Alunos desmotivados, professores desesperados, pais apreensivos: o desanimador cenário repete-se por salas de aula e lares de norte a sul, um pouco por todo o país.
A quem deverão ser atribuídas as culpas por este estado de coisas no ensino? Aos alunos, que deviam interessar-se pela matéria ensinada na escola mas que em vez disso só querem brincadeira e telemóvel? Aos professores, que não conseguem tornar os conteúdos estimulantes? Aos pais, que não explicam aos seus filhos a importância do que se aprende na escola? Ou às matérias ensinadas – nas quais os jovens não encontram qualquer utilidade nem relação com as suas vidas, anseios e preocupações?
“Mas afinal para que é que isto serve?”, questionam-se eles, enquanto se debatem com raízes quadradas, derivadas, orações subordinadas e outras que tais. Valerá mesmo a pena matar a cabeça para empinar tudo o que é exigido?
A discussão não é nova. Já em 1947 António José Saraiva fazia um diagnóstico arrasador do ensino num opúsculo intitulado A Escola – problema central da nação: “Em troca de um quadro social bem definido, a escola ofereceu essa coisa dispersa e acéfala que é a aula colectiva, onde os alunos estão ligados pela solidariedade do tédio; em troca de tarefas bem definidas cuja finalidade era imediatamente percebida pelo educando, a Escola ofereceu a ‘lição’ que o aluno recebe passivamente do professor. Neste novo quadro o aluno sente-se já não uma criatura com uma tarefa e um lugar bem definido na vida, mas um ser sem norte nem objectivo, cujo único papel é o de deixar correr o tempo porque tanto faz o dia de amanhã como o de hoje”. Muitos alunos de hoje, que esperam ansiosamente pelo toque que anuncia o fim da aula e o regresso à liberdade, não teriam dificuldade em rever-se nestas linhas escritas há perto de oito décadas. Rematava o historiador da cultura: “A Escola está formando em vez de homens essa coisa sem forma e sem espinha a que se chama o ‘estudante’, produto social típico dos nossos métodos pedagógicos”.
A Revolta contra o estrangulamento Levando a indagação ainda mais longe, pode-se questionar não apenas a utilidade do que se aprende na escola, mas inclusivamente se é benéfico ou pernicioso. Até que ponto o ensino massificado, tipo ‘linha de montagem’, ao invés de desenvolver, formata os alunos todos por igual, limitando-os e castrando-os na sua individualidade?
Há 99 anos, num texto destinado ao terceiro número da revista La Révolution surréaliste, Antonin Artaud denunciava: “A Europa lógica esmaga incessantemente o espírito entre os martelos de dois termos, abre e torna a fechar o espírito. Mas agora o estrangulamento está a atingir o seu grau mais elevado, há demasiado tempo que sofremos debaixo do arnês”.
Um bom exemplo da revolta contra o “estrangulamento” é a atitude de um professor carismático, de seu nome John Keating, superlativamente interpretado no grande ecrã por Robbin Williams. O filme, baseado no romance de N. H. Kleinbaum, é, claro, Clube dos Poetas Mortos.
Enquanto um dos alunos lê uma página de Understanding Poetry, obra ficcional que propõe uma fórmula para avaliar a boa e a má poesia, o professor levanta-se e desenha um diagrama no quadro. Um dos alunos, pouco interessado na leitura, divaga; outro aproveita para dar uma dentada no lanche; a maioria ouve e copia obedientemente o diagrama do quadro. Até que Keating introduz uma nota de irreverência que vai agitar a assembleia: “Lixo! Escória! Quero que rasguem isso”. Os alunos parecem indecisos, não sabem se aquele professor meio louco está mesmo a falar a sério. Por isso ele encoraja-os. “Vamos, arranquem essa página. Isso não é a Bíblia, não vão para o inferno. Quero esse lixo no caixote, que é onde ele devia estar”. A passividade dá lugar a sonoras gargalhadas.
