Os militares que mantiveram a cabeça fria no Verão Quente de 75

Os militares que mantiveram a cabeça fria no Verão Quente de 75


O ‘caixote do lixo eleitoral’, o ‘Fidel Castro da Europa’ e a ‘ditadura dos oprimidos’: o Verão Quente e o 25 de Novembro nas palavras dos protagonistas.


Mais do que quente, a situação política e social em Portugal no verão de 1975 era escaldante. O PS, liderado por Mário Soares, tinha vencido claramente, com 38% dos votos, as eleições para a Assembleia Constituinte realizadas a 25 de Abril, exatamente um ano depois da revolução. O PPD vinha em segundo lugar, com 26%. A maior surpresa fora talvez o resultado pífio do PCP, com uns meros 12,5% – ainda assim muito à frente de outras organizações da extrema-esquerda. Apesar dos apelos na rádio e na televisão ao voto em branco (presumivelmente para serem depois atribuídos às forças mais radicais), este saldou-se em apenas 4%.


Naturalmente, houve quem não ficasse convencido com os resultados. «Não perderemos por via eleitoral aquilo que tanto custou conquistar ao povo português», prometia o primeiro-ministro Vasco Gonçalves. O primeiro-tenente Ramiro Correia, que dirigia a 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (órgão de propaganda do MFA), afinava pelo mesmo diapasão: «Convém não hipervalorizar os partido e os resultados eleitorais, serão os trabalhadores quem irá decidir, em última análise, o futuro da revolução portuguesa».


Rosa Coutinho, o ‘almirante vermelho’, próximo de Vasco Gonçalves, era menos subtil: «O PS é um caixote do lixo eleitoral».
Entretanto, reinava a falta de disciplina nas Forças Armadas, porventura ainda embriagadas com o triunfo do 25 de Abril e o fracasso de Spínola no 11 de Março. «O soldado radical é de tipo novo», escreveu José Freire Antunes em O Segredo do 25 de Novembro (Publicações Europa-América). «Cabelos pelos ombros, ar gingão, sai em bandos à Pancho Villa, trata os oficiais por pá, manda a continência às urtigas e anda a fazer a revolução como numa casa de brinquedos». Continua Freire Antunes: «Por estes meses de brasa, o Exército português era uma fabulosa sopa da pedra. Nela entravam, a um tempo, o general Patton e Robin dos Bosques, o general Kornilov e Pancho Villa, os escritos militares de Mao Tsé-tung e os marinheiros do Aurora, o general Cavaignac e os caçadores de escalpes das pradarias do Oeste. Tudo somado, um cocktail Molotov».


Esse estado de coisas preocupava o chefe do Estado-Maior do Exército, Carlos Fabião: «Não se admite […] que os militares da EPAM passem o tempo a pedir para se levantarem mais tarde», queixava-se.


A 14 de junho, Otelo Saraiva de Carvalho diz à Rádio Renascença uma frase que faria correr muita tinta: «Teria sido melhor se, em Abril de 74, encostássemos à parede ou mandássemos para o Campo Pequeno umas centenas ou uns milhares de contra-revolucionários». Representante da extrema-esquerda não alinhada com o PCP, Otelo tornara-se o militar mais carismático e idolatrado do pós-revolução. Sobre si próprio diria: «Tenho falta de cultura política. Se tivesse essa cultura que não tenho, poderia ter sido um Fidel Castro da Europa». Outros discordavam. Mário Tomé, major da Polícia Militar, que viria mais tarde a liderar a UDP, diria dele: «A maior tragédia que pode suceder a um conjunto de homens inteligentes é acreditarem num indivíduo burro». Já sobre a situação política, Tomé avisava para quem o quisesse ouvir: «Talvez caminhemos para uma ditadura: a ditadura dos oprimidos. Eliminar os exploradores não é repressão, é saneamento».


Na mesma linha, a 5.ª divisão do EMGFA tinha doutrinado alguns meses antes, em maio: «Uma democracia burguesa é só democracia de nome, de fachada». Na época, as palavras ‘burguês’ e ‘burguesia’ não designavam uma certa classe social, antes serviam como insulto ou arma de arremesso. Por exemplo, numa assembleia do MFA, os resultados das eleições haviam sido atribuídos a uma «pequena burguesia enraivecida».


Para onde caminhava Portugal? Faria Paulino, responsável pela ‘dinamização cultural’, augurava no Diário de Notícias: «Portugal, mesmo que o não queira, terá bordada na bandeira uma estrela de cinco pontas». Só faltava dizer que essa estrela era vermelha.


Atento a esta verdadeira panela de pressão prestes a explodir estava um grupo de militares moderados em que pontificava um major, nas palavras de Freire Antunes, com «aversão aos jogos de bastidores e uma coerência pessoal que condiz com a magreza ascética e a cara de pau». António Ramalho Eanes era uma espécie de antítese de Otelo. Tinha estado na Índia, para onde partira com uma edição d’Os Lusíadas no bolso, em Macau, em Moçambique, onde revelara um comportamento exemplar e capturara um importante régulo, em Angola e na Guiné. «Lê, cumpre, não tenta sobrepor-se a ninguém». Depois de Abril fora nomeado por Spínola diretor de programas da RTP, cargo que lhe valera muitas inimizades e ameaças. Este Grupo Militar, que contava, entre outros, com Garcia dos Santos, Loureiro dos Santos e Rocha Vieira, tinha um plano de operações para o caso de os militares afetos à esquerda radical avançarem para a tomada do poder. Eanes guardava, descreve Freire Antunes, esse «papéis secretos sob as palmilhas dos sapatos». Outros seguiram-lhe o exemplo.


O plano de operações previa, por exemplo, «bombardear os seguintes objetivos»: Forte do Alto do Duque (COPCON); RALIS; Forte de Almada; Quartel de Fuzileiros «se se revelarem hostis». Eanes acabaria, no entanto, por se opor aos bombardeamentos e ao derramamento de sangue – embora outros o pressionassem a isso.


O tiro de partida foi dado a 7 de novembro quando os paraquedistas, a mando do Governo, dinamitaram o emissor da Rádio Renascença na Buraca. A 12 de novembro, Otelo dava-lhes luz verde para avançarem para a tomada do poder: «Até que enfim, os páras fazem alguma coisa de jeito, Agora sim, já posso contar convosco.» E a 22 o major Pessoa afirmava : «Está a chegar a hora. […] Deixámos de ser tropas de arame. Vamos ao ataque».


A ofensiva dos paraquedistas, com um poder de fogo de «dois mil tiros por minuto», não apanhou Eanes e os seus homens de surpresa. Puseram o plano em marcha. A Moção do Regimento de Comandos pedia «as medidas necessárias à normalização militar», e os próprios Comandos, liderados por Jaime Neves, tomaram o assunto em mãos. A atitude de Otelo, pelo contrário, pautou-se pela inação. «Deveriam ser cerca das quinze horas quando o general graduado Otelo Saraiva de Carvalho saiu do COPCON – e da Revolução», constatou o coronel Varela Gomes. «Consumava-se a trajetória de um revolucionário pequeno-burguês, com mais olhos que barriga. Já tinha engolido revolução a mais para o seu delicado estômago. Na hora de aperto fugiu, de calças na mão, à procura de refúgio protetor».


Freire Antunes conclui: «Com a sua iniciativa, Otelo empurrou o País para a guerra civil. Com a sua apatia, Otelo evitou ao País a guerra civil». Eanes, que nunca pôde ser acusado de vedetismo, como sempre foi parco em palavras: «É preciso que os militares deixem de ser vedetas».

jose.c.saraiva@nascerdosol.pt