James Wood. A ficção enquanto medicina para exilados


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Com uma década de atraso, chega-nos a edição de um ensaio de natureza híbrida, entre a autobiografia de um leitor e a uma teoria geral da ficção, o que seria sempre um documento precioso vindo daquele que foi, em tempos, o mais desafiante e provocador dos críticos literários, mas que, hoje, parece entregue a essa “morte lenta que negociamos com o mundo através do adormecimento da nossa atenção”.

A leitura hoje parece consistir muitas vezes num mero trâmite de ordem burocrática. Uma inspecção executada por uma brigada de diligentes funcionários que se limitam a verificar se esta ou aquela obra está apta a nutrir o vago entusiasmo do “público”, aquele que “vê na literatura um modo de entretenimento, uma forma de animar ou aprofundar o convívio social, um passatempo, em sentido mais ou menos elevado” (Benjamin). Mesmo indo um pouco para além dos hábitos desse conjunto amorfo que não abre mão desses complexos ritualísticos à volta do livro, dissimulando um efeito de consciência mais profunda e até um ideal de comunidade intelectiva, vemos como o dom de ajuizar se tornou extremamente raro, e a leitura acabou por se tornar um vício de natureza quase inteiramente passiva. Os esforços de leitura crítica são hoje encarados com grande suspeita por esse público robustecido nas suas ilusões de acesso e compreensão universal dos fenómenos, e facilmente entram em espasmos se alguém sugerir que possa haver leitores mais autorizados do que outros para emitir um juízo sobre determinada obra. No fundo, procuram integrar toda a experiência de análise dos textos a uma relação de ordem esotérica, como se essas incursões altamente subjectivas e a sua capacidade de construir argumentos sucessivos a partir de um texto de partida os colocasse ao nível desses que procuram adivinhar o futuro lendo as entranhas dos pássaros, as folhas de chá ou as borras do café. A atenção que consegue desenredar-se por um bocado da corrente absurda dos estímulos que a todo o momento tentam paralisar-nos, está demasiado nervosa para se deixar prender ou fixar a algum tipo de crença, considerando inútil ou ociosa qualquer fixação em estender as possibilidades de um texto. De resto, mesmo entre leitores empenhados, persiste aquela noção um tanto cretina de que a crítica será sempre uma actividade intermediária e subsidiária, ou até parasitária, ocupando uma mera função satélite da verdadeira actividade artística. Em sentido contrário, James Wood defende que sempre que alguém se dá ao trabalho de descrever a sua experiência com as formas artísticas isso acaba vem a originar uma forma artística, sendo evidente que a tarefa de o transmitir não difere da dificuldade de o conceber. “Gosto desta ênfase”, assinalava ele num dos seus ensaios. “Quando escrevo sobre um romance ou um escritor, estou essencialmente a servir como testemunha. Estou a descrever uma experiência e tentando estimular na mente do leitor uma impressão dessa experiência. Henry James caracterizava a tarefa do crítico como ‘heroicamente vicária’.” Contudo, não devemos ficar demasiado irritados com essa propensão para desvalorizar a importância ou influência da crítica, pois como sugeria Abel Barros Baptista a propósito do mais woodanesco dos nossos críticos, há uma certa prática da crítica que deve a sua feição desabusada ao princípio de que a crítica terá desaparecido, ou perdeu a sua função ou crédito junto dos leitores, exercendo-se agora naquele tipo de estouvado liberalismo de uma coisa que decidiu levantar-se do túmulo e ir cheirar e mofar da composição da sua posteridade. Há mitologias que nascem dessa obsessão em vigiar as suas leituras e comprometer-se de tal modo com elas como se assistíssemos à nossa carreira como leitores enquanto uma metamorfose, com um estranho sentimento de fascínio diante da possibilidade de isso nos transformar num outro ser. Enquanto não houver outro mundo, há outras formas, outros ângulos, pontos de observação que fazem variar o sentido íntimo das coisas. “As histórias produzem rebentos, lascas genéticas de si mesmas, desafortunadas corporizações da sua incapacidade ortiginal de contar a história toda”, diz-nos Wood. “Pode dizer-se que as histórias são combinações dinâmicas de excesso e desilusão – desiludem porque têm de terminar e desiludem porque não conseguem realmente terminar.” Antes, este crítico inglês que, nas páginas da The New Yorker, chegou a pedir a cabeça de Steiner e a suceder-lhe como o crítico literário mais influente da sua geração, lança esta hipótese: “Ler ficção é um acto radicalmente privado porque muitas vezes parece que estamos a roubar a privacidade falhada de personagens