Quando caem os tiranos. O que ficou do Iraque e da Síria após Sadam Hussein e Muamar Kadhafi

Quando caem os tiranos. O que ficou do Iraque e da Síria após Sadam Hussein e Muamar Kadhafi


As ditaduras no mundo árabe têm sido uma constante. A sua queda acaba por ser inevitável, independentemente dos fatores que a ela conduzam, e os países acabam por mergulhar no caos e na instabilidade sem perspetivas de um futuro estável.


Os territórios do Médio Oriente e do Norte de África têm uma história regimes tirânicos que se agarram ao poder até não poder mais. Esta forma de organização do sistema político leva, na maioria dos casos, a quedas abruptas manchadas de sangue. Foi o caso tanto do Iraque quanto da Líbia.

Saddam Hussein governou o Iraque por um período de 24 anos – de 1979 a 2003 – e Muamar al Kadhafi liderou o regime líbio durante 42 anos. Ambos saíram do poder executados, mesmo que em circunstâncias diferentes.

Num momento em que o regime de Bashar al-Assad caiu na Síria e a incerteza é um sentimento generalizado, o que se pode aprender com a história de países cujos ditadores foram destituídos? Veja-se os casos destes dois países já mencionados.

Iraque

Saddam Hussein chega ao poder em 1979 após a renúncia de Ahmed Hassan al-Bakr. Desde logo, o Estado centrou-se na sua figura e o punho de ferro foi-se tornando cada vez mais apertado. Na sua cruzada pessoal de se converter na principal potência árabe e ser o player mais relevante na região do Golfo Pérsico, Hussein deixou pouco espaço para a liberdade dos seus cidadãos. Apoiando-se na sua polícia secreta, o tirano foi estancando qualquer tipo de insurgência oposicionista.

Atacou o Irão e o Kuwait, com este último conflito a ser alvo de intervenção internacional. Os Estados Unidos lideraram uma coligação internacional e deu-se início à Guerra do Golfo. O conflito acabou pouco meses depois, o Iraque chegou a um cessar-fogo com a ONU, e uma das pedras angulares do acordo seria a proibição de o regime iraquiano produzir ou adquirir armas nucleares, químicas e biológicas. É um ponto fundamental para o que se sucedeu.

Após não cooperar com os observadores da ONU no âmbito de verificação do armamento, e com os Estados Unidos com o orgulho ferido após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a coligação ocidental que juntou os EUA, o Reino Unido e Espanha – reunidos na famosa Cimeira das Lajes em 2003 – declarou guerra ao Iraque com base na premissa de que Hussein possuiria armas de destruição maciça – que acabaram por se revelar inexistentes – e após o ditador ter resistido ao ultimato de George W. Bush, então Presidente americano. Foi o início da doutrina apelidada de “neoconservadora”.

O regime caiu após um mês e Hussein foi executado por enforcamento três anos mais tarde, acusado de crimes contra a humanidade.

Ainda em 2003, Paul Bremer, do Departamento de Estado americano, liderou a Autoridade de Coligação Provisória, responsável pelo período de transição. Foi, naturalmente, barrada a entrada do partido de Hussein nos planos de reestruturação do regime e foram desmantelados os serviços de inteligência e as forças militares. O problema principal do pós-Hussein foi a solução criada para o novo Governo, juntando vários grupos étnicos e religiosos como os curdos, os muçulmanos de orientação sunita e os muçulmanos de orientação xiita, como referiu a estação árabe Al Jazeera. O primeiro primeiro-ministro a ser eleito, Nouri al-Maliki tinha relações próximas com o regime iraniano e, como aponta o mesmo jornal, a incapacidade de estabelecer um acordo com a população sunita do Irão, juntamente com a corrupção e com instituições frágeis, conduziu à erupção de focos de violência um pouco por todo o país.

A instabilidade continua presente, com um Governo altamente impopular e o próximo possível líder, Moqtada al-Sadr, um nacionalista, é um dos responsáveis por episódios violentos durante a Guerra Civil. Assim, é seguro afirmar que o Iraque, mesmo tendo virado a página de uma ditadura repressiva, tem poucos motivos para festejar.

Líbia

Muamar al Kadhafi foi nomeado líder das forças armadas e chefe de Governo após um golpe de Estado que destronou o regime monárquico em 1969. A sua ação foi imediata. Acabou com as bases militares americanas e britânicas no país, expulsou os judeus e os italianos e ainda levou a cabo um processo de nacionalização de todas as empresas de petróleo que eram até então controladas por empresas estrangeiras. Tudo isto no espaço de três anos.

O líder da Líbia tinha como missão unir todas as nações árabes e teve sempre presente a sua hostilidade para com Israel e para com o Ocidente, apontando principalmente a sua inimizade com os Estados Unidos. Chegou a publicar o famoso Livro Verde, onde idealiza uma forma de socialismo islâmico.

A propósito da queda de Bashar al-Assad, ressurgiu um discurso de Kadhafi numa cimeira dos líderes do mundo árabe em Damasco no ano de 2008. No estilo que caracterizava a sua oratória, o líbio dirigiu-se aos presentes num tom carregado de indignação, a propósito da queda de Hussein: “Como é que podemos aceitar que uma potência estrangeira venha derrubar um líder árabe enquanto nós ficamos a assistir”, disse, ameaçando com a frase “Vocês são os próximos”, à qual Bashar al-Assad reagiu com uma gargalhada. O pessimismo estava mais latente que nunca no discurso de Kadhafi, chegando a lamentar: “O nosso sangue e a nossa língua podem ser um só, mas não há nada que nos possa unir”.

O descontentamento para com o regime era evidente, e foi criado o Conselho Nacional de Transição (CNT) que tinha com objetivo derrubá-lo. O país mergulhou numa Guerra Civil em 2011, onde a NATO prestou o seu apoio ao CNT, que viria a capturar e a executar o ditador.

Como pode ler-se numa nota publicada pelo United States Institute of Peace em 2019: “Durante o caos de um regime em desagregação, proliferaram grupos armados e o islamismo emergiu como uma nova e poderosa força política. Nas primeiras eleições democráticas da Líbia, os eleitores optaram maioritariamente por um governo secular. Mas a transição foi prejudicada pelas rivalidades entre os partidos seculares, os islamitas e os independentes, bem como pela escalada de confrontos entre as novas milícias”. Esta situação continua e o país não consegue ver a luz ao fundo do túnel.

Independentemente da avaliação otimista da correspondente Kim Ghattas no que à situação síria, estes dois casos mostram-nos que o que se segue à deposição de um tirano não é necessariamente positivo, pelo contrário. E a manta de retalhos em que se transformou o território sírio, juntamente com a índole dos grupos envolvidos na queda de Bashar al-Assad, após a análise do Iraque e da Líbia, transforma qualquer otimista num cético.