Depois da reeleição de Donald Trump para um segundo mandato, muitos hoje olham para os EUA tentando perceber o que correu mal, de que forma aquela vasta e orgulhosa nação parece ter-se degradado e às suas aspirações. À medida que as divisões sociais e culturais alimentam ódios e sugerem um clima de guerra civil, talvez possamos enfim debruçar-nos sobre o cadáver do sonho americano que, na sua decomposição acelerada, além do acentuado mau cheiro, produz agora pesadelos que depressa chegam a toda a parte.
Poderá não estar longe o dia em que o resto do mundo venha a entoar em tom lacónico o verso inicial desse hino do avesso que Allen Ginsberg dedicou ao seu país: «América eu dei-te tudo e agora não sou nada.» A América, esse continente absurdo na profusão das suas imagens, tornou-se o grande fabricante de ícones, e exportou e vendeu ao mundo essa sua imagem ideal, cobrando agora comissões pela manutenção e pelas sucessivas atualizações. A partir desses signos que produz tão abundantemente, esta exerce uma extorsão sobre o mundo, podendo enaltecê-lo de acordo com o seu próprio regime de valores, ou desmoralizá-lo.
Jean Baudrillard, o mais cativante dos filósofos franceses, esse exuberante ensaísta que soube levar ao limite as intuições nesse regime devasso do pós-modernismo, formulando hipóteses que envergonhavam muitos dos maiores escritores de ficção científica, reconheceu que a América pegara numa invenção francesa e assentou sobre a sétima arte a sua indústria de produção de novas mitologias. Depois de ter virado as costas às teses marxistas, Baudrillard não voltaria a permitir que restrições de qualquer nível, nem compromissos de ordem ética ou estética limitassem o alcance das suas investigações, e a sua vantagem foi a capacidade de mergulhar na sedução do capitalismo, indo ao ponto de defender que só uma forma de aceitação total e passiva poderia resultar numa forma de resistência, uma vez que todos os sistemas de fé se esboroam a partir do momento em que já não há devotos, mas apenas esses inclementes parasitas que aceleram a sua degradação. E para ele a força mítica da América estava no facto de a sua prestidigitação ser de tal modo poderosa que ela mesmo não passava de uma tremenda ficção, de tal modo que os americanos não residem neste ou naquele plano da realidade, mas dissolvem-se naquele enredo tão absorvente numas alturas como tenebroso noutras. Ele diz-nos que, se a realidade americana precedeu a tela do cinema, entretanto, hoje tudo leva a crer que a realidade foi construída em função desta, não como um jogo de sombras platónicas, mas no sentido em que «tudo é como que sustentado e aureolado pela luz da gigantesca tela». Ele adianta que não é um dos menores encantos deste país que mesmo fora das salas de cinema seja todo ele cinematográfico. «Percorre-se o deserto como um western, as metrópoles como uma tela de sinais e fórmulas.»
Uma sitcom à escala nacional
Isto ecoa a impressão descrita por JG. Ballard numa breve e espantosa nota que veio a acrescentar à laia de prólogo ao seu romance Olá, América!, e em que às tantas refere isto: «Quando vou aos Estados Unidos, tenho amiúde a sensação de que a ‘verdadeira América’ está não nas ruas de Manhattan ou de Chicago, ou nas cidades rurais do Midwest, mas antes na América imaginária que foi criada por Hollywood e pelos média. Longe de serem reais, os passeios, as bombas de gasolina e os edifícios de escritórios parecem imitar as imagens de si mesmos em incontáveis filmes e anúncios na televisão. Mesmo os americanos com que nos cruzamos nos átrios dos hotéis e nos grandes armazéns comerciais parecem actores numa sitcom à escala nacional. ‘USA’ – assim poderia chamar se um canal de realidade virtual a emitir 24 horas por dia, transmitido em directo em plena rua, nos centros comerciais e talvez mesmo na Casa Branca (sobretudo durante a presidência de Ronald Reagan, cujo primeiro ano no cargo coincidiu com a publicação de Olá, América!). Cadillacs, Coca Cola e cocaína, presidentes e psicopatas, Norman Rockwell e a máfia… esse sonho que é a América vai continuamente decompondo os seus códigos, qual espiral de ADN ideológico.»
