- Muito se tem debatido, recentemente, os factos e a natureza do 25 de novembro de 1975.
Pela sua natureza e devido à ocultação e manipulação de muitos e significativos dados sobre as condicionantes em que ocorreu, tal debate tem-se afirmado, mais ao nível das necessidades e justificações das alianças políticas atuais, do que, propriamente, ao nível da objetividade histórica.
Não deixa, aliás, de ser curioso que as principais forças políticas porta-estandarte da necessidade atual da invocação desse episódio histórico não existissem, sequer, à data dos acontecimentos, nem nos trinta e tal anos que se lhe seguiram.
Mais importante me parece, por isso, analisar o quadro político que o 25 de novembro gerou, comprovadamente, no país.
Quais os resultados políticos que, independentemente da vontade de alguns dos seus protagonistas, foram de facto produzidos por tal acontecimento.
- A democracia portuguesa diferencia-se, de algum modo, de outras mais antigas, tanto pela sua génese, como pelo conteúdo e forma que assumiu.
O nosso país fez, em meados da década de setenta do século passado e com um atraso significativo em relação aos países europeus saídos de regimes totalitários e autoritários anteriores à segunda grande guerra, uma Revolução distinta e arrojada, que o libertou de uma ditadura fascista, que o oprimira a ele e às colónias durante quase meio século.
Na sequência dela, consagrou, numa Constituição progressista, quase todas as conquistas alcançadas pelo povo português no período revolucionário: isto é, entre 25 de Abril de 74 e 25 de novembro de 75.
A Constituição portuguesa tipifica, com efeito, como direitos fundamentais, não só os que se referem aos direitos e às clássicas garantias liberais, mas também, de modo amplo e inovador, muitos dos direitos sociais mais importantes alcançados, diretamente, pelos portugueses nesse período revolucionário.
São esses e a sua consagração constitucional que, ao longo dos anos, têm permitido aos portugueses continuar a amparar as conquistas da Revolução e, em alguns aspetos, a construir, mesmo, em alguns aspetos, uma sociedade mais democrática, mais justa e mais moderna.
Isso não aconteceu por acaso.
Quando da sua aprovação, a Constituição consolidou, no essencial, um pacto – um verdadeiro “compromisso histórico” – entre a esquerda que queria ir mais longe nas conquistas sociais e a esquerda social-democrata (socialista).
Um “compromisso histórico” que, apesar de real, nunca foi assumido como tal, por qualquer das partes.
- A 25 de novembro, a esquerda social-democrata (socialista) entendeu, com efeito – ao contrário do que sucedeu em 28 de setembro e 11 de março – que, com a aprovação já próxima da Constituição e a integração nela dos direitos até então já alcançados diretamente pelos portugueses, se estava precisamente no momento certo para travar o processo revolucionário.
A movimentação dos paraquedistas foi, pois, o pretexto suficiente para efetivar tal desígnio.
Podia ter sido esse, como podia ter sido outro incidente mais ou menos grave.
Os projetos constitucionais dos partidos e trabalhos preparatórios da Assembleia Constituinte tinham permitido, entretanto, antever a possibilidade de um consenso alargado sobre a arquitetura e substância de tal documento.
Ele viria, assim, a incluir muitas das principais conquistas da Revolução e todas as liberdades cívicas, próprias de uma democracia liberal e pluripartidária.
Nesse imprescindível equilíbrio entre direitos de diferente natureza, estavam, aliás, as esquerdas de acordo, no essencial.
Foi, assim, possível fechar o caminho que, a 25 de novembro, se desenhava já evidente em direção a uma guerra civil; uma contenda fratricida que, a ter acontecido, teria tido consequências inevitavelmente calamitosas para todos os portugueses.
Se um princípio de acordo entre as esquerdas civis – apoiado, pressionado e mediado, desde agosto de 75, por algumas das esquerdas militares e suas chefias – não tivesse sido iniciado ainda antes desse dia, se ambas tivessem caminhado, de peito feito, para a guerra civil, como muitos, de um lado e do outro, pretendiam, não é difícil, então, como hoje, imaginar o que teria sido o horror da atuação revanchista da extrema-direita.
