Quais os perigos da influência dos youtubers no comportamento das crianças?

Quais os perigos da influência dos youtubers no comportamento das crianças?


Aparentam ter uma vida divertida, com poucas regras e limites. São vistos por milhões de crianças e adolescentes como os “maiores”, constituindo uma referência. Tânia Correia explica o perigo dos comportamentos dos youtubers na vida dos mais novos


Têm milhões de seguidores nas redes sociais, passam a maior parte do seu dia de câmara na mão, ou sentados em frente ao computador a gravar vídeos ou a conversar com os seus subscritores. Há inúmeros géneros de criadores de conteúdo digital/ influencers para crianças e adolescentes. Desde os que reagem a outros vídeos (por norma de uma maneira exagerada), aos que jogam em direto enquanto interagem com quem os vê, que pregam partidas aos amigos e familiares, que dão a conhecer brinquedos novos ou produtos estranhos que se vendem em sites como a Temu ou Aliexpress, que andam na rua a meter conversa com as pessoas ou a insultá-las, aos que fazem desafios que “não lembram ao menino Jesus”. O leque é grande, o alcance gigante e, quando falamos de crianças e adolescentes, o perigo de influência comportamental está sempre à espreita.

O perigo na linguagem 

Uma das maiores preocupações dos pais portugueses, no que toca a este universo, é a influência que os youtubers brasileiros têm na linguagem dos seus filhos. O brasileiro Luccas Neto, de 32 anos, é um dos maiores youtubers do mundo. Coleciona quase 48 milhões de seguidores no seu canal e dedica a sua vida a fazer conteúdo para os mais novos. Neste momento, dedica-se à criação e reprodução de histórias, fábulas e clássicos do conto infantil. Além disso, já realizou inúmeros filmes, encheu salas de espetáculos e possui uma mansão que muitos comparam com um parque de diversões. Um mundo fantasiado que tem conquistado a atenção dos mais novos. “Foi na festa dos meus filhos que notei que muitos dos seus amiguinhos da escola utilizavam palavras em português do Brasil. Uma das meninas veio pedir-me para ir à casa de banho. Ao invés de dizer ‘casa de banho’, disse ‘banheiro’. Ao pedir um sumo, que para ela é ‘suco’, perguntou se podia tirá-lo da ‘geladeira’, ao invés de ‘frigorífico’. Fiquei espantada”, revela Catarina Pereira, que tem dois filhos de 8 anos. “Com o passar do dia e sempre atenta às brincadeiras e dinâmica, vi que não era a única que falava assim”, continua. “Ao falar com os pais, percebi que tem muito a ver com aquilo a que os miúdos assistem na internet, em particular, no YouTube. Eu controlo muito aquilo que os meus filhos veem na internet. Aliás, não têm telemóvel – são os únicos na turma -, e não têm hábito de assistir a youtubers. Quando o utilizam é para jogar jogos, sempre com a minha autorização e vigilância”, garante. No entanto, admite, pelo convívio com os amigos, já chegaram a casa utilizando algumas dessas palavras. “Chamei-os logo à atenção. Expliquei que o português do Brasil tem muitas palavras diferentes das do português de Portugal e que é importante que não se confundam, ainda para mais agora na escolinha. É na sala de aula, com a professora, que devem aprender”, revela.

Segundo Tânia Correia, psicóloga e diretora clínica da Clínica 3m’s, enquanto pais é importante questionarmos o que é que a criança efetivamente precisa na internet que o mundo real não lhe proporcione. “O que é que a internet precisa de colmatar? Enquanto profissional e mãe, sinto que não há nenhuma necessidade. Quando a criança tem a sua parte criativa desenvolvida, que muitas vezes vem do facto de não haver contacto com a tecnologia, consegue encontrar no mundo real fontes de estímulo. Uma criança habituada ao contacto permanente com a tecnologia não consegue encontrar essa criatividade”, afirma. Por isso, o mais benéfico é “tentar arrastar esse contacto para o mais tarde possível”. Quando há esse contacto, ele deve ser sempre supervisionado. “As crianças não têm recursos nem cognitivos nem emocionais para processar todas as informações que surgem”, alerta.

No que toca à linguagem, de acordo com a psicóloga, quanto mais cedo as crianças forem sujeitas a estes conteúdos, numa fase em que a linguagem não está devidamente adquirida, mais suscetíveis elas estarão de começarem a usar essas palavras. “A verdade é que a maior parte de nós viu novelas brasileiras numa fase da sua vida e não foi por isso que admitiu essa linguagem. Aqui, quanto mais cedo for, mais elas usarão a linguagem. Em termos não só de oralidade, como também da escrita, nós sabemos que também existem aqueles sons como o ‘mais’ e o ‘mas’. As crianças pensam que se escrevem as duas da mesma maneira. Se a linguagem ainda não está estruturada, há esse risco. Trazemos muita confusão para um sistema que ainda está em aprendizagem”.