Tudo naquele país é convertido a esse regime de criação de mitos, com os efeitos a acabarem por triunfar sobre a causa. A ficção americana faz com que tudo naquele país sejam tintas numa paleta fabulosa. Mesmo a religião foi convertida em efeito especial, e fala-nos ainda do marketing evangélico, da espantosa obsessão puritana como um sinal dessa perfeita forma de devoção que gera todos os idiotismos. Baudrillard entende que a História que nos é contemporânea desaparece da Europa ou de qualquer outro ponto geográfico e ressuscita em São Francisco. «Suponhamos a reconstituição das grandes cenas revolucionárias em hologramas gigantes, arquivos minuciosos, uma filmoteca completa, os melhores atores, os melhores historiadores», tudo isto permite à indústria de mitos norte-americana importar qualquer acontecimento, até a Revolução Francesa, e reproduzi-lo como se tivesse acontecido ali.
A aliança entre arte e publicidade permitiu dar origem a um «sistema de pré-fabricação luxuosa, sínteses brilhantes de estereótipos da vida e do amor», diz-nos Baudrillard, e sem este dispositivo a própria vida não nos sabe a nada. Por isso ele vinca que o culto das estrelas não constitui um aspeto secundário, mas a forma gloriosa do cinema, a sua transfiguração mítica, o último grande mito da nossa modernidade. Todos podemos imaginar que detemos meios de publicidade, mas lidamos com uma pequena caixa com os instrumentos mais básicos para nos introduzir nesse regime da reprodução dos truques de magia mais ordinários e que apenas serve para aprofundar a nossa admiração diante dos grandes prestidigitadores. Sem acesso à constelação dessas figuras que dão vida a esse quadro de paixões, não somos capazes de produzir mais do que imitações baratas, e que acabam por escarnecer de nós face à grande ilusão cinematográfica que nos chega dos estúdios de Hollywood. A publicidade não é nada sem aquelas presenças que encarnam a única verdadeira lei do nosso tempo: a da imagem, e a imanência do desejo na imagem. Baudrillard diz-nos que as grandes celebridades não fazem sonhar, mas são elas o sonho, do qual possuem todas as características: «produzem um forte efeito de condensação (cristalização), de contiguidade (são imediatamente contagiosas) e, sobretudo, possuem o carácter de materialização visual instantânea do desejo que é também o do sonho». «Não levam, portanto, à imaginação romanesca ou sexual; são visibilidade imediata, transcrição imediata, colagem material, precipitação do desejo. Fetiches, objetos-fetiches, que nada têm a ver com o imaginário mas tão-só com a ficção material da imagem.»
‘O homem que todos desejamos ser’
No seu livro de estreia, Americana, Don DeLillo, o mais feroz satirista deste dispositivo maníaco, oferece-nos, às tantas, um diálogo bastante instrutivo sobre a capacidade da publicidade mobilizar o nosso inconsciente:
«‘Como é que um anúncio televisivo de sucesso consegue influenciar o espectador?’
‘Faz com que ele queira mudar a forma como vive.’
‘Em que sentido?’, perguntei-lhe.
Fá-lo passar de um nível de consciência na primeira pessoa para a terceira pessoa. Neste país há uma terceira pessoa universal, o homem que todos desejamos ser. Este usa-o para expressar as possibilidades que se abrem ao consumidor. Consumir na América não significa comprar mas, antes, sonhar. A publicidade nasce da sugestão de que o sonho de que nos estamos a converter nessa terceira pessoa do singular pode vir a concretizar-se.»