Os atentados à bomba e incêndios de carros, casas e as sedes partidárias da esquerda e os homicídios dos seus militantes e familiares, que a extrema-direita, com toda crueldade, iniciara, sistematicamente, meses antes de novembro de 75, revelavam bem o que sucederia se a contrarrevolução pudesse ter continuado a avançar, a coberto da ação que a esquerda social-democrata (socialista) havia iniciado para travar o processo revolucionário.
Uma coisa, porém, era certa: se acaso tivesse vencido, o revanchismo da extrema-direita não faria nenhuma distinção entre os militantes de uma e da outra esquerda, ou entre os capitães de Abril de uma ou de outra tendência.
À época, a recordação da implosão da República de Weimar e da ascensão do nazismo estavam, porém, ainda bem presentes para os dirigentes das duas esquerdas: respetivamente, Mário Soares e Álvaro Cunhal.
Se, por tais razões, o processo revolucionário terminou, pois, a 25 de novembro, o projetado rumo contrarrevolucionário das direitas foi, também ele, frustrado, nesse mesmo dia de novembro de 75.
Mais uma vez, nesse frear dos propósitos ferozes das direitas herdeiras do antigo regime, tiveram um papel determinante os capitães de Abril e o Marechal Costa Gomes.
Quase todos vieram, depois e de diversas maneiras, a pagar caro essa sua nova e não menos determinante intervenção democrática: é quase sempre assim.
“A Revolução devora os seus filhos”, como, já durante a Revolução Francesa, um monárquico, Jacques Mallet du Pan, o afirmara com rara presciência.
- A Constituição é, deste modo, a joia da coroa da Revolução que, sobretudo as esquerdas, mas também os sociais-liberais (social-democratas), aprovaram em benefício da paz e do progresso de Portugal.
Ela documenta o sempre escamoteado, mas afinal evidente, compromisso obtido pelas duas esquerdas antes e já passada a iminência da guerra civil.
Um compromisso conseguido num original processo de confronto político, em que cada uma delas – das esquerdas – jogou, paradoxalmente, num lado oposto da Revolução.
De tal “compromisso”, podemos dizer, com verdade, que resultou, pois, um Portugal materialmente mais evoluído e socialmente mais justo.
O cinquentenário da Constituição, esse sim, merecia, pois, ser celebrado institucionalmente, na mesma sala que a viu nascer.
- Todavia, o processo que conduziu ao 25 de novembro não evitou que o país tivesse ficado minado por interesses espúrios, pouco respeitadores das regras do Estado de Direito, que a esquerda social-democrata e alguma direita, levianamente, concitaram em seu apoio, durante a fase mais aguda da Revolução.
Alguns deles quiseram e querem, ainda – como a esquerda mais ativa sempre previu que aconteceria –, cobrar o capital e os juros do seu contributo, já não apenas no plano político, mas, sobretudo nos dias de hoje, no da economia.
Aconteceu o mesmo na Itália do pós-guerra com o planeado regresso dos padrinhos da mafia, promovido e apoiado por alguns dos vencedores, tendo em vista travar, na Sicília, o avanço eleitoral das forças de esquerda.
A estória do apoio à fundação, anos depois da Revolução, de certos bancos privados por um governo da esquerda social-democrata e a da sua posterior e famosa deriva para a escroqueria mais descarada, é disso o exemplo mais acabado e mais conhecido no país e na Europa.
Muita da acrimónia contra as magistraturas, cuja função primordial é a de, precisamente, fazerem cumprir a Constituição, resulta, aliás, do facto de elas – com mais ou menos erros e ineficiências, que não negamos – não estarem, em geral, comprometidas com tais interesses e não terem de agir, legalmente, na sua dependência direta ou indireta.