A vertigem do caldo entornado


A vida nos grandes centros urbanos está a transformar-se numa selva, sem mínimos de educação, de respeito pelo outro e de observâncias das regras comunitárias, plasmadas na lei, num exercício de afirmação de direitos sem deveres, em que nada é respeitado, nem os que têm de zelar pelo cumprimento da legalidade.


Por muito que custe a alguns, viver em sociedade implica a existência de regras, que devem ser interiorizadas e respeitadas por todos, sob pena das nossas esferas de liberdade individual entrarem em conflito com as dos outros. Isso implica uma visão integrada dos direitos, deveres, liberdades e garantias, sem enviesamentos em função de subjetividades, onde se incluem as visões ideológicas distorcidas. Fruto de no passado os direitos estarem fragilizados pela ditadura e de uma certa cultura de laxismo em relação aos deveres e às realidades, tem-se permitido que a inação se sobreponha à ação transformadora, quer na afirmação das regras sociais, quer na iniciativa para mudar o que está mal, sendo fator de risco. É uma certa propensão para o preconceito e a indiferença com a evidência da realidade que suscita um certo caldo de cultura e depois o caldo entornado. Essa indiferença, que é geradora de novos fatores de risco e de perceções negativas, aconselhava uma ação integrada e sustentada. Tudo o que não tem havido nos territórios urbanos e suburbanos palco de incivilidades e crimes na sequência de uma morte lamentável. O quadro de vertigem para o caldo entornado só não é maior porque existem autarquias, instituições e associações locais que procuram mitigar os problemas e afirmar uma dimensão positiva da vida em comunidade. Foi para intervir nestas realidades que surgiram os Contratos Locais de Segurança, tendo tido oportunidade de, no Governo Civil de Lisboa, investir empenho e recursos no desenvolvimento do Contrato de Loures, que integrava as freguesias da Apelação, Camarate e Sacavém, com o envolvimento de mais de 50 parceiros e resultados positivos na afirmação individual e comunitária. O contrato atuava na prevenção, na geração de oportunidades, na criação de um ambiente comunitário positivo e no reforço do policiamento de proximidade, com acréscimo de recursos humanos e materiais das forças de segurança alocadas ao projeto. Infelizmente, o fim dos Governos Civis, a conquista do município de Loures pela CDU e o governo PSD/CDS implodiram na prática os Contratos Locais de Segurança, impedindo o caminho positivo que estava a ser trilhado, com inúmeras iniciativas de integração com respeito pela diversidade das comunidades e de criação de oportunidades para as crianças e jovens dos bairros, através da Orquestra Geração e do programa Desperta no Desporto, com rugby, judo e esgrima, que chegou a gerar um jogador da seleção nacional de rugby. Estava-se a reforçar a convivência social, a posicionar a autoridade da polícia e gerar bons exemplos para o bairro contrários às incivilidades e à violação da lei, mas o esforço integrado, com essa dimensão, foi descontinuado. É esta indiferença e inconsistência da ação política central perante as realidades, num país amontoado no litoral, desertificado no interior e fragilizado na autoridade do Estado, que gera o pasto para a afirmação dos riscos, das ideologias promotoras do laxismo e dos populismos fáceis, em todos os quadrantes políticos. Onde estava a capacidade reivindicativa do PCP quando o Contrato Local de Loures foi implodido? Onde estava o impulso revolucionário do BE quando pôde fazer mais em Lisboa, com pelouros, enquanto o seu vereador Robles participava na onda da especulação imobiliária? Ou quando fizeram parte da solução governativa e mitigaram as ações de rua, as contestações e as iniciativas políticas, por conveniência de proximidade ao poder executivo e às suas conquistas para os nichos eleitorais? A atenção e ação em relação a estes territórios não pode ser de geometria variável, em função dos humores políticos ou das disponibilidades das forças de segurança, tem de ser integrada e sustentada, musculada na prevenção e no combate aos desvios das regras e da legalidade. Boa parte dos cidadãos têm sentimentos de injustiça em relação às opções do Estado ou às realidades, mas não se põem a destruir património público e privado, a torto e a direito, em protesto, em alguns casos, em prejuízo das próprias comunidades.