DeLillo tem sido um dos autores mais saudados pela sua perceção assustadora sobre o quadro de excessos que faz com que cada pessoa passe a rejeitar a própria realidade depois desta ter sido submetida a uma transfusão a partir desta cultura fracionária, intersticial, que nasce de uma falha com o Velho Mundo, de tal modo que ocupa a experiência e estabelece um fosso degradante face àquilo que reflete, sendo uma cultura táctil, tão fluente quanto superficial. Assim é atingido o ponto centrífugo, excêntrico, onde circular produz o vazio que nos absorve. Esse momento de vertigem é também o do desmoronamento potencial. Não tanto pela fadiga própria da distância ou da diferença, mas pelo avanço irreversível para o interior de uma ficção delirante. Mas se DeLillo é, nos nossos dias, o romancista que de forma mais eletrizante nos tem servido quadros e cenas que exploram a forma pura e vazia desta enorme ficção e logro, antes dele outros se confrontaram com esse universo completamente deteriorado que, de forma paradoxal, cresce à medida que se afirma a sua riqueza, a sua potência, alimentando uma forma de senilidade, de indiferença, de miséria e de desperdício, de vaidade tecnológica e de violência inútil. Num dos seus ensaios, John Updike reconhecia que, se fosse tida em conta «a violência da nossa indústria cinematográfica e que está presente na nossa música popular, e as nossas estatísticas quanto a homicídios, e a imagem internacional que se faz de nós enquanto uma nação rufia, ou mesmo a brutalidade que tem um relevo estrondoso nos nossos clássicos literários bem como nos thrillers mais rasca, somos obrigados a reconhecer que uma certa crueldade faz parte dos traços essenciais que nos definem».
‘O incentivo é o ganho pessoal’
Não tendo uma visão demasiado crítica da mitologia norte-americana, Updike não deixava de reconhecer que se a América não se cansa de fazer promessas de igualdade de oportunidades, dessas que não levam em conta restrições feudais ou de ordem social, mais tarde ou mais cedo qualquer um se dá conta de que, ganhar um avanço na corrida, significa sempre deixar alguém para trás. «O antigo presidente Ronald Reagan, numa desabrida e sincera resposta à pergunta de um jornalista, disse certa vez que o seu desejo era que este fosse sempre um país onde uma pessoa consegue tornar-se rico. Talvez não seja o tipo de resposta que anime os esquerdistas, mas não deixa de ser uma forma vívida e honesta de manifestar uma posição igualitária, indo ao nervo dessa esperança que continua a atrair milhões de pessoas para cá. Não para se submeterem a um rei qualquer, mas para que cada um tenha a sua hipótese, de acordo com a célebre expressão de Huey Long, de viver como um rei. As condições de igualdade e liberdade que a América promove deveriam encorajar a produtividade e a criatividade de cada cidadão. E o incentivo é o ganho pessoal, normalmente entendido em termos materiais e sensuais. Somos assim industriados nesse sentido pela quantidade de desigualdades que é posta diante dos nossos olhos todos os dias por uma cultura que venera as celebridades, que está devotada a ver-se rodeada de conforto e luxo, sendo cada um de nós alvo de uma incessante campanha publicitária concebida para excitar o fanatismo consumista que se tornou sinónimo do estilo de vida americano.»
‘E os líderes, onde estão?’
Aquele país tende a ser impiedoso com os seus críticos mais fervorosos, e mesmo os intelectuais, e se muitos até repudiam alguns aspetos da sua cultura, poucos são tão virulentos como o foi Henry Miller em Pesadelo em Ar Condicionado, deixando depois de punir aqueles que exercem até ao limite a liberdade conferida pela Primeira Emenda da Constituição, servindo-se daquela nação como saco de pancada, muitas vezes sem nem se pouparem a si mesmos, nas coléricas diatribes em que expõem e desfazem em bocados a campanha do ‘sonho americano’: «Nós [americanos] estamos habituados a pensar em nós próprios como um povo emancipado; andamos por aí a gabar-nos dos nossos valores democráticos, do amor que temos pela liberdade, da nossa falta de preconceitos ou de ódio. Diz-se que esta nação é um caldeirão onde tudo se mistura, a base da mais estupenda experiência social. Besuntam-se com essas grandes palavras, cheias de uma nobreza e de um idealismo pomposo. Na verdade, não passamos de uma multidão de gente vulgaríssima, sempre a empurrar e numa excitação que facilmente se deixa mobilizar por demagogos, por tribunos, pelos charlatães religiosos, por agitadores de meia tigela e toda essa corja. Chamar a isto uma sociedade de gente livre é uma verdadeira blasfémia. Que mais temos nós para oferecer ao mundo além desse saque superabundante que arrancamos de forma imprudente à terra sob esse pretexto maníaco que nos leva a entregarmo-nos a atividade insana a que, numa prova do nosso grau de delírio, achamos que é sinal de progresso e de iluminação? A terra da oportunidade tornou-se a terra do suor e de um frenesim sem o menor sentido. Há muito que os fins de toda esta ensandecida demanda foram esquecidos. Há muito que não temos a menor vontade de socorrer os frágeis e oprimidos; não oferecemos o menor espacinho desta nossa imensa e desocupada terra àqueles que, tal como os nossos antepassados, hoje buscam refúgio. Milhões de homens e mulheres beneficiavam até há bem pouco tempo da assistência social, mas hoje vêem-se condenados como cobaias a uma vida de ociosidade forçada. Enquanto isso o mundo olha para nós com um grau de desespero e perplexidade como nunca antes. Onde está o tal espírito democrático? E os líderes, onde estão?»