Contra regras e limites

Se, no caso de Luccas Neto, o problema não está no conteúdo, há outros youtubers que já mudaram muito o seu trabalho ao longo do tempo devido a queixas e críticas de muitos pais, especialistas e meios de comunicação. Wuant, D4rkframe e SirKazzio são alguns deles. No passado, muitos moraram juntos, criando a famosa “casa dos youtubers”. Uma mansão milionária, utilizada para a criação de conteúdo conjunto. Cortar objetos com uma faca quente, tomar banho numa banheira cheia de gelo e coca-cola ou enchê-la com 15 mil euros, irritar um amigo com um maçarico e fogo, extintores, partindo o seu computador, telemóvel ou cama, assustá-lo com pequenos explosivos, misturar ácido com coca cola e outros alimentos, pegar fogo a 20 mil fósforos, fazer depilação com cola quente, declamar “poesia” cheia de palavrões, provar as “pimentas mais fortes do mundo”, brincar com uma bola de choques, explorar sítios abandonados… Em 2018 – talvez considerado o auge desses youtubers –, tanto Ana Galvão como Nuno Markl partilhavam a sua preocupação sobre os conteúdos partilhados. “Há, de facto, um grupo de youtubers, que gravam vídeos sem parar, que têm fãs aos molhos, e que, todos os dias, apresentam ao mundo conteúdo falado em mau português, cheio de palavrões, obscenidades, apelo a insultar os pais, e ainda, desafios para as crianças serem rebeldes na escola”, escreveu a locutora da Renascença num longo texto publicado nas suas redes sociais. E rapidamente começaram os ataques à radialista e o seu ex-marido. Nuno Markl veio em sua defesa: “O Wuant diz: ‘Quando a tua mãe te for acordar para ires para a escola, manda-a para o c…’. Tanto a Ana como eu tivemos a elegância de não referir o nome do Wuant nos nossos posts, para que ele não fosse alvo de bullying. Mas como acabámos nós por ser, aqui fica esclarecido […]. Vi eu, ao lado do meu filho. Porque achava que o Wuant até era um tipo fixe. Mas quem convida os putos a mandar as mães para esse sítio não me parece grande coisa”, justificou o comediante, locutor e apresentador.

“É importante nós percebermos que esses youtubers apelativos para as crianças, devem corresponder a um mundo de fantasia. No caso dos pré-adolescentes eles estão numa fase de alguma moral, de como é que eles se vão posicionar em termos morais no mundo, e há um adulto que se comporta de acordo como eu gostaria que acontecesse, neste mundo sem regras, sem limites. ‘Ele dá resposta a isso, por isso vou admirar essa pessoa’”, explica Tânia Correia. Segundo a especialista, independentemente da idade de quem faz o vídeo a preocupação deve ser: o que entende esta pessoa de desenvolvimento infanto-juvenil? O que sabe ela das necessidades destas crianças? O que antecipa que elas vão fazer com a informação? Isto é alguém que está preocupado em ter um papel positivo na vida destas crianças adolescentes ou está preocupado em ter visualizações? “Muitas das vezes é o segundo caso. E as visualizações obtêm-se a partir daquilo que choca, daquilo que é feito contra aquilo que são normas, regras e valores. É isso que nos preocupa enquanto pais: são estas pessoas as referências dos nossos filhos? O meu filho vai almejar ser como alguém… Estas fases são de construção e estes exemplos têm muito peso”, aponta.

Procura por aceitação

Mas tal como acima referido, se há quem se mantenha em casa com os amigos, ou em frente ao computador, há uns anos que são cada vez mais aqueles que escolhem a rua como cenário para os seus vídeos. Pedro Lourenço é um deles. Com 117 mil seguidores no YouTube, é considerado um dos youtubers mais controversos do país. Começou por vídeos mais “inofensivos”, mas rapidamente percebeu que quanto mais fazia “asneiras” mais visualizações tinha. Insultos gratuitos na rua, invasão de salas de aula de universidades, de esquadras da polícia, de diretos de programas de televisão, ao casamento real português… O jovem finge trabalhar em estabelecimentos, entra em hotéis de luxo para incomodar os funcionários e já chegou a ser agredido e preso. “Tomei banho num uber”, “Entrevistas ofensivas a raparigas”, “Passei 100 vezes na mesma passadeira”, “Sobrevivi 24 horas no gelo”, “Vendi droga à polícia”, “Professor irritado partiu-me a câmara”, “Acampei na SIC até ser entrevistado”, são apenas alguns dos títulos dos seus vídeos. O último foi publicado há 11 meses. O jovem já havia tido problemas com a polícia depois de invadir as gravações da série Morangos com Açúcar. Até à data, não se sabe o porquê de ter parado de gravar. Pedro Lourenço chegou a combinar encontros com os seus subscritores que o idolatravam e o acompanhavam na invasão de alguns espaços.

“Ao terem muitas visualizações, eu percebo que estas pessoas são aceites socialmente, a perceção que dá para uma criança ou um jovem é que elas são amadas. E elas querem também ser amadas. O que eles aprendem é que aqueles comportamentos, ações, aquela forma de falar, aquele desafiar do adulto é valorizado pelas pessoas à volta. ‘Os meus amigos gostam disto! Por isso, eu vou tentar adotar os mesmos comportamentos, moldar-me para caber aqui neste lugar onde há aceitação’”, sublinha a psicóloga.

E há cada vez mais crianças que querem ser influencers ou youtubers. “Vendo de fora, parece que são pessoas que se divertem muito e trabalham pouco. É natural que isso aconteça. Mas a maior parte quer sê-lo porque procura aceitação. Como adultos, pais e educadores, temos de interrogar o que é que está a faltar, no que é que temos de trabalhar nestas crianças para elas se aceitarem. Gostarem das pessoas que são. Há aqui um trabalho que não está a ser feito. Quando assim é, abre-se a porta para que estes possíveis modelos entrem e lhe digam: ‘Olha há aqui um caminho a seguir e que as pessoas gostam’. Nós temos de ver os nossos filhos, de valorizá-los para a necessidade de aceitação ficar preenchida. Todos nós somos influenciados por alguém, a questão é o que é que leva uma criança a escolher alguém como uma referência. Temos de construir a visão daquilo que pode ser uma referência”, reforça.