ficcionais.” Esta noção dilata a margem de que goza esse leitor activo, capaz de agregar sentidos inesperados, de lançar para cada livro sobre o qual se detém alguma variação ou um capítulo de sombra à medida que se aproveita do que o situa face à sua deriva particular, coleccionando argumentos blasfemos, radicais, estridentes, mostrando-se decisivo nas suas abordagens, tirânico nas suas preferências, desenhando um percurso autónomo, mais ou menos secreto. Este leitor hoje quase se insurge num contraste formidável face a esse ser esmagado pelo seu próprio tédio e futilidade e que, quando lê, parece limitar-se a aproveitar a boleia de qualquer pensamento que infunda alguma voluptuosidade nas suas ondas psíquicas, distraindo-o da ridicularia convencional das noções que normalmente se acha a desgastar, como um pequeno roedor enchendo a boca com o pedaço de borracha desse índice constante dos lugares-comuns.

Originalmente publicado em 2015, “A Coisa mais Próxima da Vida” recolhe e desenvolve alguns ensaios de natureza mais pessoal e lança-se numa teoria geral com um misto de seriedade, desenvoltura e um certo cansaço noções já antes abordadas, servindo assim um resumo das teses capitais deste crítico, mas já não naquele momento nascente e exaltado, mas no momento em que estas teses assumem aquela íntima convicção própria daquilo que recolhe o favor da sua solenidade. Temos assim aquele crítico que chegou a ser alcunhado de “elegante assassino” ou de “estripador cortês”, a entregar-se ao registo de um ensaísta endomingado, e que se abandona a esse contínuo ar de quem, em vez de cultivar argumentos impertinentes e provocadores, em lugar da malícia e de um certo ânimo justiceiro, procura aquela irresistível maneira de quem conversa, discreta e eficientemente, abrandando qualquer efeito até ali mais exorbitante e poderoso. Assim, vemos o crítico que podia executar o seu ofício como um sicário, tornar-se algo pachorrento, defendendo que “a vida excedentária de uma história se encontra nos pormenores”, pois são estes que oferecem aquela consistência e aqueles momentos em que a forma se ultrapassa, se anula, se evade. Já sem o menor laivo de prepotência, sem sequer o elegante acinte dos seus textos mais fervorosos, diz-nos que “somos a soma dos nossos pormenores”. Abdicando dos sobressaltos e impulsos estrondosos, descansa sobre a certeza de que os leitores são, de qualquer modo, “expansionistas internos, fantasistas cómicos”. Já não lhe sentimos aquele fulgor de intuições que o levava a adentrar-se num texto como um caçador furtivo desses símbolos sobrenaturais, mas vemo-lo hesitar agora muito mais no desbaste, e em vez dos elementos de relevo drástico, parece extasiar-se agora diante de “organismos de crescimento extremamente lento”. Passou de um dos leitores mais acutilantes e exaltantes, com uma competência fora de série não apenas para partir em demandas do graal entretecendo largos parágrafos de um vertiginoso fôlego interpretativo, ao mesmo tempo que era capaz de nos servir exemplos extraordinários e fórmulas de condensação estupendas, comparações habilidosas, para mais um ensaísta que parece estar “gradualmente a desaparecer para dentro da sua própria longevidade”. Se antes lhe admirávamos aquela escrita sumptuária e que a todo o momento inflectia esse elemento de competição verbal com os escritores que analisava, ao ponto de os seus ensaios se colocarem às cavalitas dos textos sobre os quais se debruçava, agora entretêm-se com disposições algo genéricas, tantas vezes vagamente curiosas e, portanto, apenas aceitáveis, mas que certamente colherão um favor mais alargado junto da massa anémica dos leitores que se servem da literatura como medicação para a artrose ao nível dos seus processos de imaginação e empenho em encontrar uma via tradução face à vida de todos os dias. Wood agora aceita que lemos em busca dessas “privacidades mais bem-sucedidas”, e que “ler ficção é ter pensamentos impraticáveis”, e vai destilando num tom adequado, aspirando àquela “suave equanimidade” na articulação de algo derradeiro, essas lições que associamos à “idade”, como se esta em si mesma fosse um género literário. “É ao observar empenhadamente as pessoas que se começa a compreendê-las; é ao olhar mais atentamente, mais sensivelmente, para as razões das pessoas, que se pode olhar à sua volta e por detrás delas, por assim dizer. A ficção é extraordinariamente boa a dramatizar quão contraditórias são as pessoas. Como podemos querer duas coisas opostas ao mesmo tempo: pensemos em como Dostoiévski capta brilhantemente esta contradição; como amamos e odiamos ao mesmo tempo ou quão rapidamente a nossa disposição, como qualquer nuvem num dia de vento, passa lesta de uma forma para outra.”