Se no século passado olhávamos para lá e íamos copiando à vista as nossas aspirações e sonhos a partir das fantasias um tanto ingénuas que eram articuladas por essa poderosa visão que os EUA têm de si mesmos, num enredo que mistura uma espécie de ingenuidade delirante a um narcisismo e arrogância confrangedores, e se tudo era perdoado uma vez que a litania consumista servia de consolo àqueles que, de súbito, deram por si órfãos das grandes utopias sociais, à medida que ia ficando claro o custo de sustentar essa outra forma de delírio, aquela orgulhosa nação passou a transmitir-nos o vírus da sua realidade degradada, e aqueles que são os pesadelos que hoje nos dominam. Enquanto a toda a parte chegavam os panfletos desse museu da potência que a América se tornou para o mundo inteiro, dos arranha-céus às autoestradas, Buicks e jeans, estrelas do cinema e gansters, a Disneylândia e Las Vegas, se tudo isso, como nos diz Ballard, gravou a imagem da América nos mapas da nossa imaginação, e se depois entrámos conjuntamente na ficção que esta fez de si mesma, no seu gigantesco holograma, hoje, também se pressente um pouco por toda a parte como «as coisas são feitas de uma matéria mais irreal, e que elas giram e se deslocam no vazio como por um efeito luminoso especial», adianta Baudrillard.
Sorriso publicitário
Para este sociólogo francês, a publicidade, mas também a atividade das pessoas, a eletrónica com o seu peso na vida quotidiana, tudo se destaca com a plasticidade e a simplicidade de um sinal luminoso. «O holograma está próximo do fantasma, é um sonho tridimensional e podemos integrá-lo tal como quem se deita a sonhar.» No seu entender, na próxima e inevitável etapa da ‘evolução’ humana, a vida prosseguirá numa espécie de parque de diversões satírico. «Pode-se perguntar até se o próprio mundo existirá apenas em função da publicidade que pode ser feita dele num outro mundo.» A assegurar essa comunicação com o além estão os ecrãs, os infinitos canais de televisão e do streaming, e depois os automóveis que asseguram «a conexão com a central mortuária das compras, o supermercado». No livro que dedicou à América, Baudrillard recolhe anotações para essa ode profana, falando num «hiper-realismo delicioso», numa «ascese extática», reconhecendo como há uma tonalidade secreta de fim do mundo que atravessa a vida desta nação, com as suas seitas monomaníacas
da castidade ou do crime, com os seus joggers sonambúlicos a correr entre as brumas da manhã. Ele demora-se nesse «sorriso imunitário» que é próprio dos americanos, o sorriso publicitário que «participa da criogenização dos afetos», e que não anda longe daquele que o defunto arvora quando é velado nalgum «funeral home». «Sorriso autoprofético, como todos os sinais publicitários: Sorria, e irão sorri-lhe de volta. Sorria para mostrar a sua transparência, a sua franqueza. Sorria se não tiver nada a dizer, não esconda, sobretudo, que nada tem a dizer, ou que os outros lhe são indiferentes. Deixei transparecer espontaneamente esse vazio, essa indiferença, ilumine o seu rosto com o grau zero da alegria e do prazer, sorria, sorria…»
O eterno simulacro
E quanto à preocupação contínua com a saúde e a beleza física, Baudrillard fala de um «hedonismo ligado», em que o corpo não passa de «um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros estúdios e academias que vão desde Venice a Tupanga Canyon, e que descrevem uma obsessão coletiva assexuada». Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… «Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.» Ele adianta como ali tudo merece proteção, embalsamamento, restauração. «Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro. Não só os americanos são missionários, mas são anabatistas: tendo chegado atrasados ao batismo original, sonham em batizar tudo uma segunda vez, e só atribuem valor a esse sacramento ulterior, que é, como se sabe, a reedição do primeiro, mas mais verdadeiro – o que é a definição perfeita do simulacro.»
