Talvez não fosse descabido se se impusesse um recolher obrigatório nas coisas literárias. Depois de uma certa hora, espantava-se os curiosos, tudo seria feito para desmoralizar turistas e pessoal estranho ao serviço. A noite e a madrugada ficariam reservadas àqueles que as escavam e inventam. De resto, anos de inspiração e perseguições levadas ao limite, tendem a cobrar um preço. E de tanto se deixar pedaços da musa em cada cena de crime, há um rastro que surge mais tarde para nos assombrar nos exames de rotina. Sinais de desgaste pelo isolamento, por ficar no mastro até altas horas, e, passados anos, pequenas traças vão surgindo nas radiografias, sombras injustificáveis nas ressonâncias magnéticas. Mas já se sabe que a literatura é uma arte custosa. E o resto são variações inconsequentes, gestos que logo perdem o seu vigor e exemplaridade.
“Todos podemos cultivar um devaneio constante e intenso que embote muito a acuidade de uma realidade adversa”, diz-nos Macedonio Fernández. Desde logo pode-se contar com as religiões, o patriotismo, o humanismo, e o escritor argentino admite que mesmo “a noção de honra é também talvez uma combinação voluntária de uma analgésica anti-Realidade”. Mas prefere pensar a literatura, e o romance em particular, como um total devaneio, que evita a alucinação da realidade, todas as formas de mimetismo, considerando-as a mácula da arte, para ambicionar uma obra em que a fantasia seja uma constante.
Traficado como um mito da literatura argentina, Fernández pertence a uma categoria de escritores bem mais rara do que se possa crer e, “quando vivida realmente, sem ostentações declaradas”, como assinala Claudio Magris, incómoda e ingrata: a dos escritores clandestinos. Mais do que pertencer-lhe, talvez ele tenha tido um papel crucial na sua definição, colocando-se entre esses para quem parecia ser vital esquivar-se ao regime de complô que é próprio da sociedade literária.
Sabemos como o que não faltam são escritores alternativos, e tantos que melhor se promovem ao afirmar-se como vozes de dissidência e marginalização ou, até, de oposição ao chamado establishment, mas também sabemos como tudo isso funciona amiúde como mais outro enredo distractivo, uma vez que esse contra-altar, tal como certas clamorosas transgressões são apenas um bilhete de entrada nos salões em voga. Longe desses cálculos, furtando-se a toda a convivência e aos férreos esquemas que servem para tornar um autor mais procurado, Fernández quis fornecer ao leitor uma chave de transmigração, ajudá-lo a furtar-se a todos esses enredos que o fazem sentir-se capturado, quis transmitir-lhe as infinitas possibilidades da criação. E vale a pena trazer aqui a noção que Ricardo Piglia nos estende do que possa ser um leitor ideal: este seria aquele que é produzido pela própria obra. O desafio que marca determinada escrita é a sua capacidade de nos fazer ler de um modo diferente.
Na letra microscópica com que inscrevia notas à margem dos seus próprios livros, e neste caso em particular, de um exemplar do seu Una novela que comienza, Fernández diz-nos que é preciso saber ser lento, saber calar-se, e reconhece que o artista aprende a viver a sós, “abandonado ao silêncio e ao ridículo”. A sua única tarefa e responsabilidade é a de aguentar com o peso das suas derivas, esse mergulho no enredo e no delírio de quem dá um começo às suas coisas e as leva até ao fim. Esses que seguem uma voz interna, caprichosa, cheia de exigências, e que mais ninguém escuta. E não há mapas nem referências muito concretas, nem chegam lá as notícias, nem importa saber se está mais acima ou abaixo, pois as linhas de orientação turvam-se… “O centro arruína tudo, agulha magnética e rosa dos ventos estão fora de questão, mas o conformismo cresce e reforça-se. Para evitar o contágio nesta sociedade que agoniza corroída pela avidez do dinheiro e das honras, é preciso desligar-se das correntes do meio e ignorá-las: não dar cavaco nem compreender por que as crenças dominantes são aquilo que são.”