Estamos muito longe daquele efeito de transmissão quase fanática das descobertas que se fazem num enlevo que raia a incredulidade, e mais próximos da regularidade de um tom de senectude, num livro que é um híbrido entre o registo autobiográfico e o do ensaio crítico, com Wood a entregar-nos páginas leves e elusivas, onde o efeito que se destaca é uma indulgente compreensão humana, e em que a ficção é um modo de ditar essas lições perduráveis, chegar o mais perto possível da textura da própria vida. “A ficção move-se na sombra da dúvida, sabe que é uma mentira verdadeira, sabe que a qualquer momento pode não conseguir defender-se.” Aqui não chegamos nem perto das melhores páginas de um livro como “A Herança Perdida” (ed. Quetzal, 2012), que reúne as recensões e ensaios que Wood publicou na primeira década da sua carreira. Não é que as suas teses se tenham alterado substancialmente, simplesmente o que ali era uma actividade fervilhante, uma erudição estarrecedora aliada a instintos soberbos, aqui dá lugar a uma familiaridade com os grandes narradores que vem passada a limpo na forma de um consolo tranquilizador… “Num mundo assim, a tarefa do escritor é resgatar a aventura da sua lenta retirada: trazer de volta o significado, a cor e a vida às coisas mais ordinárias”… Em relação à maioria das ideias que aqui são defendidas, nem chegamos a sentir que a sua temperatura seja o suficiente para aquecer minimamente o nosso sangue. Está tudo em ordem, como uma sucessão de proverbiais anedotas e relatos, deixando atrás de si o rastro dos trabalhos e dos dias, já sem o bulício efervescente e animador dos elementos mais polémicos ou das complicações e relevos dolorosos da vida quotidiano para cuja leitura as lentes da eternidade não têm graduação. Temos, assim, a impressão algo desoladora, confirmada recentemente por uma entrevista bastante indiferente dada à revista Electra, de ver um dos mais enérgicos e empenhados críticos dos nossos dias a ceder a esse efeito de consagração, dando algumas palestras de conhecedor e retirando-se para o clube, onde adormece no meio de um consenso nebuloso. Não é também de espantar que este seja o momento em que, já sem aquela carga de ameaça e imprevisibilidade, a sua escrita esteja madura para ser colhida e entreter o gosto de um “público” tão alargado quanto complacente. Nos seus melhores momentos, a única coisa que este livro tem para oferecermos são alguns relatos em segunda-mão ou citações que podem ser transplantadas para territórios onde ainda surde o efeito de algum combate. A certa altura cita Thomas De Quincey quando este se confrontava com um tão elusivo pormenor no segundo acto de Macbeth, e as suas dificuldades em perceber exactamente o alcance desse detalhe. Às tantas, este dá-se conta de que o problema era precisamente esse, o estar a tentar usar a sua “compreensão”, algo que, muitas vezes, em vez de obviar seja o que for, apenas impede a análise adequada. “A mera compreensão, ainda que útil e indispensável, é a faculdade mais mesquinha da mente humana e a menos digna de confiança: e, no entanto, a grande maioria das pessoas não confia noutra coisa”, escreve De Quincey. Ora, é precisamente por aqui que este livro se perde, pelo compromisso com este efeito de “compreensão”, um desejo de se explicar, com Wood a empenhar-se de tal modo em ser claro que se torna uma espécie de beneditino da clareza. A sua prosa torna-se meramente hábil, competente, mas abre mão do legado de fascínio, dessa construção de um género parasitário no melhor sentido, naquele sentido sugerido por Kenneth Burke, quando vinca que “o principal ideal da crítica, tal como eu a concebo, é usar tudo o que há para usar”. Não de forma