Se na natureza este efeito de fossilização levava milhões de anos, agora pode ser levado a cabo de forma quase instantânea graças às técnicas mais recentes de cópia e recomposição à escala digital, e assim, todo este movimento de conservação, essa promessa de salvação tecnológica que deu origem, no entender de Baudrillard, a uma nova forma de evangelização, responde à urgência de escapar aos desastres que ocupam o horizonte do futuro. «Por toda a parte a sobrevivência está na ordem do dia, como por uma obscura náusea da vida ou um desejo coletivo de catástrofe (…), mas o paradoxo desta sociedade está em que não se possa já morrer sequer, porque já se está morto… Eis o verdadeiro suspense. E não decorre somente da ameaça nuclear, resulta igualmente da facilidade de viver (…), nesta sociedade hiperprotegida, já não temos a consciência de morrer, pois que estamos subtilmente introduzidos na excessiva facilidade de viver.»
Um mundo cansado de tanto Apocalipse
Para este autor, toda essa panóplia de sobrevivência, que abarca a dietética, a ecologia, a proteção das sequoias, das focas, das baleias, assinala mais uma obstinação em sobreviver do que em viver, sendo o sinal mais inquietante da degradação da espécie. «Pois se considerarmos as formas que atualmente assume, abrigos antiatómicos, criogenização, treino de força, vê-se que são exatamente as do extermínio. Para não morrer, prefere-se a extradição numa bolha protetora, seja de que natureza for.» Para Baudrillard, todo esse guião do desarmamento nuclear, todas as negociações teatrais, seja para pôr cobro a conflitos regionais ou para baixar os níveis de emissão de carbono, mesmo as fantasias que animam os Blockbusters, das guerras nas estrelas, à infantilização dos públicos que enchem salas de cinema para ver filmes de super-heróis, tudo isso aponta para um mundo que, cansado de tanto Apocalipse, se preserva dele pela falta de imaginação. E neste ponto, uma vez mais, as intuições do filósofo francês conjugam-se com as de Ballard, quando este nos diz que, se «os Estados Unidos desenvolveram a ciência e a tecnologia mais avançadas que o mundo jamais viu, e conseguiram pôr o homem na Lua e criar os supercomputadores que talvez um dia nos substituam, mas, curiosamente, trata-se de uma nação com uma cultura de entretenimento ao nível da banda-desenhada e dirigida quase na totalidade a adolescentes entediados e violentos». Ao escrever Olá, América!, Ballard procurou reconhecer a lógica secreta do sonho americano, admitindo que, no futuro, este «poderá culminar num qualquer presidente Manson a jogar à roleta nuclear em Las Vegas – ideia bem menos fantasiosa do que poderá parecer de início, se pensarmos no ator de Hollywood que ocupou a Casa Branca durante quase toda a década de 1980, alguém com a cabeça cheia de tralha herdada dos filmes antigos, que sonhava com mísseis de lasers saídos do universo Star Wars».
E o que é Donald Trump senão uma mistura entre uma celebridade demente que se transforma num líder de culto e degrada o sonho americano até fazer deste um pesadelo com repercussões globais?