O significado do Natal. ‘Uma luz tão grande que os olhos não aguentavam’

O significado do Natal. ‘Uma luz tão grande que os olhos não aguentavam’


Árvores decoradas, ruas iluminadas, centros comerciais a abarrotar e montanhas de presentes. Peru, bacalhau, sonhos, rabanadas e filhoses… A festa da abundância tem na origem o expoente máximo da simplicidade e do despojamento.


Quando os dias atingem a sua duração mais curta e as noites são mais longas no Hemisfério Norte, um acontecimento vem reconfortar as almas dos homens e lançar a sua luz sobre o ocaso do ano. O Natal é a festa do frio, dos presentes e, no nosso tempo, da abundância. Associamo-lo ao pinheiro (árvore de folha perene, tradição importada da Alemanha por D. Fernando II), às figuras do presépio, às iluminações nas ruas, aos centros comerciais sobrelotados, a brinquedos para as crianças e a lautas comezainas para os adultos. Talvez a roupas quentinhas e a bons vinhos. Porém, na origem de todas as celebrações encontra-se um acontecimento que é o elogio máximo do despojamento e da humildade.


A palavra ‘Natal’ significa nada mais do que nascimento, no caso de um menino de uma família a que faltava quase tudo. A meio de uma viagem, certamente cansados e sem estalagem onde ficar hospedados, Maria e José veem-se obrigados a pernoitar num estábulo na cidade de Belém.
Os Evangelhos são parcos em palavras, só o de S. Lucas contém uma descrição sucinta: “Aconteceu que, enquanto estavam ali, se cumpriram os dias da parturição dela, e deu à luz o seu filho primogénito e envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria”. Será essa alusão à manjedoura que fará com que, no imaginário popular, o recém-nascido seja aquecido pelo bafo dos animais.
Até aqui, tudo se passa na maior das simplicidades – a riqueza das oferendas dos reis magos, que associamos ao brilho da estrela que indicou o caminho, só chegaria mais tarde, depois da adoração do menino pelos humildes pastores.

Estábulo ou gruta? Com maior abundância de pormenores surge o Evangelho de Tiago, um dos evangelhos apócrifos – os textos que narram a vida de Jesus deixados de fora do cânone do Novo Testamento. Recuperamos a tradução do grego feita por Frederico Lourenço para a Quetzal: “Aconteceu que uma ordem da parte do imperador Augusto, para que todos se recenseassem em Belém da Judeia. E José disse: «Eu recensearei os meus filhos. Mas com esta menina [Maria] que farei? Como a recensearei? Como minha mulher? Tenho vergonha. Mas – como filha? Mas os filhos de Israel sabem que não é minha filha. Este dia do Senhor fará como o Senhor quiser.»” Note-se que, em contraste com este Evangelho de Tiago, nos quatro evangelhos canónicos – como de resto em toda a Bíblia – José não profere uma única palavra.


Prossegue o relato: “E selou a burra e sentou-a; e o filho dele conduziu ; e José seguiu. E aproximaram-se do terceiro marco miliário; e José voltou-se e viu que ela estava triste. E disse a si mesmo: «Talvez o nela a incomode.» […]
E iam a meio do caminho e Maria disse-lhe: «Faz-me descer da burra, porque o dentro de mim pressiona-me para sair.» E fê-la descer da burra e disse-lhe: «Onde te levarei e ocultarei a tua vergonha? Pois o lugar é ermo.»”


E aqui aparece uma ‘novidade’ em relação a Lucas. O local do nascimento já não é um estábulo, mas uma gruta (e note-se que é também numa gruta que Jesus será sepultado). Além disso, o objetivo não é tanto abrigar-se como esconder a vergonha – uma gravidez pela qual José não é responsável. “E encontrou ali uma gruta e levou-a lá para dentro. E pôs à disposição dela os filhos dele e, saindo, procurou uma parteira hebreia na região de Belém.”
Começa então uma narração na primeira pessoa – o próprio José descreve como, num instante, o mundo fica parado: “Eu, José, caminhava e não caminhava. E olhei para cima, para o ar: e vi o ar espantado. E olhei para cima, para a abóbada do céu: e vi-a parada; e as aves do céu descansavam.” Até que encontra uma mulher que desce um monte, a quem explica como o filho foi concebido “a partir do Espírito Santo”. Esta mulher vai ser a parteira de Jesus.


“E ficaram de pé no lugar da gruta. E eis que uma nuvem luminosa sombreava a gruta. E a parteira disse: «A minha alma foi engrandecida hoje, porque os meus olhos viram coisas milagrosas; porque salvação nasceu para Israel.» E logo a nuvem se afastou da gruta; e apareceu uma luz grande dentro da gruta que os olhos não aguentavam. E daí a pouco aquela luz afastou-se, até que o bebé apareceu. E veio e tomou o peito de sua mãe, Maria. E a parteira exclamou e disse: «Este é um grande dia para mim, porque vi esta nova maravilha!»”.


No refúgio da gruta ou na paz do estábulo, rodeado de animais, que contraste com a azáfama e o excesso consumista dos natais de hoje, em que o desembrulhar dos presentes é talvez o único mistério que resta!

Porquê a 25 de dezembro? E por que se celebra o nascimento de Jesus a 25 de Dezembro? O responsável por isso poderá ter sido Sexto Júlio Africano (c. 160- 240), um filósofo líbio cristão que escreveu uma história desde a Criação até ao ano 221 da nossa era, em que estimou a idade do mundo em 5500 anos. Segundo os seus cálculos, Jesus teria sido concebido a 25 de março, o que, somando os nove meses de gestação, atiraria o seu nascimento para 25 de Dezembro. Alguns estudiosos das Escrituras chegaram à mesma conclusão, apontando que a data da morte de Cristo e a da sua concepção coincidiriam, como num círculo perfeito. E concluíram que a crucifixão ocorrera no equinócio de primavera (data em que o dia e a noite têm exatamente a mesma duração), que estimaram a 25 de março. Sendo igualmente essa a data da concepção, o nascimento teria sucedido a 25 de Dezembro, nove meses depois.


Também no século III da nossa era, mas no mundo pagão, o imperador romano Aureliano (c. 214-275 d.C.) instituiu um festival para prestar culto ao Sol Invictus, o sol invencível. Pode parecer-nos estranho que esta data se assinalasse justamente a 25 de Dezembro, justamente um dos dias em que o sol brilha durante menos horas. Mas isso significa também que é aqui que ele inicia a sua trajetória ascendente em direção ao solstício de verão, o dia em que atinge o seu ponto mais alto na abóbada celeste.


Embora o festival pagão do Sol Invictus não tivesse qualquer ligação aparente ao cristianismo, é fácil estabelecer uma identificação entre o sol vitorioso e Cristo, que triunfa sobre a morte e a escuridão, e que logo no berço já irradiava uma luz intensa. Segundo o Evangelho de Tiago, “apareceu uma luz grande dentro da gruta que os olhos não aguentavam”.
Chegados ao século XXI, é essa mesma luz que continua a trazer aconchego, calor e uma magia especial a esta época de noites longas e dias curtos.