexto lugar na União Europeia (UE) em sinistralidade, acima da média europeia de 46 mortes por milhão de habitantes. Os dados foram divulgados no relatório de segurança rodoviária do Tribunal de Contas Europeu (TCE).
Segundo o relatório, Espanha teve uma taxa de mortalidade rodoviária inferior a 40 mortes por milhão, posicionando-se no sétimo lugar da tabela. Já a Suécia foi o país da UE com menos vítimas mortais nas estradas em 2022, com 20 mortes por milhão de habitantes, seguida pela Dinamarca, Irlanda, Alemanha, Finlândia e Estónia, todos com menos de 40 mortes por milhão.
No extremo oposto, a Roménia liderou em número de mortes por acidentes rodoviários, com mais de 80 mortes por milhão de habitantes, seguida pela Bulgária, Croácia, Grécia, Letónia e, finalmente, Portugal.
Apesar do número elevado, o relatório do TCE destaca uma redução significativa na mortalidade rodoviária em Portugal ao longo dos anos, passando de mais de 90 mortes por milhão de habitantes em 2010 para 60 em 2022.
O relatório também analisa a idade média dos automóveis em circulação na UE. Em Portugal e Espanha, a idade média dos veículos é de 13,5 anos, cerca do dobro da média de 7,6 anos no Luxemburgo, onde os veículos são os mais novos da Europa. No outro extremo, a Grécia (17 anos) e a Estónia (16,8 anos) registaram os veículos mais antigos, bem acima da média europeia de 12 anos.
O TCE alerta que os esforços atuais da UE e dos Estados-Membros são insuficientes para atingir o objetivo de reduzir para metade as mortes nas estradas até 2030, em comparação com 2019, ano em que foram registadas 22.800 vítimas mortais. Segundo o relatório, a redução esperada deverá ser de apenas 25% se não forem adotadas medidas mais eficazes.
Entre as recomendações, destaca-se a necessidade de investigações detalhadas sobre as causas dos acidentes, especialmente em pontos críticos, e a elaboração de relatórios harmonizados pelos Estados-Membros, até 2026. O TCE reforça a urgência de ações decisivas para colocar a segurança rodoviária ‘na via rápida’.