Pois ele, depois de uma devastadora perda pessoal, escolheu ser velho, reconhecendo nessa condição um perigo essencial, se se considerar que os velhos são completamente indiferentes ao futuro. Viu a dignidade desses entardeceres da vida, esse estranho êxtase de sentir que a luz se esgota, pressentir que o mundo se acaba para nós.
Em vez de encarar tudo isso como uma forma de miséria, ele viu a força das despedidas, a vulnerabilidade desses que, na sua maioria vivem na pobreza, tossindo, encurvados, toxicómanos, bêbedos, alguns mesmo reduzidos a pequenos crimes, quase todos já sem companhia, já sem filhos, quase todos enfiados nalgum hospício, quase todos cegos, quase todos imitadores e farsantes. Antes isso, terá escrito como quem o diz a si mesmo, como quem aprende esse estilo oral de se dar conversa, sem abusar da paciência dos demais, mas num registo privado, que supõe um círculo de interlocutores bem conhecidos, cúmplices, que captam todos os subentendidos, como vinca Piglia.
Fernández foi esse escritor “por necessidade” à luz de velas em quartos de pensões, que converteu a literatura, mesmo aquela que assume uma feição mais combativa, polémica, num estilo íntimo, numa música de câmara. Não aceitou confundir-se com o outro lado das vanguardas que se foi valendo da timidez e do nervosismo de quem mergulha numa madrugada convulsa, em enredos estrepitosos, esse onde se acoitavam “publicadores de rascunhos, livros apressados, de oportunidade”. Preferiu todas as variantes da negação – engatilhar paradoxos, fugir às convenções realistas, virar o romance do avesso, dedicar-se a problemas filosóficos com instrumentos próprios de um humorista. Foi desenvolvendo “uma gramática onírica”, de acordo com Renzi, o alter-ego de Piglia. E este último acrescenta que uma das aspirações de Macedonio era converter-se num autor inédito. “Apagar os vestígios, ser lido como se lê um desconhecido, sem aviso prévio. Várias vezes insinuou que estava a trabalhar num livro que a ninguém ia ser dado ler uma única página. No seu testamento decidiu que o livro deveria ser publicado em segredo, por volta de 1980. A ninguém seria passada essa informação, de que o livro era seu.”
Depois de ter começado por entusiasmá-lo a ideia de publicar o “tal” livro anonimamente, chegou até a fantasiar com a hipótese de o fazer sair com o nome de um autor famoso. Seria um plágio ao contrário, atribuindo a outro o seu livro. Mas depois acabou por se contentar com a ideia de o livro ser publicado em segredo, lançado à corrente, sem apoio de espécie nenhuma. Agradava-lhe a ideia de trabalhar durante anos num livro pensado de forma a evitar todos os favores, um livro que poderia bem passar inteiramente despercebido. Um livro perdido no mar de livros futuros. Uma obra capital cifrada e escondida entre o porvir, como um enigma que se oferece aos vindouros.
Há aqui esse fervor que leva a um corte com aquele movimento típico das vanguardas que, ao mesmo tempo que rompiam com as práticas do mercado, não abdicavam da fantasia de gozar dessa efervescência dos meios de massas. Diz-nos ele que “a solenidade oca e os moralismos foram o suborno barato e eficaz para com a posteridade até ontem nascida”. E, noutro momento daquele seu romance escrito ao longo de décadas, adianta ainda que “a facilidade actual em escrever produz a escassez do legível e até suprimiu a injuriosa necessidade de que haja leitores”.
Este seu “romance-museu”, a que veio a dar o título “Museu do Romance da Eterna”, uma obra mítica que Fernández começou a alinhavar em 1904, trabalhando nele até à sua morte, em 1952, teve a sua primeira edição em 1967, chegando-nos quase seis décadas depois, e apenas graças ao empenho de um tradutor e editor, Diogo Fernandes, que resolveu enterrar-se também ele metodicamente neste cerco e desforra face às pretensões mais vulgares desses escritores incapazes de romper com a “veneração infantil pela Realidade”.