A vida nos grandes centros urbanos está a transformar-se numa selva, sem mínimos de educação, de respeito pelo outro e de observâncias das regras comunitárias, plasmadas na lei, num exercício de afirmação de direitos sem deveres, em que nada é respeitado, nem os que têm de zelar pelo cumprimento da legalidade. Esta inação perante a degradação, o deslaço como temos apelidado, é a causa de todas oportunidades para os desvios individuais, comunitários e políticos, que servem alguns, os das narrativas políticas e dos incumprimentos, mas são prejudiciais para a cidadania, as comunidades e o país. E bem podemos estar montados no “país dos brandos costumes” e nos rankings dos “países mais seguros do mundo” que, se persistirmos na indiferença perante os sinais, mais cedo que tarde, o caldo vai voltar a entornar-se. Uma certa esquerda e a extrema-direita podem estar interessados nessa circunstância, para aproveitamento político-partidário, mas não podemos transigir na prevenção, na geração de oportunidades de integração, em mínimos de compromisso social, no respeito pelas instituições e na repressão das incivilidades e das ilegalidades. Sem segurança não teremos nem quotidiano nem ideologia, muito menos futuro.

Sem segurança não há direitos, liberdades e garantias, é a selva desprovida de regras. Não é esse o caminho. É agir, em todas as dimensões.

NOTAS FINAIS

PRESSÃO PARA O DISPARATE. Uma morte é sempre lamentável. A precipitação das instituições sobre os acontecimentos, a mitigar ou, de quem investigava, a acicatar os ânimos, com informações preliminares para os media, é um inaceitável comportamento incendiário.

PRESSÃO PARA A RECONDUÇÃO.A praça pública da semana que passou foi palco de uma pressão institucional e mediática do poder político executivo para uma recondução de um titular de funções públicas. Será curioso constatar se a pressão produz o efeito desejado. No mínimo, será um perigoso entorse do sistema democrático.

O PASTO DO CHEGA. A inação que gera a circunstância e que mantém o problema é o pasto do CHEGA, não sendo apenas pela palavra, feita verborreia inconsequente, que se combate, mas pela erradicação das causas e motivos de descontentamento. Não perceber isso é o que está na causa da sua afirmação. Isso e a sintonia com a conversa do sofá, da rua, do café ou do táxi.

A vertigem do caldo entornado


A vida nos grandes centros urbanos está a transformar-se numa selva, sem mínimos de educação, de respeito pelo outro e de observâncias das regras comunitárias, plasmadas na lei, num exercício de afirmação de direitos sem deveres, em que nada é respeitado, nem os que têm de zelar pelo cumprimento da legalidade.


