Donald Trump. A nova direita americana e o regresso da dissuasão

Donald Trump. A nova direita americana e o regresso da dissuasão


Trump está de volta à Casa Branca. O regresso do magnata à liderança dos EUA representa a confirmação de rutura ideológica no próprio partido e na política externa da administração Biden


A vitória de Donald Trump nas eleições de 5 de novembro foi inequívoca. O Partido Republicano venceu a presidência, conseguiu a maioria em ambas as câmaras do Congresso e no Supremo Tribunal, conseguiu mais governadores e ainda conseguiu conquistar o voto popular por cerca de 3 milhões de votos de vantagem. As eleições que se esperavam renhidas até à última, segundo as sondagens e os órgãos de comunicação social tradicionais, ficaram decididas no próprio dia. O Polymarket, um mercado onde é possível apostar numa série de eventos, foi a plataforma que espelhou o resultado final de forma mais precisa.
Passada esta fase, é altura de analisar as causas e as consequências da vitória de Trump, bem como da derrota do Partido Democrata. O resultado deste ato eleitoral tem um significado importante a vários níveis, com a política externa – ainda que longe de ter sido prioridade dos eleitores na altura de colocar o voto na urna – a assumir um papel relevante em virtude da conjuntura internacional atual.
Além da dimensão diplomática, há outro aspeto de incontornável importância a ter em conta: a nova direita americana. A rutura com o Partido Republicano (GOP) de Ronald Reagan, ainda que debaixo do mesmo slogan (Make America Great Again), é impossível de ignorar e explica, de certo modo, as diferenças que observamos hoje no perfil do eleitor republicano.
É também uma vitória que dá alento ao movimento de direita a nível global, da América à Europa, deixando de ser um conjunto de fenómenos e erupções regionais isoladas para assumir contornos de uma internacional conservadora, ainda que com uma certa heterogeneidade.

Vitória de Trump, derrota democrata

Que Donald Trump venceu as eleições, recorrendo a estratégias que se revelaram politicamente inteligentes, é inegável. Mas inegável é também a derrota do Partido Democrata, na figura de Kamala Harris.
A tentativa de encobrir a incapacidade de Joe Biden – note-se que ainda é Presidente – até ao ponto de não retorno é o erro capital que levou ao desaire eleitoral dos democratas. O facto de ser a cúpula do Partido a tomar as decisões quanto à candidatura, anunciando uma candidata sem passar por um processo de eleição primária, foi também uma forte machadada. Sem o primeiro erro, o segundo não teria sucedido, naturalmente. Além de tudo isto, a escolha de Kamala – talvez a única possível a três meses das eleições –, uma vice-presidente apagada com uma taxa de aprovação relativamente baixa, responsável por um dos problemas que mais inquieta os eleitores (imigração) e representante de uma ala woke do partido, revelou-se um tiro ao lado. Os próprios apoiantes reconheceram precisamente isso, na ressaca da derrota eleitoral, mesmo após três meses preenchidos de tentativas de exaltação à ainda segunda figura da administração incumbente.
Esta infiltração do wokeísmo que levou a uma viragem cultural à esquerda de forma abrupta, deixou para trás o eleitor médio, como demonstram de forma clara os gráficos publicados no Financial Times – na questão de imigração, por exemplo, o eleitor médio está perto do eleitor que se assume fortemente republicano quanto à necessidade de reduzir a imigração, enquanto que o eleitor fortemente democrata se encontra na extremidade oposta do gráfico. Como evidencia o estudo do FT, esta mudança é consumada a partir de 2008, ano em que Barack Obama foi eleito Presidente pela primeira vez. A mudança na sociologia do voto fica ainda mais clara.

MAGA: um slogan, dois movimentos

O slogan Make America Great Again é indissociável de Donald Trump. O agora Presidente-eleito reavivou o lema que levou Ronald Reagan à Casa Branca em 1980, mas mesmo que sejam ambos do mesmo partido e partilhem o slogan, as diferenças são por demais evidentes.
Se o conservadorismo de Reagan estabeleceu uma ordem liberal – a par de Margaret Thatcher – com base no livre mercado e na diminuição do aparato governativo, o conservadorismo de Trump, e principalmente do seu vice-presidente e natural sucessor J. D. Vance, representa uma rutura com esse mesmo sistema.
A vitória republicana representa a consolidação de uma nova direita americana assente na doutrina pós-liberal, uma vertente ideológica da qual Vance, Peter Thiel, Patrick Deneen, entre outros, são os rostos principais. Se o conservadorismo liberal de Reagan colocava o indivíduo no centro, o pós-liberalismo, não ignorando a relevância da iniciativa empresarial, é mais comunitário. Isto, a par do anteriormente assinalado alheamento da esquerda, fez com que o Partido Republicano ganhasse terreno em praticamente todos os setores eleitorais.

A dissuasão

Segundo uma sondagem da Gallup, no início de outubro, que elencou vários assuntos consoante a sua importância para os eleitores, a política externa foi apenas o décimo quarto tópico. Bastante longe das prioridades dos americanos, mesmo com vários focos de conflito que se relacionam e fazem parte de um conflito superior, e decisivo, entre o Ocidente (com os EUA à cabeça) e o eixo China-Rússia-Irão-Coreia do Norte, é importante analisar o que representa a vitória de Trump no que à política externa diz respeito.
Durante o primeiro mandato de Trump (2017-2021), a realidade internacional atravessou um período relativamente estável. Vladimir Putin, que tinha anexado parte da Geórgia em 2008 e que invadiu a Crimeia em 2014, colocou um travão na sua tendência imperialista – retomada em 2022 pouco tempo após a retirada humilhante dos EUA do Afeganistão.
No Médio Oriente, a administração Trump impulsionou os Acordos de Abraão que visaram a normalização das relações entre Israel e os Estados árabes vizinhos – Emirados Árabes Unidos e Bahrain –, enquanto que o Irão voltou a estar pressionado por sanções após a revogação do Joint Comprehensive Plan of Action, que valeu milhares de milhões de dólares aos cofres iranianos em troca do desmantelamento do seu programa nuclear, posto em prática pela administração Obama.
A China também teve dificuldades em lidar com Donald Trump, dada a sua imprevisibilidade e, apesar da guerra comercial e da entrada nas “encostas de uma Guerra Fria”, como disse à data Henry Kissinger, as tensões no estreito de Taiwan não estavam nos níveis em que agora se encontram.
A paz pela força é uma das características da política externa de Trump, uma realpolitik com as suas peculiaridades, que já foi valorizada pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Poucos dias após as eleições, os líderes do eixo antiocidental reagiram e já são percetíveis algumas mudanças nas dinâmicas das Relações Internacionais.
O mundo não assistiu a conflitos, à escala dos que hoje assiste, sob a vigilância de Trump. E se é verdade que a confiança dos aliados, principalmente dos europeus, nos EUA pode ficar minada – o que é provável –, também é verdade que a confiança dos inimigos para atacar aliados ocidentais será mais baixa com a política de dissuasão de volta a Washington.
Assim, a vitória de Trump representa um momento de rutura a vários níveis, desde a mudança de rumo do próprio partido, processo interrompido em 2020, ao confronto com as potências que contestam a posição dos Estados Unidos como potência hegemónica.