Assim, o livro chega-nos da forma mais clandestina possível, aterrando entre nós com o selo da Antítese, como um gesto completamente descabido, sem a menor possibilidade de gozar dos destaques a que concorrem todo o género de títulos e autores que competem e vivem reféns das parangonas.
Como um antídoto para tudo isso, esta é uma obra construída de forma a atrair o universo e concentrá-lo num museu fantástico e filosófico, pensado como uma espécie de folhetim, multiplicando as possibilidades de leitura, de forma a capturar o leitor no enredo como sua personagem central, e, assim, ela mesmo providencia um sem número de hipóteses críticas, desafios de toda a ordem, voos rasantes, desencadeando um delírio entre mundos alternativos e complementares.
Macedonio resume a empreitada falando numa “obra de imaginação repleta de eventos – com perigo de rebentar a encadernação – e tão precipitados que já começaram no título para que caibam e tenham tempo; o leitor chega tarde se vier depois da capa”.
Piglia diz-nos que Macedonio importou para a literatura a tradição do tango, e que até se confundiu com ela no momento em que perdeu a mulher, Elena Obieta, tendo-se sustentado até então do enlevo amoroso, com uma existência bastante banal enquanto procurador, entretendo-se numa litigância que servia mais para se entreter, uma vez que os réus, cuja condenação deveria promover, normalmente se safavam. Mas depois daquela perda irreparável, entrega aos cuidados dos avós e dos tios os quatro filhos, e decide internar-se na lenda, através da construção de um universo narrativo que transcenda o regime temporal e os seus constrangimentos, à semelhança desse herói do tango que busca uma distância do mundo para reavivar as memórias que lhe importam, para ir ao limite da sua lucidez, captando o sentido da vida.
É um romance que enfrenta os elementos da fatalidade da existência, a obra de um homem mortalmente ferido, mas que não se resigna, que trata de investigar os processos da consciência para resgatar aquela a quem está ligado por um laço que transcende o tempo de uma vida. Também por isso, este é um romance que rompe com as categorias habituais sobre a leitura e a apreensão de um universo narrativo, o qual, ao organizar-se como um museu, permite todo o tipo de abordagens e devaneios. O seu autor dirige-se em particular a esse leitor saltitante, a quem reconhece a dignidade de um leitor completo. Ele admite que o museu responde a essa ânsia de não se ater a uma estrutura ou mecanismo, que não se destina àqueles que apenas buscam desenlaces, mas acomoda os que preferem fazer uma leitura salteada, parcial, episódica, suspendendo-a a favor dos seus próprios nexos, investigações, enredos autónomos.
Dedicando-lhe este seu esforço, o livro funciona como um folhetim, admitindo todas as possibilidades de combinação, suspendendo os pressupostos e a acção, interrogando-se a todo o momento sobre aquilo que ali estamos a fazer. Assim, Macedonio avisa esse leitor que, depois de tanto saltitar, deu enfim com um livro “tão escavacado que não teve recurso senão lê-lo seguido para manter desunida a leitura, pois a obra saltitava antes”. E ainda acrescenta: “não andes a provar o romance aqui e ali para ver: se já está, se lhe falta açúcar ou apurar; e farias melhor qual dono da casa que, ‘só para provar’, como diz mansamente a cozinheira, entala o guardanapo e se serve de faca e garfo. Tornei-te leitor contínuo graças a uma obra de prefácios e títulos tão soltos que foste por fim encadernado na continuidade inesperada da tua leitura”.
Com os seus tantos prólogos, esta obra exclui a possibilidade de lhe ser dado um fim, e também por isso põe um personagem a tornar explícito que o romance não tem ‘fecho hermético’ senão uma saída para outro, pois o enredo revolve-se de tal modo que aquilo que nos oferece, como sugere Piglia, é uma poética do romance, uma obra infinita por admitir todas as variantes, todos os desvios, em que a posição do autor e do leitor se reforçam e revezam: “Quis distrair-te, não te quis corrigir, porque pelo contrário és um leitor sábio, pois praticas a arte de entreler que é o que mais forte impressão lavra, conforme a minha teoria de que as personagens e os acontecimentos apenas insinuados, habilmente truncados, são os que mais ficam na memória.”
