Vanessa Marina. A vida numa roda-viva

Vanessa Marina. A vida numa roda-viva


A b-girl Vanessa Marina colocou Portugal no mapa do mundo do breaking ao participar nos Jogos Olímpicos de Paris de 2024. Foi o momento alto de uma carreira que começou no ballet clássico


Vanessa é uma atleta que se move pela adrenalina e paixão pela dança e que vive, literalmente, muito bem de pernas para o ar… Nesta entrevista, a pioneira do breaking nacional contou-nos as suas histórias de vida e o esforço necessário para ser uma digna representante do género feminino num desporto que, durante muito tempo, foi masculino. É uma b-girl orgulhosa do seu percurso.

A dança e a música sempre fizeram parte da vida de Vanessa. Por influência dos pais praticou desporto e fez ballet clássico e contemporâneo antes de começar a interessar-se pelo hip hop e street dance. Começou a dançar em Portugal, mas foi em Inglaterra que aperfeiçoou a sua técnica num cenário completamente diferente e mais competitivo. Foi aí que adaptou seus treinos e incorporou movimentos de outras modalidades, como o basquetebol e o boxe, ao mesmo tempo que trabalhava num restaurante. Esteve entre as 16 melhores b-girls do mundo, e diz com alguma tristeza que «comecei a ficar conhecida lá fora, antes de ser conhecida em Portugal». Disse uma vez que no breaking passa muito tempo de cabeça para baixo, mas as ideias estão lá todas e bem arrumadas. 

Como é que o breaking entrou na tua vida? 

Na minha adolescência via muitos videoclips da MTV com música urbana, comecei a identificar-me mais com o estilo musical do hip hop e comecei a tentar imitar as coreografias que via nos clips. Via também alguns shows de dança e tentava reproduzir esses movimentos. Mais tarde, abriu uma escola de hip hop em Leiria, na zona onde morava, e disse à minha mãe que queria ir para essa escola. Comecei por fazer danças sociais e depois passei para o hip hop.

A passagem do ballet para uma dança mais radical foi fácil?

Sim. Sempre fui muito extrovertida e o ballet era muito parado para mim. Tive a sorte de os meus professores terem alguma ligação à dança hip hop free style, ou seja, de batalhas, e comecei a acompanhá-los.

O que significa para ti o breaking? 

É um estilo de vida. Foi a partir do breaking que consegui ser uma mulher independente e fazer aquilo de que gosto quando mudei para Inglaterra. Tem sido uma experiência incrível viajar pelo mundo e conhecer pessoas novas. Além disso, é uma cultura que recebe muito bem. Fui para países onde não conhecia ninguém e tive sempre alguém ligado ao breaking a receber-me em sua casa. 

Até que ponto a passagem por Inglaterra foi importante? 

Quando vim estudar para a Escola Superior de Dança de Lisboa não havia hip hop na altura, e nós íamos para a Gare do Oriente treinar. Já havia um grupo de breakers e combinávamos, através do Facebook, os encontros e quem levava a música, mas nunca foi nada a sério. Quando fui para Londres tentei entrar numa companhia de dança contemporânea. Não foi fácil e decidi dedicar-me durante um ano ao breaking, nessa altura já havia muita gente a fazer disso um estilo de vida.

A aventura em Londres correu bem? 

Sim, comecei a dar aulas de hip hop em escolas secundárias para jovens dos 16 aos 18 anos. Em Inglaterra, há um programa para integrar o breaking no ensino. A Royal Academy of Dance tinha o programa de formação “Stepping to Dance” que levava a dança urbana às escolas secundárias. Isso é impensável de acontecer em Portugal.

Depois dessa experiência, como vês o breaking no nosso país? 

Os bailarinos já têm um nível avançado e podem competir no estrangeiro. Há também muita gente a organizar eventos em Portugal, mas precisam de ser apoiados.

O que é necessário para poder praticar esta modalidade? 

Portugal tem muitas escolas de dança e a maior parte delas tem hip hop, mas é fundamental ter a ajuda dos pais para entrar. Devem começar desde criança, isto é, a partir dos três ou quatro anos de idade, nessa altura têm mais facilidade em aprender.

Não são ainda muito jovens? 

É a melhor idade para começar, pois aprendem mais facilmente do que os mais velhos. As crianças quando ouvem música começam logo a dançar, mandam-se para o chão e fazem tudo de uma forma muito genuína. Muitas vezes os pais têm que dizer: ‘controla-te um bocadinho’.

És a pioneira e referência para as b-girls portuguesas. Como te sentes nesse papel? 

Não quero que as meninas olhem para mim como sendo alguém inacessível porque atingi um nível elevado. Aquilo que eu consegui também elas podem conseguir com disciplina e força de vontade, é sempre mais fácil seguir a estrada da desistência. Comecei tarde e não foi fácil aprender acrobacias, mas não desisti. Quando a gente quer muito uma coisa, é possível. Espero que as jovens, que as meninas, principalmente, consigam ver que é possível concretizar os seus sonhos e que se juntem a mim e consigam ter um lugar dentro desta cultura.

O breaking tem género? 

Foi iniciado por rapazes e foi sempre um meio muito masculino. As meninas tiveram uma evolução tão grande que houve uma aberta na plataforma para entrarmos e, nos Jogos Olímpicos de Paris de 2024, já houve paridade de género com 16 b-boys e 16 b-girls. 

