Marcial Gala. Chamem-me a noiva da morte

Marcial Gala. Chamem-me a noiva da morte


Rauli foi sempre um miúdo incompreendido. Só pensava em livros, ou em pintar os lábios de carmim e as pestanas de preto azulado. Roubava roupa à mãe, maquilhava-se com as suas pinturas, e escondia os seus vestidos num palácio abandonado a que chamava País das Maravilhas.


Rauli não queria ser Rauli, porque era Cassandra. Rauli esteve sempre no lugar errado, à hora errada, no corpo errado. Meio homem, meio mulher, meio bruxo. Acostumado a ser maltratado e enxovalhado desde que se lembra de ser gente. Sabe exatamente como todos vão morrer. Ou pelo menos crê que sabe. Mas de nada lhe adiantará contar as suas premonições, porque ninguém acreditará nele. Na sua curta vida terrena, muitos foram os nomes que lhe couberam. Raulito Iriarte, O Sem Ossos, o Sem Sombras, Wendy, Marilyn Monroe, Olivia Newton- John.

Chamem-me Cassandra (2019) do cubano Marcial Gala (1965) editado pela Quetzal, com tradução de Margarida Amado Costa, é o primeiro livro do escritor a ser traduzido para português.

Desde pequeno que Rauli queria ser uma rapariga. Só pensava em livros, ou em pintar os lábios de carmim e as pestanas de preto azulado. Roubava roupa à mãe, maquilhava-se com as suas pinturas, escondia as suas saias e vestidos curtos num palácio abandonado ao qual chamava de País das Maravilhas, e sonhava parecer-se com a sua exuberante tia materna Nancy que morreu ainda muito jovem. Foi sempre um miúdo incompreendido. Na escola os professores acusavam-no de “diversionismo ideológico” e estavam constantemente a chamá-lo à atenção para que não lesse tanto, para que socializasse mais com as outras crianças, mas Rauli nunca encontrou um lugar entre os demais. Só entre os deuses. Só os deuses lhe davam força, coragem, apoio e respostas.

Em criança ainda muito pequeno viveu uma experiência que o marcaria para sempre. “Com quatro anos tive a minha primeira revelação, estava a brincar no pátio quando vi as linhas do chão em xadrez do meu quarto alinharem-se sem se cruzarem, todas paralelas, todas formando as ondas de um rio que não levava a lado nenhum. O rio era o Aqueronte, sei-o agora, e do nada, navegando esse rio, apareceu a barca mais velha do mundo guiada por um barqueiro de barba infinita que ergueu a mão repleta de pardais.”

É esse barqueiro quem lhe vai dizer que ele é Cassandra, a “lúcida adivinha” e que ele tem de pedir à mãe para lhe comprar a Ilíada com edição cubana, para compreender ao certo quem era ele próprio e o barqueiro. A Ilíada vai passar a ser uma espécie de Bíblia nos lábios do narrador.

Aos 17 anos chega-lhe a convocatória do Comité Militar. Querem fazer dele um soldado da Pátria. Mas ele é pequeno e lingrinhas. Só é selecionado por dois míseros milímetros. Todos lhe pedem para não ir, mas ele, mesmo sabendo que a sorte não o levará rodado nas suas saias, vai sem medo. Quando chega a Angola aos 18 anos é mais um entre os milhares de soldados cubanos. Lá, todos o passarão a chamar de Marilyn, menos o Capitão, que o chamará de Olivia. Quando os soldados estão bêbados “o racismo, como a maré, vem à tona na praia das suas bocas.”

Todo o ambiente que rodeia Rauli, seja na escola, na ida para Angola ou em casa, é violento e desestruturante. A relação entre o pai e mãe, depois entre o pai e a amante russa. A relação entre a mãe com o próprio Rauli e o seu irmão José. Entre o irmão José e a namorada bailarina. Entre a tia Nancy e os seus namorados.

O pai era um mecânico bronco, “bruto como um tamanco”, antigo campeão de ginástica. Os filhos consideraram-no sempre muito agressivo, distante, “ignorante, mentiroso e amigo do alheio.” Era um alcoólico e nunca ninguém sabia o que lhe passava pela cabeça.

A russa é sem dúvida a personagem mais intrigante desta narrativa. É uma mulher deslumbrante que se destaca de todos os cubanos, em especial do pai de Raulito. Ninguém compreende o que ela verá nele, tão baixo, sujo e ignorante. Especialmente Raulito, mas ele gosta bastante dela porque se sente de alguma maneira protegido. Ela é uma mulher muito culta, sábia e serena. Dá aulas na universidade e oferece-lhe livros marcantes. Falam de poesia. Ela conhece todos os poetas. O primeiro morto que Raulito vê também é um poeta. É Edgar Allen Poe. Raulito considera que o seu primeiro poema foi o seu primeiro presságio. Tinha acabado de ler a Ilíada e antes de rumar a Angola ofereceu à russa todos os seus poemas.