Esta mesma poética do romance, “ébria de significados”, tão cheia de possibilidades, em que a realidade opera o próprio corpo como um mistério em eterna decomposição e recomposição, foi aquilo que levou Borges a esquivar-se às formalidades monumentais e que tantas vezes encurralam os autores nas suas próprias obras. E não é difícil reconhecer como as premissas do romance de Macedonio derivaram num dos mais célebres contos de Borges, “O Aleph”, em que o narrador mergulha na cave de um casarão devoluto na rua Garay em Buenos Aires, deparando-se com “uma pequena esfera de cor tornesol, de um fulgor quase intolerável”, esse ponto a partir do qual se vê a totalidade do universo, em simultâneo e sob todos os ângulos, e que lhe permite reencontrar-se com Beatriz, a amada morta.
E não é difícil fazer remontar o fascínio de Borges ao prólogo que Macedonio dirige “aos não peritos em metafísica”, e no qual este formula a sua teoria da Eternidade, notando que esta exige idóneos exercícios de Emancipação de limitações absurdas. E a este segue-se a cogitação sobre “o fantasismo essencial do mundo”, que claramente ficou a lavrar no íntimo do mais prodigioso dos leitores do século XX: “Sintamos, amada, o vazio do mundo, da apresentação geométrica e física das Coisas, do Universo, e a plenitude, a certeza única da Paixão, sem pluralidade./ Sorrirás como que enlaçada no vazio desde uma janela que parecia dar para uma intensa e inamovível Realidade Externa e que bruscamente se reduz a um ponto, se pensares por um instante que numa imagem de uma cena que sonhas ou imaginas pensando desperta pode existir toda a extensão do mundo e porém cabe no teu espírito ou mente, ou se quiseres, na vibração de uma molécula imperceptível da tua ‘massa cinzenta’ como dizem os fisiologistas. Se, tendo abarcado com o teu olhar um panorama com sol, terra, céu, bosques, rio ou mares, ribeiras, edifícios, logo o pensas ou sonhas ter exactamente a mesma imagem imensa encerrada num ponto da tua mente, da tua alma, ou se se quiser numa microscópica célula nervosa da tua massa cinzenta.”
Mais à frente, Macedonio chega a essa compreensão decisiva e que lhe permite encarar a realidade apenas como uma proposta entre tantas mais possibilidades… “Se dentro da minha mente não existir extensão e em qualquer imagem minha posso representar tudo o que vi, é simplesmente porque não existe Extensão, todo o Universo não é mais do que um ponto e, menos ainda, não é mais do que uma ideia, uma imagem na minha alma.”
E agora veremos porque a influência de Macedonio Fernández foi de tal modo importante para Borges que, hoje, está ainda em processo um esforço para exumá-lo da tenebrosa admiração que aquele lhe dedicou, tendo levado a que a figura e biografia do seu percursor apenas sobrevivesse depois de ser demolhada no ácido de uma lenda, que o deixou para lá de toda a hipótese de se reconhecer o homem. Assim, para se reaver uma percepção mais clara da obra de Fernández é preciso recompô-la tendo noção de que o mito continua a agir sobre ele, ao ponto de muitos leitores se terem convencido de que não passava de um personagem perdido nos labirintos daquele temível bibliotecário.
