- No nosso país, a temperatura baixou na semana passada, choveu um pouco, trovejou e o inverno fez-se anunciar com a discrição possível, própria das alterações climáticas.
É tempo de agasalhos, de leituras mais longas, de convívios mais distendidos com os familiares e amigos, saboreando vinhos generosos e guloseimas tradicionais, mesmo que interditas por qualquer dieta, em outro momento do ano.
É tempo, também, de recordar momentos passados com igual ou semelhante conforto, com mais ou menos caprichos concretizados ou aspirações por realizar.
Rever álbuns de fotografias, dar conta dos que já cá não estão, neste ano, para cear connosco, o que pressupõe dar um arrumo diferente às cadeiras da mesa de Natal.
Olhamos pelas janelas a chuva, ouvimos a música do vento a silvar nos ramos e a varrer as folhas das árvores e pensamos, com prazer, como é bom estar onde estamos e poder, confortavelmente, desfrutar de todas estas imagens e memórias.
- Fechamos propositadamente a televisão, para não ouvirmos, uma vez mais, os assustadores discursos dos senhores da guerra proclamando que temos de deixar de pensar em mais e melhor serviço público de saúde, em salários condignos para os que estudaram e trabalham, em pensões justas, por merecidas, para os reformados, em creches e escolas bem apetrechadas para os bebés e estudantes.
Só assim, repetem incessantemente, poderemos comprar mais mísseis, mais drones, mais aviões de guerra, mais tanques, mais submarinos, mais bombas de deflagração, mais minas antipessoal, mais fardas, mais galões para fixar nas mangas dos generais e almirantes, mais flores para homenagear os nossos pais, os irmãos mais velhos e os filhos que a guerra irá, por certo, levar.
Vemos, nos ecrãs dos silenciados aparelhos da televisão, que a neve que cai abundante, moldando a paisagem nos países onde, desgraçadamente, grassam, persistentes, as batalhas desta nova guerra.
Ela, a neve, não evoca mais a paz branca que a música de Chopin faz apetecer e que, desde a II Grande Guerra, parecia voltar, cada ano, sempre mais poética e encantatória.
As imagens dessa mesma neve não vêm, hoje, sequer, acompanhadas de animada música de Natal patrocinada por conhecidas marcas de produtos de beleza.
A música que a anuncia é, agora, a das palavras dos e das analistas, que, com rara lucidez, dissertam sobre as possibilidades que a neve oferece, ou não, para o avanço ou recuo das frentes de batalha, realizados com armas mais modernas, mais potentes e mais rápidas.
A verdade é que os armazéns das fábricas que as produzem foram já esvaziados das mais velhas que, consumidas até ao último cartucho, no conflito atual, se mostraram inadaptadas à velocidade e violência que se quer de uma guerra atual.
- De repente, batem-nos à porta e, aberta esta, deparamos com um jovem sem abrigo que nos conta que, já sem família de suporte, o salário auferido – ele trabalha – não lhe permite alugar nem sequer um quarto numa residência coletiva, como tantas que existem hoje pela cidade e que nós víamos antes, muito críticos, em filmes como o Dr. Jivago.
Nesse tempo de revolução e guerra civil, foi essa a solução – percebemos agora – encontrada para evitar as mortes que um frio, que nem sequer conseguimos imaginar, naturalmente causaria a quem dormisse ao relento.
Mesmo sabendo e recordando a moral pragmática de que mais vale ensinar a pescar do que oferecer os restos do peixe que ontem jantámos, acabamos por ajudar o nosso visitante, transido de frio, da maneira que podemos e que ele, no momento, entendeu mais útil: um cachecol!
Envergonhados com a situação, lá lhe explicamos que todos temos de fazer sacrifícios para pagar as novas armas de que desesperadamente necessitamos para sobreviver.
«O senhor é novo e robusto e tem a sorte de, tendo estudado, ter emprego; vá lá! Como sabe, e já vi que é instruído, só por causa da necessidade da aquisição de tais armas, o Estado teve de abandonar a construção de casas de renda acessível, projetadas para acomodar as camadas mais necessitadas da população residente no país.» – tentamos explicar.
«Ouviu o Rutte? Claro que não, não tem televisão; e no telemóvel, viu? Pois é, não tem rede. Tente num centro comercial!»
«Temos tanta pena, acredite, mas reconhecemos que o espaço destinado a tais habitações para jovens a auferir salários mínimos tem, agora, infelizmente, de ser melhor aproveitado, pois dá para edificar condomínios confortáveis e seguros para os cidadãos dos países ricos, nossos parceiros e aliados, cujas rendas elevadas, que estão dispostos a aceitar, nos ajudarão a pagar as armas que lhes vamos comprar. Não lhe parece lógico?» – acrescentamos, hesitantes.
«Nem o senhor imagina como eles, os estrangeiros ricos, muitos provindos dos países em guerra, gostam do nosso clima ameno e de quanto estão dispostos, por isso, a pagar por um apartamento nesses novos condomínios a construir no local onde as casas com rendas acessíveis estavam projetadas.» – dizemos, com medo de não sermos bem compreendidos.
«Nem vinte casais de portugueses da classe média juntos, calcule, estariam em condições de pagar a soma que eles vão dar por essas casas, acredite!» – esclarecemos, entusiasmados, enaltecendo a inteligência financeira dos que assim decidiram.
«Repare nos carros luxuosos que trazem dos seus países para evitar – os desgraçados! – que guerra lhos destrua! Tem-nos visto rodar em Lisboa ou no Estoril; não são lindos?» – concluímos e, por estar frio, pedimos desculpa por ter de fechar a porta.
Antes, porém, ainda dizemos – «Temos de ser uns para os outros, não é? Volte cá para a semana, que vamos procurar encontrar um saco cama que guardámos na arrecadação e que lhe dará muito jeito.»
- De repente, lembramo-nos que temos de passear o cão.
Vestimo-nos com um casaco bem acolchoado, que comprámos no estrangeiro, e lá saímos para que o Bobi possa aliviar-se.
Dados uns passos na rua, o Bobi viu um candeeiro de iluminação pública, parou, encostou-se e, sem nenhum sentido político, alçou a perna.
Aí, colado no poste, demos com um cartaz de um partido da extrema-direita exibindo a Cruz de Cristo e proclamando: «Portugal para os portugueses!»
Numa parede em frente, mesmo caiada várias vezes por cima, lemos ainda os restos de umas antigas pichagens vermelhas, dizendo: «abaixo a guerra colonial, abaixo a guerra no Vietnam!»
«Quem as teria escrito? De que lado estarão, hoje, os que as pintaram?»
Tempos outros, mas também tempos de guerra.