indiscriminada ou frívola, mas num exercício de ligar assaltos sucessivos, “indo de beleza em beleza, flutuando acima das fortes correntes do prosaico”. Ora, este é um livro sumamente prosaico, e que não tem nada daquela virtude assombrosa que Heródoto gabava aos Citas, reconhecendo que foram um povo tão difícil de derrotar porque não tinham cidades ou fortes: “eles transportam as suas casas consigo e atiram com arco montados em cavalos (…), moram nas suas carroças. Como podem eles não ser invencíveis e inacessíveis?” Após servir-nos este naco, Wood anota que “ter uma casa é tornar-se vulnerável”. “Não apenas aos ataques dos outros”, adianta ele, “mas aos nossos próprios massacres de alienação: as nossas campanhas feitas de partidas e chegadas arriscam tornar-se meras aventuras no vazio.” E aqui está a grande vulnerabilidade desta prosa mansamente nativa, a forma como, em lugar de acatar a vertigem do desamparo, ao envelhecer longe do sítio para onde o empurram as suas memórias de infância (em Durham, na Inglaterra), parece ter sentido a necessidade de fazer da sua relação com a literatura, e em especial da ficção, esse lugar consolador ao fim de 18 anos longe do seu país, reconstituindo a partir das suas leituras um conjunto de referências que lhe servem como cidade ou forte adoptado. Ao fim de todos esses anos a viver nos EUA, o crítico admite que não sente qualquer desejo de adoptar a nacionalidade deste país, e que continua a viver e trabalhar ali ao abrigo de um Green Card, reconhecendo que olha ao seu redor sem sentir “nenhum tipo de reconhecimento, nenhuma ligação real, nenhum passado (…) sinto apenas uma distância brusca de tudo”. E este é talvez o momento mais palpavelmente revelador e íntimo deste ensaio: “De súbito, sou tomado pelo pânico e penso: como cheguei até aqui? E depois até isso passa, e a vida de todos os dias fecha-se à volta do que parecera, por um momento, uma falta desesperada.” E no parágrafo seguinte cita Edward Said, que acha apropriado que os exilados sejam frequentemente romancistas, jogadores de xadrez e intelectuais… “O novo mundo do exilado, como é lógico, não é natural, e a sua irrealidade assemelha-se à ficção.” Este autor acrescenta ainda que Georg Lukács considerava o romance a forma maior daquilo a que chamou de “o desalojamento transcendental”. Fica-nos a sensação de que Wood se perdeu algures nessa estranha distância, sem se reconhecer exactamente como um exilado, pois não sofre os efeitos de uma separação absoluta das suas origens, mas ao mesmo tempo parece vagar nessa “estrutura de partidas e regressos que podem não ter fim”, e admite que a forma como se dá conta daquela distância é através de “um leve véu de alienação que tudo cobre”. Este mesmo véu é aquilo que se torna mais patente nesta prosa, e que acaba por dar a sensação de que o próprio entusiasmo com que começou por se lançar sobre a literatura acabou por se deixar abafar e submeter a este efeito de um incerto luto. Como se a certeza sobre a impossibilidade de regressar a casa, o obrigasse a fazer da carroça da ficção a sua casa. É desolador dar por um dos críticos mais apaixonantes que nos foi dado ler, ao ponto dos seus ensaios não só rivalizarem, mas, na sua concisão e nas suas ousadas interpretações, serem muitas vezes bem mais gratificantes do que tantos dos escritores analisados, a acabar os seus dias a tentar estabelecer um efeito de compromisso, resgatando uma frágil moral a partir da sua lenta retirada. Parece que em vez de escolher enraivecer-se com a perspectiva do fim, deixou que lhe fosse cortado o tendão das suas melhores forças, convertendo isso na sua nova convicção.

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