Já em 1977, num ensaio sobre a ficção científica na argentina, o escritor e crítico Elvio Gandolfo notava que, durante um período demasiado largo, Macedonio se vira transformado num “recipiente de inumeráveis rumores e anedotas, as quais, paradoxalmente, o haviam privado quase por completo de uma biografia real.” É certo, contudo, que as suas teses não teriam alcançado tantos leitores sem este industrioso fabulista que foi Borges, e o próprio Macedonio reconhecia esse sortilégio num dos três livros que publicou em vida, (“Papeles de Recienvenido”): “Nasci portenho num ano muito 1874. Não então de imediato, mas pouco depois, comecei a ser citado por Jorge Luis Borges, com tão pouca timidez de encómios que pelo terrível risco a que se expôs com essa veemência, comecei a ser eu o autor do melhor que ele havia produzido. Fui um talento de facto, por avassalamento, por usurpação da obra dele. Que injustiça, querido Jorge Luis.”
Por sua vez, este último, num texto que leu no enterro de Fernández, confessa: “Naqueles anos imitava-o, até à transcrição, até ao apaixonado e devoto plágio.” E anos mais tarde, terá prometido que Macedonio iria ao encontro da posteridade através da sua obra e ainda como o centro de uma “carinhosa mitologia”.
É extremamente aliciante mergulhar neste pacto de usura, de uma forma de plágio “devoto”, quase religioso, genial e avassalador. E deve assinalar-se que o mito nasce cedo, uma vez que Borges começa a ouvir falar de Macedonio pelo pai, que fora seu amigo e colega nos tempos em que faziam o curso de Direito na Universidade de Buenos Aires, e a partir daí, porque esse embalo e encanto nutrira a própria relação que mantinha com o pai, de quem herdou a biblioteca e tantas das preferências literárias e rumos que começou por desbravar, seria difícil depois corrigir a trajectória dessa admiração.
Borges foi insistindo num certo retrato afectivo de um génio para quem a escrita nunca foi uma tarefa essencial, mas tão-só um mapa onde mover as peças e alargar os horizontes da sua reflexão. “Vivia para pensar. Abandonava-se diariamente às vicissitudes e reviravoltas do pensamento, como um nadador se lança a um poderoso curso de água, e essa forma de pensar chamada escrita não lhe custava o menor esforço. Na solidão do seu quarto ou na azáfama de um café, enchia páginas e páginas com a elegante escrita de uma época que não conhecia a máquina de escrever e para a qual a caligrafia clara fazia parte dos bons costumes. Macedónio não dava o menor valor à palavra escrita; quando mudava de casa, costumava esquecer os manuscritos de natureza literária ou metafísica, que se tinham acumulado sobre a mesa e que lhe enchiam as gavetas e os armários. Perdeu-se assim tanta coisa, talvez de forma irreversível. Lembro-me de o censurar por essa distracção; disse-me que supor que podemos perder seja o que for é uma arrogância, pois a mente humana é tão pobre que está condenada a encontrar, perder ou redescobrir sempre as mesmas coisas. Com o passar dos anos, acabei por aceitar essa verdade.”
Por várias vezes Borges esboçou esse retrato, ele que tinha a capacidade de, numas poucas linhas, definir para sempre um perfil, voltava a Macedonio como a uma presença-ausência que o assombrava, uma figura diante da qual acumulara uma extraordinária dívida. E já perto do fim percebe-se como continua cativo do museu do seu percursor, esse livro labiríntico que adia sucessivamente o seu começo, como se essa encruzilhada, esse jardim dos caminhos que se bifurcam eternamente, fosse a verdadeira promessa que um romance faz ao seu leitor. Foi já tarde que Borges publicou o seu “Prólogos com um prólogo de prólogos” (1975). De algum modo parece ter bebido naquela fonte inesgotável o metabolismo do seu próprio processo de invenção, e ergueu também esse culto expiatório, fingindo que ao seu mestre não lhe importava ser reconhecido primeiramente como um autor. Insistia que a Macedonio lhe interessava menos publicar do que o próprio exercício da literatura. “Considerava que escrever e publicar eram tarefas subalternas”, insiste ele. “As suas histórias têm o sabor do espontâneo, e também a frescura e o desleixo do artigo jornalístico. Mallarmé ou Milton buscavam a justificação das suas vidas na redacção de um poema ou de uma página esplêndida; Macedonio o que queria era compreender o universo e saber quem era ou se era de facto alguém.”
