Literatura em 2024. À margem dos saldos do ano acabado

Literatura em 2024. À margem dos saldos do ano acabado


Teresa Carvalho escolhe cinco títulos que considerou especialmente relevantes este ano, mas sem querer propô-los como os melhores do ano.


Numa época que renuncia àquilo que pode haver de único em si, o que se torna mais desgostante é constatar como se tornou difícil estabelecer um contraponto entre as opiniões dos leitores e as tendências do mercado, sendo que o estado atual da produção literária já favorece os balanços e os arranjos críticos. Teresa Carvalho escolhe cinco títulos que considerou especialmente relevantes este ano, mas sem querer propô-los como os melhores do ano.

Em inícios de dezembro, este mês inclinado, e que nos surge à porta embalado e acondicionado em esferovite, com instruções para cada um o montar e mais logo o descartar com o pinheiro e as luzes, quando for conveniente, antecipam-se os balanços, dispõe-se em regime de feira aquilo que se diz ser um horizonte, sempre mal-enjorcado, como se a vida fora um recibo mal selado. Vêm-nos com listas, destaques, numa manobra publicitária para ir a tempo das compras de Natal, e que afinal mereceria antes ser designada como “saldos do ano acabado”. Acaba por funcionar como um processo de obliteração das hipóteses que nos demos de suspender esta fuga esgotante, esta precipitação em direção à coisa seguinte.

O certo é que ninguém se guarda para esta altura na expectativa de ter sobressaltos. Antes, quem vive distraído, procura iludir-se com uma possibilidade de desforra. É também mais por culpa de quem nunca admite um reverso do cenário lógico, que, no caso dos géneros minoritários, e especialmente no caso da poesia, não se discutem as suas investigações, mas comparece como safra da mais recente produção que saiu por aí em versos, muitas vezes distinguindo-se precisamente pelo cheiro a despegado. Nem se faz outra ideia dela, senão a de um género às voltas e voltas numa jaula de onde é cada vez mais difícil tirá-la.

Deve, contudo, reconhecer-se que muitos dos tais poetas parecem apoiar-se nesse regime de espécie ameaçada, e dar o seu consentimento a todos os programas de proteção que, essencialmente, os reduzem a bichos para expor à criançada em contexto de sala de aula. A poesia, nas manifestações que lhe são admitidas, vê-se autorizada a andar a par das realidades sumárias, sendo encorajado aquele grau de delirante vivacidade e humor, ou, em alternativa, aquele tom de pasmosa melancolia que serve de moral, transmitindo a ideia de que tudo são eflúvios, brados e agitação estéril, e depois cada um regressa ao seu lugar.

Seja de que modo for, há muito que nenhum balanço de ordem crítica, vivaz, vem retificar minimamente os pressupostos, e talvez, como sugeria Cesare Garboli, por culpa dos olhos, o panorama vário daquilo que se imprime nestes últimos anos é desanimador. Antes de mais, é preciso assinalar como a edição independente já não comove, nem exalta, não tem conseguido construir uma zona autónoma, uma região de práticas indóceis e desligadas das pressões do mercado para uniformizar tudo, e desde logo a sua diversidade. É como se a crítica, que ao longo de séculos se foi enchendo de varizes de tanto esperar o infinito, tivesse feito contas e preferido mandar entrar qualquer magala que lhe trouxesse um ramo das flores mais colhidas. Mas se a literatura deve produzir leitores, a nossa só tem produzido um vago enlevo para os gerais pastores do senso comum.

Houve épocas em que a nossa literatura teve melhores leitores do que escritores, mas ultimamente os verdadeiros leitores são tão poucos que condenam aqueles que escrevem algo de minimamente desafiante a um regime de indigência de tal ordem que logo sufocam todas as suas aspirações. Deveria ser possível fazer uma história do público literário que não fosse uma história do mercado, mas entre nós ninguém já vê como isso se possa fazer.

Acontece que, se a literatura é um trabalho a partir das restrições que a cada momento nos são impostas, se nela se avança a partir daquilo que se supõe que não se pode fazer, hoje, antes de qualquer outra coisa seria essencial separar tanto quanto possível aquelas duas realidades.

Com o seu efeito benemérito e consolador, as listas do ano publicadas pela maioria dos periódicos com pretensões culturalizantes, pressupõe um resgate das obras mais relevantes que se foram publicando ao longo do ano. Mas a irrelevância dos seus juízos, o grau de indiferenciação que promovem, deixam claro que não há da parte destes leitores qualquer atitude de desafio aos esforços de vulgarização, de classificação interesseira, de representação oportunista, promovendo sempre outros cálculos que não um esforço de compreender o que há de eterno na massa daquilo que se vai propondo à circulação nos nossos dias.

Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – biografia de Luís de Camões
Isabel Rio Novo
Contraponto

Se batermos na portada deste admirável e populoso volume para o qual a autora mobilizou todos os seus modos e recursos, todo o seu saber, exigência e entrega, Camões responderá, à distância de cinco séculos e por entre um burburinho de figuras: “Tem gente!” Dir-se-ia que Isabel Rio Novo dá a Camões o que nele era falta: além de uma biografia digna deste nome, carnalidade. Liberto das grilhetas do mito e apoiado em sólidas e probabilíssimas pernas, desce Camões das alturas míticas ao modesto terreno dos mortais, sempre a balançar entre o caos e a ordem, a razão e a emoção, as promessas de alegria e a funda desilusão, a jovialidade desafiante e a resignação, o riso e o siso, o desnorte e o rumo, a impotência e o heroísmo. Por detrás do livro, além de volumosa massa bibliográfica, dois objetos parecem erguer-se: o crivo e o torniquete, aptos a distinguir factos, probabilidades fortes, meras possibilidades, conjeturas. Valeu bem, neste trato íntimo e continuado com o vate, o investimento de uma avultadíssima soma de tempo e energia. 

