Toda a gente sabe como o batismo da nossa revolução ficou a dever-se a um gesto espontâneo, o de uma mulher que não tinha tabaco, mas levava uma braçada de cravos vermelhos, e que estendeu o primeiro ao soldado que ia em cima de uma chaimite no Rossio, e que lhe pedira um cigarro depois de esta lhe perguntar o que era tudo aquilo. O soldado respondeu que iam para o Largo do Carmo para «ver se o Marcello Caetano se rende».
Celeste Caeiro trabalhava na limpeza de um restaurante self-service, o primeiro do país, chamado Franjinhas, na Rua Braamcamp, e que funcionava como uma espécie de cantina de muitos escritórios nas imediações, da rua do Salitre à Castilho. A casa tinha aberto a 25 de abril de 1973 e preparava-se para festejar o primeiro aniversário. «Os patrões queriam fazer uma festa e disseram ao gerente para comprar flores para pôr nas mesas. O senhor Ramos foi à praça da Ribeira. Comprou cravos, podia ter comprado outras flores quaisquer», contava ela numa entrevista ao jornal i. Recordava ainda como lhes foi dito que o melhor era levarem os cravos, que escusavam de ficar ali a murchar. «Lembro-me das palavras do dono, o engenheiro Matos Chaves. ‘Meus senhores, a casa não vai abrir porque se está a dar uma revolução’. Ou um golpe de estado, isso já não recordo bem. ‘Os senhores vão para casa e depois nós avisamos se der para o bem ou para o mal’.»
Em 1974, Celeste Martins Caeiro tinha 40 anos, era mãe solteira, e vivia num quarto alugado no Chiado, com a mãe e com a filha. Depois de o patrão lhe ter dito que o restaurante não ia abrir, e que fosse ao armazém buscar os cravos, ela assim fez. «Estavam lá muitos baldes com cravos vermelhos e uma meia dúzia com cravos brancos, comprados no Mercado da Ribeira. Porque é que o gerente comprou cravos e não malmequeres ou rosas não sei, mas talvez estivessem mais baratos.» Agarrou um molho deles, e em lugar de ir para casa, foi ao Rossio ver o que se passava. Depois de oferecer o primeiro, acabou por espalhar pelos soldados todos os cravos que tinha. Dava assim, e sem o saber, o nome à revolução. Na verdade, acabou por ser um batismo duplo, pois também a revolução lhe mudou o nome. Ela passou a ser conhecida como Celeste dos Cravos.
Lisboeta de gema, nascida na freguesia do Socorro, tinha família na Amareleja. «Dizia-se que era a aldeia mais vermelha do país», recorda. Naquela entrevista lembrou ainda como, em tempos, numas férias, se dera conta de umas reuniões clandestinas em casa dos tios, e como isto lhe puxou pela imaginação. «Não podes contar nada, Celeste», pediram-lhe. Embora nunca tenha estado diretamente envolvida na resistência ao regime, tinha claro que tinha de haver maneira de acabar com aquilo. Foi fazendo a sua parte. Antes do restaurante, trabalhara numa tabacaria na rua da Prata, local de paragem de pessoas de esquerda, contrabandistas. Recordou que o descaramento de José Vilhena então acicatava os ânimos embolorecidos ao fim de mais de 40 anos de ditadura. Os livros estavam proibidos, mas ela tinha-os escondidos debaixo dos volumes de tabaco para não serem levados pela polícia. «Fintava-os», como dizia. E se o patrão lhe dizia: «Ai Celeste, qualquer dia vai dar barulho», respondia com a mesma confiança. «Deus é grande, não vai nada.» Como consumo para a sua indignação, nas tardes de folga ia ver julgamentos à Boa Hora, lembrando como «a gente punha-se na fila e eles empurravam-nos».
Naquela manhã de abril, os colegas que já sabiam como Celeste se encantava com qualquer promessa de desacato, aconselharam-na. «Celeste, ouviste o que o patrão disse: vai para casa para o pé da tua filha e da tua mãe e não te metas em barulhos.» Se ela tivesse acatado, não estávamos a falar dela. Depois de pegar nos cravos, apanhou o metro para ir para casa, um quinto andar em frente aos armazéns do Chiado, que viria a arder no fogo de 1988. «Quando saí do metropolitano no Rossio não se via ninguém na rua. Até que vi os militares.» Era uma coluna de tanques e veículos blindados que se aproximava, ladeada por soldados de infantaria. Afoita, acercou-se e perguntou a um dos soldados para onde iam. Foi-lhe dito que, alguns, já estavam ali desde as 3 da manhã. «Por acaso a senhora não tem um cigarrinho, perguntou-me um’. Nunca fumei, não tinha, se calhar é por isso que ainda cá ando», disse na entrevista ao i. «Não tinha e tive pena, olhei para todos os lados a ver se havia alguma coisa aberta para lhes arranjar alguma coisa para comer mas não havia nada. Tirei um cravo e dei-lhe. Aceitou, podia não ter aceitado. Pôs no cano da espingarda e achei bonito. Depois tirei outro e dei a outro soldado, que também pôs no cano. As pessoas julgam que fui eu que pus os cravos nas espingardas, mas não, estava muito alto.»
A História tem bom olho para as rimas que o acaso providencia, e o gesto semeara já um símbolo, que os fotógrafos não deixariam de colher. Celeste foi para casa longe de desconfiar que tinha assumido um inusitado protagonismo no que aí vinha. Da janela, mostrou a revolução à mãe, fazendo notar que tinha sido ela a dar as flores._«Disse-me: ‘Esta rapariga é maluca, então puseste-te à frente da tropa, podias ter levado um tiro.’ Respondi-lhe que não, que aquilo ia dar para o bem.»
Depois do almoço, quando as pessoas começavam a sentir o assalto das possibilidades e a perder o nervosismo, também ela foi para a rua, para o Largo do Carmo, onde esteve com aquele frémito súbito de liberdade que se estendeu noite fora. Na entrevista que deu ao i, adiantava que, no dia seguinte, se perguntava na rádio de onde teriam saído os cravos. Já corriam as imagens dos cravos nos canos das espingardas, e ela deu a primeira entrevista à Crónica Feminina. Seguiram-se outras. «Todos os anos era dispensada, mas sou uma pessoa como as outras, não sou mais importante. Aconteceu», referiu ela, não deixando de mostrar o seu contentamento por ter sido agarrada pela História como ela agarrou e depois ofereceu aqueles cravos.
Recordava a miséria em que o país vivia recorrendo a um episódio em que uma amiga, com uma filha pequena, diante da montra de uma sapataria, no Camões, ouviu isto da miúda: «Ó mãe, os sapatos são caros?» Para elas seriam. Mas a simples pergunta, escutada por um PIDE, bastou para que este retorquisse: «O que está a dizer a menina!? Quer que leve as duas?»
A Celeste dos Cravos tinha a convicção de que tudo ia ficar bem. A verdade é que acabou os seus dias com uma reforma de 400 euros, mas ninguém lhe tirou a alegria de descer todos os anos a Avenida da Liberdade no 25 de Abril. E fê-lo pela última vez nas comemorações dos 50 anos da Revolução, em abril deste ano, acompanhada pela neta e por muitos que a quiseram homenagear. Quando o i lhe perguntou o que significava a liberdade, ela não conseguia fazer outra coisa senão recordar a sensação que tomou conta dela e dos outros, naquele dia: «Lembro-me das pessoas na rua, muito contentes, parecia que estavam noutro mundo, que não eram deste.»