Os movimentos que fazes nas batalhas são todos estudados ou é inspiração do momento? Uma parte da minha performance é coreográfica, a outra é improvisada, até porque não consigo chegar ao palco e executar um movimento que nunca pratiquei, naturalmente vai correr mal e vou cair. Há uma parte que treino para conseguir fazer sequências, mas a maneira como eu integro isso na música tem muito de improviso porque não sei que música vai calhar. Se tiver um slide na minha performance e a música não der para isso corto esse movimento e procuro outro que seja mais adequado ao género de música, tem de ser uma escolha muito rápida.

Esse “dicionário” de movimentos tem muitas páginas? 

Sim, claro. São muitos anos a treinar vários movimentos e sequências. Para estar confortável com a improvisação e fazer um movimento quando quiser tem de haver muita experiência. Depois, há vários fatores que podem influenciar as performances, nomeadamente o nervosismo, a adrenalina, as luzes e o piso, tenho de estar preparada para tudo.

O piso onde competem não é sempre igual? 

Não, depende de quem organiza a competição, e nem todos são verdadeiramente bons. Nesses casos, é importante ter um controlo muito grande para que um fator externo não se torne um obstáculo.

Durante as batalhas, há trocas de olhares, sorrisos e gestos entre bailarinos(as). O que é aquilo, um desafio? uma provocação? 

É um bocadinho tudo, é uma conversa que se faz a partir de movimentos. Eu tenho de mostrar ao júri que sou melhor do que a outra pessoa, então há essa rivalidade. Há muito o gesto para mostrar que ela não está tão bem quanto eu, que não está a ouvir a música e que falhou ou repetiu um movimento, ou seja, tudo isso para tentar mostrar ao júri que está a falhar mais do que eu. É, claramente, uma provocação e isso pode fazer com que a outra pessoa se sinta mais nervosa e falhe. É jogar com todas as cartas. 

E deu um exemplo… 

Numa das batalhas em Paris defrontei uma amiga que é 14 anos mais nova do que eu, vi-a crescer. Apesar de sermos amigas, tenho de mostrar que quero ganhar e ter uma linguagem autoritária, não posso ser submissa. 

Alguma vez te trocaram as voltas numa batalha?

Já me aconteceu ficar muito irritada e nervosa. Mas agora, com mais experiência, controlo melhor esses momentos para não cair no “papinho” das outras.

O que é que é mais importante no breaking, a parte física ou mental?

Em termos de competição, as duas são importantes, talvez um pouco mais a parte mental. Tenho de ter a máxima confiança em mim e no trabalho que faço e saber lidar com fatores externos adversos. A componente física é, naturalmente, fundamental para aguentar as batalhas, pois é preciso muita agilidade e resistência. Em minha opinião, a parte competitiva e mental estão muito ligadas. Nos eventos culturais queremos ganhar, mas queremos, sobretudo, servir de inspiração para os outros. A nossa performance fica mais livre e, por isso, não há tanta preocupação com a componente mental.

Tens um plano de preparação física?

Sim, faço ginásio e treino a parte de dança e de movimentos duas a três vezes por semana. Antes não cuidava muito do meu corpo, agora tenho mais cuidado porque com o passar dos anos podemos ter problemas com as articulações, joelhos, pulsos, cotovelos, ombros e isso tudo pode ser prevenido.

És profissional? 

Diria que sim.

E consegue-se viver ou sobreviver em Portugal? 

Consegue-se sobreviver. É muito difícil fazer isto a tempo inteiro. Tenho sido convidada para ir realizar workshops no estrangeiro e ser júri de competições internacionais, trabalho mais lá fora do que em Portugal.

Qual foi a sensação de estar entre as melhores nos Jogos Olímpicos de Paris de 2024? 

Eu tenho uma expressão que muita gente usa no hip hop que é fingir até conseguir, ou seja, tenho de mostrar que me sinto confiante e estou bem. Antes da competição começar, estamos todos numa bolha e quando saí para a primeira batalha estava muito nervosa, o palco é intimidante. Temos de nos abstrair um bocadinho disso e pensar que se estamos lá é porque somos os melhores e que vamos tentar fazer o melhor que conseguimos. Quando tudo acabou e olhei para as redes sociais é que percebi o impacto foi muito maior do que eu estava à espera, isso é muito bom.

Que recordações trazes dos Jogos Olímpicos?

Quando cheguei à Aldeia Olímpica fiquei impressionada pela dimensão. Outra sensação única foi conviver muito de perto com os atletas, muitos deles campeões olímpicos. Era habitual encontrá-los no refeitório. Toda a gente tem o mesmo mindset e percebi que era ali que eu devia estar. 

Quais são os teus objetivos para o futuro?

Está na altura de dar algo à comunidade. Gostaria de trabalhar com as mulheres e contribuir para a evolução do breaking feminino. Tenho algumas marcas que me apoiam, mas não é o suficiente para desenvolver esse projeto. Se estivesse noutro país acho que já teria sido abordada por mais empresas e associações. Na parte competitiva, vou participar na qualificação para a final mundial, que se realiza no Brasil, em dezembro. Em 2025, ainda não sei o que vou fazer. Tem sido tudo muito intenso e rápido e preciso de tempo para criar.