Na Morte de Erato
A. M. Pires Cabral
Tinta-da-China

Houve equívocos, caprichos, desentendimentos, arrufos, desaguisados, incompreensões de parte a parte, tempos de afastamento, concedidos um ao outro, como em qualquer velho casal, décadas a partilhar espaço e recursos. E até ciumeiras: “Porque me discrimina a poesia,/ e me dá tão pouco e dá/ tanto a outros que eu sei?” Mas também houve cumplicidades, afeto, dependência feliz, reflexão comum, epifanias. A relação deste poeta com a musa, começada em 1974 com Algures a Nordeste, ocupa o centro deste belíssimo livro, tão humorado quanto escuro. Espécie de balanço final, de confronto último, dir-se-ia que o anúncio da morte da musa é talvez manifestamente exagerado. A musa, que aqui tanto sopra “enfadonhas baforadas de sabenças”, como se apresta a fazer pertinentes comentários que aproveitariam a poetas contemporâneos, não é mera peça de adorno requerida pelo figurino lírico, passível de ser chutada para as margens da criação, ou fria figura de museu. É mulher exigente, caprichosa, desconcertante, pede contas, dá ‘chatices’. E, pese embora a provecta idade, ainda faz faiscar entusiasmos.  Próximo!

Vermelho Delicado
Teresa Veiga
Tinta-da-China

Alguns dos qualificativos com que a crítica lhe tem cercado o nome – esquiva, arredia, ausente, faltosa, desaparecida  – dizem bem da relação que Teresa Veiga mantém com o meio literário, relativamente ao qual desenhou um prudente perímetro de segurança: quase nula, desde a estreia, em 1980. Imaginamo-la, intensa, poderosa, ágil,  no justo lugar cimeiro de um pódio, indisponível para o diálogo visual, já em meteórica retirada, dando as costas a um regime publicitário (e esquemas conexos) que de modo discretamente irónico comparece nos seus livros. Constituído por sete contos, Vermelho Delicado é um livro magistralmente executado, rápido a girar a manivela do desvio e a trocar-nos as voltas narrativas, sábio na guinada, a reforçar a posição isolada da autora na narrativa breve. Põe-nos a conviver com várias estranhezas  e profissionais vários: uma castelã solitária, sensível à “dança dos dígitos”; um embalsamador, enfermeiras que escapam ao figurino comum, um engenheiro civil de fraca vida amorosa, apto a construir pontes explicativas com  cimento estranho; uma explicadora de línguas ao domicílio… E uma paleta variada de mulheres, movimentando-se em formato só aparentemente doméstico. O que nestes contos mais impressiona é talvez o que mais nos escapa. Insondável mistério.

Com a Noite de Perfil – ensaios sobre Eugénio de Andrade
Federico Bertolazzi
Documenta

Com este volume de assinalável conhecimento e fluência, prossegue o autor uma espécie de contra-ofensiva face aos olhares de superfície numa admirável quanto discreta flexibilidade de movimentos discursivos. É o seu modo peculiar de escrever ensaios, ao arrepio da aridez académica, do efeito de entulho, da repetição estagnante, improdutiva, mortal. Alguns dos qualificativos com que apetece rodear o nome de Federico Bertolazzi – rigoroso, exigente, desenredado, luminoso, profundo – aplicam-se também ao poeta  que ocupa o centro deste volume: Eugénio de Andrade, que iniciou a relação de Bertolazzi com Portugal, onde desaguou à procura dos lugares do poeta de Ostinato Rigore, que então já admirava. Escandido em 12 momentos, reúne ensaios que o autor, nos últimos vinte anos, dedicou a Eugénio de Andrade, e foi publicando de forma dispersa. 

Memórias Minhas
Manuel Alegre
Dom Quixote

Num poema de irónica provocação, pediu já o autor muitas desculpas por ter biografia, por ter enlaçado, no mesmo nó, política e poesia. A biografia nunca é a mais, como se existissem, a este nível, excrescências, partes decepáveis. Há a vida, por vezes a extravasar das molduras do verosímil, e a aceleração da História. E há a memória de ambas, desapegada  de pompa, de excessivos convencionalismos, da ambição de rebobinagem: “não se rebobina a vida”. É, neste sentido, um livro sem gravata, constituído por breves capítulos precedidos de títulos que logo nos levam aos lugares de Alegre (“Escola do Adro”, Escola da rua”, “Do Choupal até à Lapa”, “Luanda, pessoas e relatos”, etc.) ou nos põem diante de figuras relevantes – tudo unido por uma discreta estrutura aglutinadora. Leem-se de um fôlego, estas Memórias, como se fora um romance, constituído por episódios de matizes diferentes: aventurosos, pícaros, heroicos, dramáticos, divertidos, dolorosos, líricos, confessionais: “Pelas circunstâncias da minha vida, fui sempre um escritor solitário. Nunca pertenci a nenhum grupo, a nenhuma corrente, a nenhum café literário. Estive dentro do poder político, mas nunca do literário, que é o mais sectário e totalitário de todos. Quase não pude partilhar
o que escrevia”.