À exceção de Rauli, todos os personagens são imprevisíveis. Esta imprevisibilidade é o motor de adrenalina da história. Os homens são porcos, terríveis e impiedosos. Só os deuses é que estão do lado da personagem principal. Sempre estiveram.

O tempo narrativo desta história mistura passado, presente e futuro. Tão depressa estamos na casa de Rauli com os pais ainda casados, como estamos em Angola em plena selva, ou regressamos aos seus 15 anos a uma festa onde ele aparece vestido de mulher com o melhor amigo Roberto. Tão depressa o vemos caído no chão a levar porrada no recreio, como o vemos despedir-se do pai e da russa antes de ir para a guerra, ou como o encontramos já morto à espera das barcas que o levarão para o templo de Poseidon e a ver a mãe enlouquecida e saudosa a tricotar roupas para netos imaginários.

Quando o levaram de Cuba para combater em Angola ele sentiu-se um “soldadinho de chumbo”, “carne para canhão”. E era carne para canhão o que iria mesmo ser. Para todos, especialmente para o Capitão, que todas as noites o começou a chamar à sua tenda. Primeiro com a desculpa de lhe datilografar cartas à mulher, depois com a desculpa de redigir cartas às famílias dos mortos. Depois sem desculpa para o penetrar à força e a seu bel prazer. Raulito auto intitulava-se “o animal de estimação do Capitão.” Mas o Capitão, embora se sentisse absurdamente atraído por ele, tratava-o mal muitas vezes. Pede-lhe que transforme a sua tenda no Taj Mahal ou em Versalhes, e quer vê-lo a toda a hora vestido de mulher, porque sonha que esteve em palácios e o “encontrou num remanso de paz, lá no horizonte onde nasce o arco-íris”. Mas o remanso de paz e o arco-íris vão acabar quando surgem suspeitas da relação entre os dois. Cassandra considera-se por isso a “noiva da morte”, e sabe que não vai haver amuleto capaz de a proteger.

A grande parte dos soldados são homens com o coração forjado em raiva e desprezo. Só pensam em ir aos quilombos violar as angolanas, ou em sentir o metralhar das armas e ver “cair tipos como bonecos”. Mas Raulito não quer matar ninguém.

Este é um livro absolutamente perturbante. Há um sem fim de passagens que nos marcam. Os momentos em que o narrador é violado pelo Capitão, ou quando em miúdo é espancado no recreio pelos colegas ou pelo pai. Quando é humilhado sem piedade pelos oficiais na guerra, mas talvez as passagens mais chocantes sejam aquelas em que Raulito a pedido da mãe se mascara de Nancy. Nessas alturas, em que a mãe fala com o filho como se estivesse na presença da irmã que morreu, e ele tem de lhe falar de um homem com quem Nancy namorou, algo de arrepiante começa a rodear demasiado perto o leitor.

A mãe, além de penteá-lo e de lhe chamar pelo nome da irmã e de o vestir com as suas roupas mais coloridas, pedia-lhe para ele ir buscar as bonecas da sua meninice, e brincavam com elas fingindo serem duas irmãs. Nesta altura ele já tinha quinze anos.

A mitologia é o pilar basilar de todo o enredo. Funciona como um amparo para Rauli. É tal e qual uma bomba de oxigénio.

No decorrer da história, o leitor pela crença e pela força de espírito do personagem principal é capaz de ouvir as vozes em eco das Erínias pressagiando a sua morte por exemplo, da mesma maneira que pode adivinhar perfeitamente quando Apolo ou Atena se irão aproximar para acompanhar Raulito/Cassandra enquanto ele/ela atravessava a cidade à noite vestido de mulher. Sempre que se vê em situações de apuro, o narrador tenta valer-se da ajuda dos deuses.

O leitor pode ter a sensação a maioria do tempo que está entre duas narrativas cruzadas. Porque está mesmo. Entre a mística e a terrena. Às vezes pode não saber bem em qual das duas se encontra, mas sabe que página a página vai ter de ir nesta história quase à catanada, porque só assim poderá abrir alas por entre as palavras de Marcial Gala. É que todas as memórias do narrador se assemelham a um batalhão de minas camufladas. São memórias envoltas numa pátina lutuosa de mágoa e dor que nos açoitam com violência. Mas embora este livro tenha todos os componentes para nos afundarmos nessa mágoa e nessa dor, há algo de cristalino que nos confere um poder misterioso de escapar à socapa para junto de sedutoras Nereidas e Dríades.