Por muito que custe a alguns, viver em sociedade implica a existência de regras, que devem ser interiorizadas e respeitadas por todos, sob pena das nossas esferas de liberdade individual entrarem em conflito com as dos outros. Isso implica uma visão integrada dos direitos, deveres, liberdades e garantias, sem enviesamentos em função de subjetividades, onde se incluem as visões ideológicas distorcidas. Fruto de no passado os direitos estarem fragilizados pela ditadura e de uma certa cultura de laxismo em relação aos deveres e às realidades, tem-se permitido que a inação se sobreponha à ação transformadora, quer na afirmação das regras sociais, quer na iniciativa para mudar o que está mal, sendo fator de risco. É uma certa propensão para o preconceito e a indiferença com a evidência da realidade que suscita um certo caldo de cultura e depois o caldo entornado. Essa indiferença, que é geradora de novos fatores de risco e de perceções negativas, aconselhava uma ação integrada e sustentada. Tudo o que não tem havido nos territórios urbanos e suburbanos palco de incivilidades e crimes na sequência de uma morte lamentável. O quadro de vertigem para o caldo entornado só não é maior porque existem autarquias, instituições e associações locais que procuram mitigar os problemas e afirmar uma dimensão positiva da vida em comunidade. Foi para intervir nestas realidades que surgiram os Contratos Locais de Segurança, tendo tido oportunidade de, no Governo Civil de Lisboa, investir empenho e recursos no desenvolvimento do Contrato de Loures, que integrava as freguesias da Apelação, Camarate e Sacavém, com o envolvimento de mais de 50 parceiros e resultados positivos na afirmação individual e comunitária. O contrato atuava na prevenção, na geração de oportunidades, na criação de um ambiente comunitário positivo e no reforço do policiamento de proximidade, com acréscimo de recursos humanos e materiais das forças de segurança alocadas ao projeto. Infelizmente, o fim dos Governos Civis, a conquista do município de Loures pela CDU e o governo PSD/CDS implodiram na prática os Contratos Locais de Segurança, impedindo o caminho positivo que estava a ser trilhado, com inúmeras iniciativas de integração com respeito pela diversidade das comunidades e de criação de oportunidades para as crianças e jovens dos bairros, através da Orquestra Geração e do programa Desperta no Desporto, com rugby, judo e esgrima, que chegou a gerar um jogador da seleção nacional de rugby. Estava-se a reforçar a convivência social, a posicionar a autoridade da polícia e gerar bons exemplos para o bairro contrários às incivilidades e à violação da lei, mas o esforço integrado, com essa dimensão, foi descontinuado. É esta indiferença e inconsistência da ação política central perante as realidades, num país amontoado no litoral, desertificado no interior e fragilizado na autoridade do Estado, que gera o pasto para a afirmação dos riscos, das ideologias promotoras do laxismo e dos populismos fáceis, em todos os quadrantes políticos. Onde estava a capacidade reivindicativa do PCP quando o Contrato Local de Loures foi implodido? Onde estava o impulso revolucionário do BE quando pôde fazer mais em Lisboa, com pelouros, enquanto o seu vereador Robles participava na onda da especulação imobiliária? Ou quando fizeram parte da solução governativa e mitigaram as ações de rua, as contestações e as iniciativas políticas, por conveniência de proximidade ao poder executivo e às suas conquistas para os nichos eleitorais? A atenção e ação em relação a estes territórios não pode ser de geometria variável, em função dos humores políticos ou das disponibilidades das forças de segurança, tem de ser integrada e sustentada, musculada na prevenção e no combate aos desvios das regras e da legalidade. Boa parte dos cidadãos têm sentimentos de injustiça em relação às opções do Estado ou às realidades, mas não se põem a destruir património público e privado, a torto e a direito, em protesto, em alguns casos, em prejuízo das próprias comunidades.

A vida nos grandes centros urbanos está a transformar-se numa selva, sem mínimos de educação, de respeito pelo outro e de observâncias das regras comunitárias, plasmadas na lei, num exercício de afirmação de direitos sem deveres, em que nada é respeitado, nem os que têm de zelar pelo cumprimento da legalidade. Esta inação perante a degradação, o deslaço como temos apelidado, é a causa de todas oportunidades para os desvios individuais, comunitários e políticos, que servem alguns, os das narrativas políticas e dos incumprimentos, mas são prejudiciais para a cidadania, as comunidades e o país. E bem podemos estar montados no “país dos brandos costumes” e nos rankings dos “países mais seguros do mundo” que, se persistirmos na indiferença perante os sinais, mais cedo que tarde, o caldo vai voltar a entornar-se. Uma certa esquerda e a extrema-direita podem estar interessados nessa circunstância, para aproveitamento político-partidário, mas não podemos transigir na prevenção, na geração de oportunidades de integração, em mínimos de compromisso social, no respeito pelas instituições e na repressão das incivilidades e das ilegalidades. Sem segurança não teremos nem quotidiano nem ideologia, muito menos futuro.

Sem segurança não há direitos, liberdades e garantias, é a selva desprovida de regras. Não é esse o caminho. É agir, em todas as dimensões.

NOTAS FINAIS

PRESSÃO PARA O DISPARATE. Uma morte é sempre lamentável. A precipitação das instituições sobre os acontecimentos, a mitigar ou, de quem investigava, a acicatar os ânimos, com informações preliminares para os media, é um inaceitável comportamento incendiário.

PRESSÃO PARA A RECONDUÇÃO.A praça pública da semana que passou foi palco de uma pressão institucional e mediática do poder político executivo para uma recondução de um titular de funções públicas. Será curioso constatar se a pressão produz o efeito desejado. No mínimo, será um perigoso entorse do sistema democrático.

O PASTO DO CHEGA. A inação que gera a circunstância e que mantém o problema é o pasto do CHEGA, não sendo apenas pela palavra, feita verborreia inconsequente, que se combate, mas pela erradicação das causas e motivos de descontentamento. Não perceber isso é o que está na causa da sua afirmação. Isso e a sintonia com a conversa do sofá, da rua, do café ou do táxi.