Simpatia pela cigarra Outro intelectual desalinhado, Agostinho da Silva, apontava: “Diria pensar que a natureza humana, mais do que boa é excelente; que a sociedade e nela a educação, ajudando o homem a sobreviver, o tem limitado, e muito, no melhor, que é o seu ser livre”. Num outro texto sobre a escola, Agostinho defenderia a alegria, por oposição ao sentido do dever. “Os interesses e os apetites dos homens, devem ceder seu trono às características infantis de atenção contínua à vida, de existência total no presente, de ignorância de códigos, manuais e fronteiras, de integração no sonho, de valorização do jogo sobre o trabalho, de simpatia pela cigarra, que logo a nossa escola substitui pelo aplauso à formiga, já que (a primeira) convém à alegria, apenas, e a outra ao lucro”. Por outras palavras, a sociedade faria melhor em aprender com as crianças, em vez de tentar moldá-las aos seus propósitos.
“Parece um asilo” Que a escola desempenha um papel fundamental na sociedade, ninguém duvida. Quem aturaria as crianças e jovens enquanto os pais estão a trabalhar? Quem lhes ensinaria os rudimentos de Português, Matemática, História, Geografia, Físico-Química, etc.?
O problema parece a insistência na vertente mais teórica, com um certo pendor para a burocracia. Para quê ensinar tanta e tão complexa gramática, por exemplo, quando todos nós aprendemos a falar – alguns corretamente – sem precisar para isso de conhecer as regras da construção frásica e a sua complexa nomenclatura? Não poderá esta insistência acabar por provocar o desinteresse, quando não a rejeição da própria língua? Espremidos os milhares de horas consumidos na escola, o que fica para a vida? É no mínimo preocupante que, ao fim de 12 anos de estudos, muitos cheguem à universidade sem saber escrever e falar corretamente.
“Nós exigimos da criança aquilo que não admitiríamos para nós próprios: que ela tenha o amor da ciência pura e desinteressada, e que ela se reduza a uma atitude meramente passiva e receptiva”, continuava Saraiva, com o seu aguçado sentido crítico. “É claro que em tais condições a matéria ministrada nas escolas não pode interessar o aluno normal. O estudo é um trabalho a que ele não vê finalidade: é como para um burro andar à nora. E o que é que nós inventámos para obviar a esta situação, para criar na escola um interesse e um objectivo visível a alcançar? Inventámos, como sabeis, o sistema do exame e da nota”.
Em seguida, o historiador enumerava como o sistema de avaliação pode ter resultados perversos: “Se for possível alcançar a nota sem aprender a matéria, o aluno tentá-lo-á visto que a nota é o seu único objectivo; e a fraude torna-se, por esta razão não um caso esporádico mas geral e comum, a tal ponto que o aluno perde a noção da fraude. Se por outro lado o aluno tem uma personalidade exuberante e bem desenvolvidos os impulsos normais da sua idade, sem ter a par disto um grande poder de inibição, será um fracassado na escola porque não conseguirá substituir os seus interesses espontâneos por interesses fictícios e impróprios da idade; e assim muitas crianças vigorosas e inteligentes serão inutilizadas pela vida escolar. Finalmente muitos alunos fracamente dotados, sem interesses acentuados, pouco activos, anormais para a sua idade, conseguirão bons resultados, devido precisamente à sua passividade. As nossas turmas tornam-se desta maneira ajuntamentos de fraudulentos inconscientes, fracassados e pequeninos sabichões inúteis e sem unhas para a vida. A Escola parece antes um asilo”, concluía. Palavras especialmente fortes, porquanto foram proferidas, originalmente, na sessão solene de inauguração do ano letivo no Liceu Gonçalo Velho, em Viana do Castelo, onde António José Saraiva dava aulas. Em pleno Estado Novo, com uma veia subversiva tão acentuada – conta-se que chegou a mandar os alunos rasgarem páginas de manuais, num gesto que antecipava a cena de Clube dos Poetas Mortos -, não admira que acabasse preso e pouco depois demitido do lugar de professor dos liceus.