Um grande ator é um caçador de peculiaridades, dessas que em si mesmas definem um caráter. Para lá daquilo que a história ou o destino de cada um ordena, há essas derivas e flutuações às quais a personalidade se agarra, vincando, por vezes desnecessariamente, uma certa afetação, aquele elemento de vida excedentária que prova, afinal, uma secreta, muitas vezes calada, revolta. Cada ser combate a horas perdidas o vigor daquilo que compele a sua ação, e colhe-se às vezes em apontamentos ínfimos, gestos que à maioria passariam despercebidos, mas que são a única coisa que nos permite observar alguém quando por momentos tira a máscara e coça o rosto. Na vida de todos os dias, não gastamos muito tempo a olhar para as coisas nem para o mundo natural, nem para as pessoas, como notava um influente crítico literário. Essa acaba por ser a tarefa dos artistas: reconhecer que «somos a soma dos nossos pormenores». Maggie Smith, sendo bastante tímida, tinha um ferocíssimo olhar, capaz de captar esses pormenores que denunciam essa comichão íntima que deslinda a personalidade de cada um de nós. Uma constante nos tantos testemunhos que a lembraram e honraram nos dias que se seguiram à notícia da morte da atriz britânica, aos 89 anos, foi esse reconhecimento da perspicácia e mordacidade que lhe eram próprias, ao mesmo tempo que depois se permitia ser gentil e delicada nos momentos mais inesperados, e tudo isso lhe permitiu introduzir esses elementos de expansão íntima e de fantasia algo trocista nas tantas personagens marcantes a que deu vida. Hugh Bonneville, que contracenou com ela em Downton Abbey, fazendo de seu filho, lembrou que «qualquer pessoa que alguma vez tenha partilhado uma cena com a Maggie atestará o quão penetrante era o seu olhar, a sua astúcia e acutilância, bem como o seu formidável talento. Ela foi uma verdadeira lenda da sua geração e, felizmente, continuará viva em tantos papéis magníficos no ecrã. As minhas condolências aos seus filhos e à sua família em geral».
Dame Maggie Smith afinal tinha menos anos do que lhe dávamos. Na verdade, parecia ter 200 ou mais. Talvez porque nos habituámos a vê-la nesses intrigantes papéis de uma senhora de idade avançada, mais ou menos retrógrada, mas sempre dando provas de uma espirituosidade invulgar, e tantas vezes acirrando algum contraste por surgir encalhada em épocas idas. «Estou sempre de espartilho, peruca e com aquelas botas abotoadas», disse ela numa entrevista para a televisão em 1993. E acrescentou: «Não me lembro quando foi a última vez que apareci num vestido moderno».
Certa vez, um crítico do The Guardian vincou que aquilo que «Smith capta brilhantemente é a forma como, na velhice, a imprecisão da memória coexiste com momentos de clareza fulminante». Apesar desta tendência para se ver encurralada num certo tipo de papéis, a verdade é que Maggie Smith acabou por alcançar diferentes níveis de reconhecimento e sucesso ao longo da sua vida, ao ponto de ficar meio enfadada naquela altura em que uma senhora de alguma idade pode simplesmente passear à medida que o perfume da sua lenda assenta, enquanto ela era cada vez mais solicitada e não podia sair à rua sem, de imediato, ter alguém a querer alguma coisa dela. Contava já com um palmarés notável, com dois Óscares, dois Globos de Ouro, meia dúzia de Baftas, um Emmy e um Tony, mas até à viragem do século ainda lhe era possível ir a quase todo o lado sem ser reconhecida. Depois veio Downton Abbey.
Margaret Natalie Smith nasceu a 28 de dezembro de 1934, em Ilford, na altura uma povoação no condado de Essex, mas que hoje integra a zona de Redbridge, em Londres. Quando tinha 5 anos, a família mudou-se para Oxford, onde o pai leccionava. Depois de estudar na Oxford High School para raparigas, juntou-se à recém-formada Oxford Playhouse e estreou-se como atriz em 1952 em Twelfth Night. Quatro anos depois subiria pela primeira vez aos palcos da Broadway, e em breve captaria a atenção de Laurence Olivier, que a chama para integrar o National Theatre quando este nascia, em 1962. Com a cara pintada de negro, Olivier encarnou Otelo, e ela Desdémona na produção teatral que antecedeu a versão cinematográfica, de 1965, em que os dois repetiriam os mesmos papéis. O filme dirigido por Olivier valeu a ambos nomeações para os Óscares. Foi também no National Theater que Smith interpretou Hedda Gabler na primeira produção de Ingmar Bergman fora da Escadinávia. O primeiro Óscar chegou depois de ter protagonizado The Prime of Miss Jean Brodie (1969, Ronald Neame), sobre uma professora de uma escola de raparigas nos anos 30 que ousava ter opiniões provocadoras e uma vida amorosa. A crítica no The New York Times descreveu o seu desempenho como «uma amálgama espantosa de estados de espírito que se contrapunham, mudanças nos níveis de voz e emoções declaradas de forma oblíqua, todas elas de uma precisão espantosa». Ainda arrebatou um segundo Óscar, de melhor atriz secundária, por California Suite (1978, Herbert Ross), baseado na comédia de palco de Neil Simon. A sua personagem, uma atriz britânica que vai aos Óscares com o seu marido bissexual (Michael Caine), tem uma noite dececionante na cerimónia e uma noite de melancólica ternura na cama.
Era já uma atriz com uma carreira consolidada nos palcos e no cinema, sendo admirada pelo seu brilhante timing cómico e por aqueles elementos contraditórios e revelações subtis e comoventes que davam uma palpável intimidade às suas personagens, mas estava longe de supor que estava guardado para a terceira idade o momento em que se tornaria uma celebridade em todo o mundo. Em 1990, foi nomeada dama do Império Britânico, e foi só neste século que alcançou uma audiência global ao interpretar Minerva McGonagall nos filmes Harry Potter, e depois Violet Crawley, condessa viúva de Grantham, na série televisiva Downton Abbey. O criador da série, Julian Fellowes, reagiu à notícia da sua morte de forma bastante eloquente: «Era uma alegria enorme escrever para ela, pela subtileza, pelas camadas e pela inteligência que trazia ao papel, sendo nuns momentos divertida e noutros capaz de nos partir o coração. Trabalhar com ela foi o maior privilégio da minha carreira e nunca a vou esquecer».
Depois da estreia da série em 2010, no Reino Unido, e um ano depois nos EUA, esta prolongou-se por seis temporadas, e Smith foi apanhada desprevenida por um nível de sucesso que a arrancou a qualquer possibilidade de passar despercebida em público quando andava já pelos 70. «É ridículo. Eu levava uma vida perfeitamente normal até Downton Abbey», disse ela ao jornalista de artes Mark Lawson no B.F.I. e no Radio Times Television Festival em 2017. E acrescentou: «Ninguém sabia quem raio eu era». Nunca ambicionara a fama, e ela mesma reconhecia que atrás do seu ferino humor havia uma pessoa dolorosamente tímida. Numa entrevista ao The Times em 1979, confessou: «Sinto-me sempre muito aliviada por ser outra pessoa, porque não tenho a certeza de quem sou ou qual é a minha personalidade».