Embora a guerra civil da Síria, que durou cerca de 13 anos, tenha afetado todos as minorias étnicas e religiosas, em termos de deslocação foi a comunidade cristã a mais prejudicada e “de forma desproporcionada”, como salienta o relatório da Ajuda à Igreja sobre as perseguições do cristãos no mundo. O estudo publicado há cerca de um mês referente aos anos 2022 e 2024 revela que os cristãos, “que eram mais de 1,5 milhões antes do início da guerra em 2011, ficaram reduzidos a apenas 250 mil” no último ano. Existindo até a preocupação crescente quanto “à própria sobrevivência da Igreja” em algumas zonas do país. O núncio Apostólico da Síria, o Cardeal Mario Zenari, denunciava em Abril de 2024 que 500 cristãos sírios deixavam a Síria todos os dias. “Estamos a ver as igrejas a morrer”, alertou. De acordo com o núncio, foram cerca de dois terços os cristãos que abandonaram o país desde o início da guerra. Até o final dos anos 1960, representavam cerca de 30% da população, número que caiu para 10% quando começou a guerra civil depois da Primavera Árabe, de 2011. Hoje são 3%.
Cristãos em risco.
No passado dia 8 de dezembro o Governo da Síria caiu, terminando assim o fim do mandato de 50 anos da família Assad, derrubado por insurgentes liderados pelo grupo rebelde islâmico Hayat Tahrir al-Sham, apanhando o mundo inteiro de surpresa. Em declarações à ACI, agência internacional católica de notícias, o bispo Hanna Jallouf, líder da Igreja no país, afirmou que não esperava que Aleppo, uma das principais cidade sírias que fica a norte do país, perto da fronteira com a Turquia, ficasse nas mãos dos rebeldes e que o regime de Bashar al-Assad caísse em dez dias.
O risco de os cristãos ficarem agora pior do que estavam é grande. A incerteza do futuro do regime deixa-os bem mais inseguros do que a situação que já tinham, uma vez que as forças extremistas que lideram a insurreição não são tão complacentes com os cristãos como foi até agora Bassar al-Assad. “Inicialmente, estávamos com medo porque esse cenário era totalmente desconhecido”, afirmou o mesmo bispo. “Felizmente, houve garantias de que os cristãos serão parte integrante do tecido social da Síria, com compromissos de trabalhar colaborativamente na reconstrução da nossa nação. Recebemos garantias de que as nossas igrejas e propriedades permaneceriam intocadas”.
Apesar do medo, a queda de Assad é uma boa notícia: “O sol da liberdade nasceu sobre a Síria hoje”, disse o bispo Jallouf, relembrando que os cristãos são parte da nação. “Não esqueçamos que o cristianismo começou nesta terra, e foi aqui em Antioquia que os crentes foram chamados pela primeira vez de cristãos”.
Numa mensagem enviada à AIS, poucas horas depois da fuga de Bashar al-Assad e de Damasco ter sido ocupada, a irmã Maria Lúcia Ferreira, que vive num mosteiro numa pequena vila de Qara, afirmava que no início houve algum receio: “Os cristãos tiveram muito medo, mas agora estão a voltar a suas casas”, uma vez que que lhes foi dito que os rebeldes “por enquanto têm indicações claras e mostram respeitar todos”. Sendo que para esta religiosa “o grande perigo é o caos até haver um novo governo”.
Na mesma senda falou o núncio Apostólico em Damasco ao Vatican News, afirmando como positivo o facto de a queda do regime ter acontecido “sem derramamento de sangue, sem a carnificina que se temia”. Anunciou também que as forças que assumiram o poder “prometeram que todos serão respeitados e que uma nova Síria será criada. Esperamos que eles cumpram as suas promessas, mas é claro que o caminho ainda é muito árduo”.
Regina Lynch, a presidente executiva internacional da fundação AIS, fez entretanto um comunicado onde aponta para grande cautela: “A queda do regime de Assad e a tomada de Damasco pelos rebeldes marcam um momento histórico. Embora as minorias religiosas tenham sido amplamente respeitadas durante esta transição, a nossa experiência passada recorda-nos como as liberdades religiosas podem ser severamente restringidas em tempos de instabilidade na região”, disse.