O próprio Macedonio parece corrigir esta ideia, dizendo-nos que “não há pior coisa do que o desleixo, se não for a fácil perfeição da solenidade”. E, nesse romance que pretendia ser o derradeiro momento e esgotar de vez aquele género, diz-nos que “este será um livro de eminente desleixo, ou seja, da máxima descortesia em que se pode incorrer com um leitor, salvo outra descortesia maior ainda, tão usada: a do livro vazio e perfeito”.
Diz-nos também que fez quanto pode para que, “no cerzido de múltiplas passagens da minha prosa romanesca, que arrasta consigo infatigáveis remendos de revisão, não se advirtam costuras; e concedo-me algum mérito ao confessar o que ninguém descobriria, porque se algum livro deu trabalho foi este, e eu creio que toda a arte é labor e muito árduo”.
O que Macedonio dispensa é aquela glória que faz de um autor em si mesmo um género, algo que se encerra em si mesmo, e que, no limite, transforma a literatura em mais outra forma de estéril devoção. Assim, em muitas das suas páginas ele exprime uma confiança nesses leitores que violam o recolher obrigatório e pagam um alto preço, que vêm os seus destinos complicar-se de forma irrazoável levando às últimas consequências os seus devaneios. “Mas sei que me aguarda uma pessoalíssima imortalidade compensatória: Passarão as gerações de leitores de montra e ninguém o comprará… / Este será o romance que mais vezes terá sido atirado com violência ao solo, e outras tantas apanhado com avidez”, escreve Macedonio.
“Romance de leitura de irritação: o que como nenhum outro terá irritado o leitor com as suas promessas e a sua metodologia de inconclusões e incompatibilidades; e romance, no entanto, que fará fracassar o reflexo de evasão à sua leitura, pois produzirá um interessamento no ânimo do leitor que o deixará aliado ao seu destino”.
Como se sabe, Borges estava menos comprometido com a literatura do que com a irradiação mitológica que esta ainda oferecia, e não podia deixar de sentir um fascínio renovado à medida que ele mesmo se tornava uma celebridade literária ao contemplar esse escritor que abdicara até de se fazer publicar, atribuindo a outros a sua inteligência.
Noutro dos retratos que nos oferece de Macedonio, fala-nos desse tipo com queda para planos políticos sem quaisquer compromissos com a moralidade quotidiana, esse cultor de paradoxos, xadrezista fanático, um Dom Quixote sorridente e meditativo. Dá-nos conta de uma comunidade anarquista que ele teria tentado fundar nas selvas do Paraguai, na viragem do século, tendo desde então assumido um desprezo absoluto por todos os zaratustras que se esforçam por perverter as formas governamentais ou os vínculos sociais.
Exercitado no silêncio, Borges diz-nos que, nesta era dos literatolhidos, Macedónio é talvez o único homem que vive plenamente a sua vida, sem partir do princípio que os seus dias são menos reais por não abalarem a vida dos outros, salpicando-os com citações, livros ou fama. “Um homem que prefere derramar a sua alma numa conversa a definir-se numa página.”
Uma biografia de Macedonio Fernández só se publicou já este século, em 2002, tendo resultado do empenho e da investigação criteriosa levada a cabo pelo escritor Álvaro Abós, que logo no prefácio faz saber que o mito cristalizado por Borges continua a induzir muitos em erro. Desde logo, Abós faz saber que não houve nenhuma comuna no Paraguai, e que não havia também nada de extravagante na atitude nem nos modos de Macedonio, que nunca deixou para trás manuscritos nas gavetas e armários das pensões por onde passou, mas que, apesar da sua errância, foi sempre muito cioso da sua obra, preservando-a com cuidado, facilitando aos herdeiros a edição póstuma da sua obra. Hoje, vão-se somando os tomos desta, entre ensaios e textos teóricos, desvarios, novelas bichadas, poemas, relatos de toda a espécie, uma infinidade de projectos abandonados, além da correspondência com o filósofo William James, irmão de Henry James, entre outros.
