O grande voo das Vespas atenienses


Aristófanes serviu-se da comédia para vituperar não apenas as falhas do aparelho de justiça como o desinteresse dos líderes políticos a tão grave problema sentido pela população ateniense. Sim, transmigraram e voaram para Portugal.


Ao olhar para a incompreensão e desconfiança latentes na sociedade portuguesa no funcionamento do sistema de justiça, lembrei-me da comédia de Aristófanes, As Vespas. A comédia, representada no ano 422 a. C., retrata a polémica existente em Atenas sobre o funcionamento dos tribunais e constitui uma crítica implacável à administração da justiça, denunciando a demagogia e as enormes falhas que a iam assolando.

Na trama avultam três personagens principais, Filocléon, o seu filho Bdelicléon e as Vespas, figuras que Aristófanes criou para caracterizar o aviltamento do aparelho judicial, uma visão pessimista que o próprio autor perfilhava.

Filocléon era um alto magistrado que exercia desonestamente as suas funções, abusava do seu estatuto, causava medo aos réus e orgulhava-se de nunca ter deixado qualquer acusado em liberdade.

Bdelicléon, o seu filho, contestava o sistema e as atitudes do pai e insistia em demonstrar-lhe como era criticável o seu comportamento de magistrado. Não conseguindo dissuadi-lo da sua reprovável atitude, aprisionou-o em casa, impedindo-o de se deslocar ao Tribunal.

As Vespas representavam a classe instalada, da política à magistratura, que dominava e integrava a administração da justiça, sempre pronta a utilizar o ferrão na defesa dos seus privilégios.

Perante a detenção de Filocléon, rebelou-se a classe e um grupo dos seus mais intransigentes defensores, mascarados de vespas, dirigiu-se a casa do magistrado antes do amanhecer para o libertar da prisão domiciliária e reconduzi-lo ao exercício das suas funções judiciais. Ao longo da comédia vários quadros vão ridicularizando o funcionamento dos tribunais e evidenciando o sentimento de rejeição sentido pela sociedade ateniense. 

Lembrei-me pois dessa comédia de Aristófanes, porventura mal, já que entre nós não se aprisionam magistrados, impedindo-os de exercerem as suas funções, pelo que nenhuma organização de vespas é necessária para os libertar. Mas, simbolizando as Vespas atenienses o suporte de um sistema enredado nas suas falhas, incoerências e contradições, lembrei-me, e agora porventura bem, que se torna perfeitamente razoável considerá-las também como uma caricatura autêntica do que se vai passando entre nós, desbastado, claro está, o excesso que tal figura literária normalmente comporta. Ressalvando a idoneidade pessoal dos magistrados, também no tempo e no modo de funcionamento do nosso sistema de justiça há actuações que prefiguram, alegoricamente falando, verdadeiros ataques de vespas, ao modo dos da comédia grega.

Desde logo, na coincidência na hora da acção, ao raiar da manhã, e na surpresa e rapidez da investida. E se nos seus raides em defesa da ordem vigente as Vespas de Aristófanes se faziam certamente transportar nas mais velozes bigas ou quadribigas puxadas por dois ou quatro possantes cavalos, as nossas também não dispensam viaturas aceleradas, mas de incomparavelmente maior cavalagem, ou mesmo aeronaves, para, em aparatosos cortejos, buscar e deter presumidos suspeitos.

E se as vespas gregas se juntavam em coro a celebrar o sucesso da acção, as nossas festejam com as novas irmãs germinadas nas televisões o espectáculo das buscas e detenções, submetendo logo aí os visados ao ferrão da maledicência pública. Punição continuada nas subsequentes cenas do comentário adjacente, transformando os suspeitos em réus, embora lhes chamem arguidos, e suscitando julgamentos populares, novas e persistentes ferroadas a dilacerar a carne e, tantas vezes, o carácter de muitos dos acusados.

A demorada instrução dos processos, muitos terminados em arquivamento, a quebra do segredo de justiça, a publicitação ilegal de escutas telefónicas ou o tempo que tantas vezes vai da finalização do julgamento ao conhecimento da sentença, tudo isso constitui um continuado aprofundar do ferrão, e assim cumprimento de pena antes de pronunciada a sentença quando ela inocenta os réus. 

Aristófanes serviu-se da comédia para vituperar não apenas as falhas do aparelho de justiça como o desinteresse dos líderes políticos a tão grave problema sentido pela população ateniense.

Também as falhas no nosso sistema de justiça, cujas causas são diversas e incluem os diversos poderes soberanos, minam a confiança dos portugueses nas instituições democráticas, mas têm deparado com o distanciamento e a insensibilidade das lideranças políticas, legislativas e governamentais.

Uma indiferença que, também ela, constitui uma bem profunda e continuada ferroada em todos e cada um dos portugueses, tornados assim vítimas inocentes de um sistema que clama por reformas.

E assim suspeito bem que se Aristófanes olhasse o Portugal de hoje apenas retocaria a narrativa, mas não a natureza das suas Vespas de há 2500 anos. 

Nota: Trata-se obviamente de um texto de natureza cultural, recordando a eterna obra clássica de Aristófanes. Se algo   vai além, é apenas o eco da voz de Aristófanes.

