O ambiente político-social no Reino Unido está cada vez mais perturbado. Desde que o Partido Trabalhista (Labour) venceu as eleições no início de julho, as fraturas que estavam já presentes no tecido social exacerbaram-se. O Governo do primeiro-ministro Keir Starmer, que goza de maioria absoluta na Câmara dos Comuns, tem levado a cabo uma série de medidas que arruinaram a sua taxa de aprovação e há até uma petição para a realização de eleições antecipadas que reuniu, em menos de uma semana, 2 milhões e 800 mil assinaturas. A taxa de aprovação do primeiro-ministro continua a cair a pique, estando agora nos -38%, com 41% a considerar que está agora pior do que estava antes das eleições, segundo uma sondagem recente da Ipsos.
Das manifestações em Southport à petição, passando pelos ataques à liberdade de expressão e à polémica lei para os agricultores, Starmer está debaixo de fogo, e a sua permanência no número 10 de Downing Street está cada vez mais ameaçada. É importante notar que, nas últimas eleições, o Labour conquistou 402 de 650 assentos no Parlamento britânico, naquela que foi uma vitória esmagadora frente aos Conservadores que governavam há já catorze anos. Cinco meses após o sucesso eleitoral, Starmer está a braços com vários problemas, a tensão é palpável e o Reino parece estar cada vez menos Unido.
John Curtis, cientista político, disse à Sky News que «É difícil encontrar um Governo que tenha caído tão rapidamente nas sondagens como este», acrescentando que «não têm uma narrativa positiva para explicar porque razão fizeram o que fizeram. O seu único argumento é que os conservadores esconderam coisas e que a situação é pior do que pensávamos. Uma posição que é discutível».
Os Conservadores atravessam também um momento difícil após a derrota mais pesada da sua história, mas as eleições que renovaram a liderança e colocaram Kemi Badenoch como líder da oposição reacendem a chama tory, na esperança de que o “thatcherismo” de Badenoch os volte a colocar ao leme do país.
Outro tema fraturante é o da imigração, que terá um peso substancial nas próximas eleições.
A liberdade de expressão
Várias ocorrências fazem soar os alarmes quanto ao estado de saúde da liberdade de expressão numa das mais antigas democracias do mundo. O caso mais flagrante, pelo mediatismo, é o da jornalista Allison Pearson, do The Telegraph.
Segundo o relato da jornalista, Pearson foi abordada na manhã do Remembrance Sunday – dia em que é prestada homenagem a todos os britânicos e membros da Commonwealth que defenderam o império nas duas guerras mundiais e nos conflitos posteriores – pela polícia em virtude de um post na rede social X. A publicação tinha cerca de um ano e apesar de ter valido uma acusação de incidente de ódio não criminal, não foi dada a conhecer à jornalista.
«Tê-los [polícia] aqui na data mais triste e solene do calendário com este tipo de disparates malévolos. Foi surreal. (Tenho centenas de seguidores negros e asiáticos no X/Twitter; nenhum deles alguma vez sugeriu que eu tivesse dito algo mau ou odioso. Além disso, quem é que decide onde se coloca a fasquia do que é ofensivo?) É suposto estarmos em 2024, não em 1984, mas os agentes da polícia pareciam estar a operar de acordo com o manual operacional de George Orwell», escreveu Pearson na sua coluna no The Telegraph. É um exemplo de coação a um jornalista por parte do Estado, que se recusou, no momento, a mencionar a vítima (ou o acusador) e a própria publicação em causa.
Também no Parlamento, na quarta-feira, um deputado do Labour, Tahir Ali, apelou para que o primeiro-ministro «introduzisse medidas para proibir a profanação de textos religiosos e a difamação de todos os profetas das religiões abraâmicas», assegurando ser vital «que o Governo tome medidas claras e mensuráveis para prevenir atos que alimentam o ódio na sociedade». Starmer respondeu, garantindo que o executivo está empenhado «em combater todas as formas de ódio e divisão, incluindo, obviamente, a islamofobia em todas as suas formas». Esta breve troca de palavras agitou os conservadores. Tom Tugendhat, deputado dos tories, recusa esta premissa, afirmando que o Reino Unido não precisa «de leis contra a blasfémia nem de mais tentativas para silenciar a liberdade de pensamento na Grã-Bretanha». «Que religião teria precedência? E porquê proteger apenas as fés abraâmicas? Porque não o budismo? Porque não o hinduísmo?», concluiu.
‘No farmers, no food’
A agricultura é outro dos setores onde a tensão se faz sentir no Reino Unido. Milhares de agricultores preencheram as ruas de Londres nas últimas semanas para protestar a nova lei que consta do Orçamento do Estado aprovado pelo Governo trabalhista. A medida prevê que as propriedades avaliadas acima de 1 milhão de libras estarão sujeitas a um imposto sucessório na ordem dos 20%. A taxa entrará em vigor a partir de abril de 2026.
O Governo garantiu que está comprometido com os agricultores, mas admite que teve de tomar «decisões difíceis», uma narrativa rejeitada pela maioria do setor, que se verá forçado a vender parcelas de terreno para poder pagar o imposto. Will Weaver, presente nas manifestações, disse à Sky News que a fatura será «mais que o nosso lucro em qualquer ano que tivemos nos últimos dez anos. O meu pai está a dizer que vamos ter de vender alguma coisa. Não sei se vamos conseguir arranjar esse tipo de dinheiro através de uma hipoteca. É muito preocupante».
Contudo, o Tesouro britânico estima que apenas quinhentas propriedades serão abrangidas pelo imposto, garantindo que 72% das explorações agrícolas não serão afetadas. Números dos quais os agricultores discordam, sendo que 66% das propriedades estão avaliadas em mais de 1 milhão de libras, utilizando dados do próprio Departamento do Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais. Números claramente diferentes dos apresentados pelo Tesouro.
A líder da oposição juntou-se aos protestos e assegura aos agricultores que os Conservadores estão a seu lado: «O Partido Conservador que eu lidero está unido na oposição ao imposto sobre a agricultura familiar do Partido Trabalhista. A Grã-Bretanha não pode sobreviver sem os seus agricultores. Lutaremos para que este imposto cruel seja revogado».
As manifestações dos agricultores foram uma constante no último ano na União Europeia. Em 2024, e ainda que por razões diferentes, chegaram à outra margem do Canal da Mancha.
Tudo isto contribuiu para o descrédito do qual o Governo de Starmer hoje é alvo, e o incumprimento de promessas eleitorais levou a petição para a convocação de novas eleições a bater recordes de assinaturas nas primeiras 24 horas.
Os protestos, a queda abrupta da taxa de aprovação e a petição são fenómenos impossíveis de ignorar. Por enquanto, Starmer não cai, mas a sua governação está, certamente, a tremer.