Segundo a irmã Maria Lúcia Ferreira, em declarações à Rádio Renascença, o problema prende-se com o facto de as fações que estão agora no poder serem fações islamitas “e os cristãos têm medo, claro. A memória é muito recente da guerra, dos massacres, etc. Mas desta vez eles vieram de maneira diferente, a acalmar toda a gente (e a dizer) que nós somos o mesmo povo. Por agora está tudo bem. Mas quando vier um novo governo, não se saberá qual vai ser o lugar dos cristãos nisto tudo”. Ou seja, “quando um novo governo estiver estabelecido, depois, não se sabe a liberdade que os cristãos vão ter para continuar a viver a sua vida, sem que ninguém os incomode. Era o caso no antigo regime”, conta.
O mosaico religioso e étnico.
A população da Síria é composta por cerca de 70% de muçulmanos sunitas que vivem em todo o país e muçulmanos xiitas, que representam 13% da população, além de outros que completam os 94% da população síria. A população muçulmana cresceu entre 2016 e 2023 cerca de 3% enquanto os cristãos, que incluem ortodoxos gregos, ortodoxos siríacos, maronitas, católicos sírios, católicos romanos e católicos gregos, caíram para metade: de pouco mais de 6% para cerca de 3%. Quanto a minorias étnicas, contam-se grupos drusos, palestinos, iraquianos, arménios, gregos, assírios, circassianos, mandeus e turcomanos.
Em dezembro de 2020, o Presidente sírio Bashar al-Assad explicou o seu entendimento sobre o secularismo: “Algumas pessoas acreditam que um dos requisitos do secularismo, ou a essência do secularismo, é separar a religião do Estado. Isso não é correto: não há nenhuma relação entre o secularismo e a separação entre a religião e o Estado”.
Desde 2017 que as Forças Democráticas Sírias (SDF), dominadas pelos curdos e apoiadas pelo Ocidente, assumiram o controlo da cidade de Baghouz, no leste da Síria, considerado o último reduto do Estado Islâmico (EI), que se consolidou o poder da Bashar e o desmantelamento do autoproclamado califado de Abu Bakr al-Baghdadi. O EI perdeu a sua capital síria, Raqqa e o governo de Bashar Al Assad recuperou o controlo de 70% do território. Os cristãos respiraram de alívio com a neutralização dos radicais jihadistas e estarem sob o regime de Assad que professava a tolerância religiosa. No entanto, os cristãos continuaram a emigrar devido à pobreza extrema, da violação dos direitos humanos e ausência de liberdade. O regime de Assad permitia que as minorias das comunidades tradicionais pudessem praticar o culto livremente se se mostrassem leais ao regime, “no entanto, as leis e uma sociedade muçulmana conservadora continuam a limitar as atividades de evangelização. Por exemplo, as escolas cristãs podem ensinar religião, mas não podem exibir cruzes nas aulas nem ter uma capela no local”, lê-se no relatório sobre Liberdade Religiosa datado de 2023 da AIS. “Embora os crimes contra a liberdade religiosa possam ter atingido um pico na Síria antes do período em análise (entre 2011 e 2019), a liberdade religiosa ainda está sob pressão e a Síria continua a ser um país preocupante. Dadas as circunstâncias sociais e económicas desfavoráveis, o êxodo das minorias religiosas, incluindo os cristãos, irá provavelmente continuar, e as perspetivas negativas para o exercício da liberdade religiosa, sob vários níveis e formas de pressão, permanecem inalteradas para os que ficam”.
Segundo a análise feita pela mesma Fundação AIS relativa ao período em 2022 e 2024, o risco de perseguição tinha de fato diminuído: “O foco estratégico da agressão militante islamita transnacional contra os cristãos e outros alvos importantes deslocou-se agora decisivamente do Médio Oriente para África. Embora o militantismo jihadista tenha persistido em zonas do Médio Oriente como Idlib, na Síria, as autoridades estatais da região fizeram progressos significativos na repressão dos grupos islamitas violentos”.
Os tempos em que a população cristã era de 25%, no período após a Segunda Guerra, é apenas uma memória vaga. Agora, o risco de desaparecimento do cristãos na Síria é cada vez mais eminente e tudo depende do plano que os jihadistas têm reservado para os cristãos sírios.