Abós também contesta a ideia de que Macedonio tenha sido um génio oral, e que a sua obra seria um vago apêndice, vincando mesmo que esta revelou uma força seminal, provando ser das mais influentes entre as gerações que lhe sucederam. Na sua biografia fica claro que também não foi um “viúvo tenebroso”, mas alguém que reconstituiu a sua vida, e que passou os últimos anos ao cuidado do seu terceiro filho, o escritor e académico Adolfo de Obieta, que conta como uns dias antes de morrer, a 10 de fevereiro de 1952, lhe disse: “Chegou a hora, vou morrer.” Mas passaram-se ainda vários dias e, perplexo, Macedonio comentou: “Como é difícil um tipo descarnar-se”. Morreria no dia seguinte, sem a menor queixa, nem dando sinais de padecer de qualquer enfermidade.
Apesar de serem cada vez mais fortes os argumentos que nos fazem pensar que a posteridade dificilmente se desinteressará dele, está ainda longe de se libertar do magnetismo de Borges. Este, no célebre ensaio “Kafka e os seus precursores”, fixou aquela que viria a tornar-se uma das suas mais citadas noções: a de que todo o escritor cria os seus precursores. E pode de facto afirmar-se que Borges cria Macedonio, não apenas porque o fez comparecer assiduamente nas páginas da sua obra, mas também porque, hoje, dificilmente um leitor chega a Macedonio sem passar antes por Borges.
Só então poderá dar-se conta de como tantos dos aspectos que consideramos traços centrais da personalidade deste último tinham já comparecido na obra de Macedonio. Acontece que surgem muitas vezes de forma algo embrionária, na forma de intuições, faltando aquele vigor de um sublinhado. É fácil, por isso, que sejam lidas por nós como se fossem a influência do discípulo sobre o mestre.
Um exemplo, é essa proposição que Borges desenvolve no ensaio sobre Kafka e que é publicado em 1952, tendo a mesma ideia surgido antes num ensaio de Macedonio, publicado em 1910: “Necessidade de uma teoria que estabeleça como não é o segundo inventor mas o primeiro que comete o plágio”.
Esta desafiadora noção sobre a relatividade das cronologias e da originalidade na literatura só alcança um verdadeiro eco através de Borges, que, por essa razão, e pelo fascínio e devido à influência que veio a exercer, actua como um precursor de Macedonio, sendo que, na mente de tantos leitores, como sugere o crítico Luis Othoniel Rosa, Macedonio parece um Sócrates ágrafo sobre a escrita de Borges.
O certo é que a partir do momento em que o leitor aceita o convite para as tantas derivas que este romance-museu lhe propõe, consegue ouvir-se a ferrugem a descascar dos ossos daquele velho mito, e o desafiador impulso das suas noções metafísicas soa, então, como uma arma contra este ambiente de lar de repouso em que os livros são lidos apenas como distracção ou como um gemido. Com este processo de afinação do juízo do leitor, e com o seu atropelo de sugestões, o romance de Macedonio solta essas “abelhas da pulsação, da Vida”, e tem um fim claro: infectar-nos com uma ideia: a não-morte… “e trabalho-a artisticamente através da troca do eu, a derrota da estabilidade de cada um no seu eu”.
O escritor mostra-se consciente da dificuldade do seu propósito, e, talvez, em certo sentido, da necessidade de digerir uma e outra vez o seu fracasso, de modo a vislumbrar-se aqui e ali, essa abertura radical. “É muito subtil, muito paciente, o trabalho de remover o eu, de desacomodar interiores, identidades. Só o consegui em toda a minha obra escrita em oito ou dez momentos em que, creio, duas ou três linhas comovem a estabilidade, a unidade de alguém, às vezes, creio, a mesmidade do leitor. E não obstante penso que a Literatura não existe porque não se dedicou unicamente a este Efeito de desidentificação, o único que justificaria a sua existência e que só esta belarte pode elaborar.”