O grande voo das Vespas atenienses


Aristófanes serviu-se da comédia para vituperar não apenas as falhas do aparelho de justiça como o desinteresse dos líderes políticos a tão grave problema sentido pela população ateniense. Sim, transmigraram e voaram para Portugal.


Ao olhar para a incompreensão e desconfiança latentes na sociedade portuguesa no funcionamento do sistema de justiça, lembrei-me da comédia de Aristófanes, As Vespas. A comédia, representada no ano 422 a. C., retrata a polémica existente em Atenas sobre o funcionamento dos tribunais e constitui uma crítica implacável à administração da justiça, denunciando a demagogia e as enormes falhas que a iam assolando.

Na trama avultam três personagens principais, Filocléon, o seu filho Bdelicléon e as Vespas, figuras que Aristófanes criou para caracterizar o aviltamento do aparelho judicial, uma visão pessimista que o próprio autor perfilhava.

Filocléon era um alto magistrado que exercia desonestamente as suas funções, abusava do seu estatuto, causava medo aos réus e orgulhava-se de nunca ter deixado qualquer acusado em liberdade.

Bdelicléon, o seu filho, contestava o sistema e as atitudes do pai e insistia em demonstrar-lhe como era criticável o seu comportamento de magistrado. Não conseguindo dissuadi-lo da sua reprovável atitude, aprisionou-o em casa, impedindo-o de se deslocar ao Tribunal.

As Vespas representavam a classe instalada, da política à magistratura, que dominava e integrava a administração da justiça, sempre pronta a utilizar o ferrão na defesa dos seus privilégios.

Perante a detenção de Filocléon, rebelou-se a classe e um grupo dos seus mais intransigentes defensores, mascarados de vespas, dirigiu-se a casa do magistrado antes do amanhecer para o libertar da prisão domiciliária e reconduzi-lo ao exercício das suas funções judiciais. Ao longo da comédia vários quadros vão ridicularizando o funcionamento dos tribunais e evidenciando o sentimento de rejeição sentido pela sociedade ateniense. 

Lembrei-me pois dessa comédia de Aristófanes, porventura mal, já que entre nós não se aprisionam magistrados, impedindo-os de exercerem as suas funções, pelo que nenhuma organização de vespas é necessária para os libertar. Mas, simbolizando as Vespas atenienses o suporte de um sistema enredado nas suas falhas, incoerências e contradições, lembrei-me, e agora porventura bem, que se torna perfeitamente razoável considerá-las também como uma caricatura autêntica do que se vai passando entre nós, desbastado, claro está, o excesso que tal figura literária normalmente comporta. Ressalvando a idoneidade pessoal dos magistrados, também no tempo e no modo de funcionamento do nosso sistema de justiça há actuações que prefiguram, alegoricamente falando, verdadeiros ataques de vespas, ao modo dos da comédia grega.

Desde logo, na coincidência na hora da acção, ao raiar da manhã, e na surpresa e rapidez da investida. E se nos seus raides em defesa da ordem vigente as Vespas de Aristófanes se faziam certamente transportar nas mais velozes bigas ou quadribigas puxadas por dois ou quatro possantes cavalos, as nossas também não dispensam viaturas aceleradas, mas de incomparavelmente maior cavalagem, ou mesmo aeronaves, para, em aparatosos cortejos, buscar e deter presumidos suspeitos.

E se as vespas gregas se juntavam em coro a celebrar o sucesso da acção, as nossas festejam com as novas irmãs germinadas nas televisões o espectáculo das buscas e detenções, submetendo logo aí os visados ao ferrão da maledicência pública. Punição continuada nas subsequentes cenas do comentário adjacente, transformando os suspeitos em réus, embora lhes chamem arguidos, e suscitando julgamentos populares, novas e persistentes ferroadas a dilacerar a carne e, tantas vezes, o carácter de muitos dos acusados.

A demorada instrução dos processos, muitos terminados em arquivamento, a quebra do segredo de justiça, a publicitação ilegal de escutas telefónicas ou o tempo que tantas vezes vai da finalização do julgamento ao conhecimento da sentença, tudo isso constitui um continuado aprofundar do ferrão, e assim cumprimento de pena antes de pronunciada a sentença quando ela inocenta os réus. 

Aristófanes serviu-se da comédia para vituperar não apenas as falhas do aparelho de justiça como o desinteresse dos líderes políticos a tão grave problema sentido pela população ateniense.

Também as falhas no nosso sistema de justiça, cujas causas são diversas e incluem os diversos poderes soberanos, minam a confiança dos portugueses nas instituições democráticas, mas têm deparado com o distanciamento e a insensibilidade das lideranças políticas, legislativas e governamentais.

Uma indiferença que, também ela, constitui uma bem profunda e continuada ferroada em todos e cada um dos portugueses, tornados assim vítimas inocentes de um sistema que clama por reformas.

E assim suspeito bem que se Aristófanes olhasse o Portugal de hoje apenas retocaria a narrativa, mas não a natureza das suas Vespas de há 2500 anos. 

Nota: Trata-se obviamente de um texto de natureza cultural, recordando a eterna obra clássica de Aristófanes. Se algo   vai além, é apenas o eco da voz de Aristófanes.