Turismo. “Estão a tirar espaço e a vida a uns para dar a outros”

Turismo. “Estão a tirar espaço e a vida a uns para dar a outros”


O bairrismo está a perder-se, os tuk-tuks entopem o trânsito, as pessoas são colocadas na rua, os preços aumentam e os moradores desesperam. O que está o turismo de massas a fazer às zonas históricas da capital?


Com muitas outras metrópoles, a cidade de Lisboa está em constante metamorfose. Os hábitos alteram-se, as ruas transformam-se, as pessoas envelhecem, crescem, mudam-se. Além disso, o ser humano tem a capacidade incrível de nunca ver um lugar da mesma maneira.

Mas há uma coisa que parece imune à mudança: a capital portuguesa é cada vez mais a escolhida como destino de férias. E, graças ao seu charme, cultura e preços atrativos, muitos turistas acabam por ficar. Visto de fora, este panorama pode parecer romântico, mas para quem cá vive – principalmente nos bairros históricos -, a sobrecarga turista está a alterar os costumes e a “roubar” a identidade dos lugares. A OCDE refere que, no último ano, o turismo internacional cresceu mais em Portugal do que em Espanha, França ou Itália. Com mais de meio milhão de habitantes, Lisboa recebe todos os dias entre 30 mil e 40 mil turistas.

Menos poder de compra Já passou a hora de almoço. Depois de uma manhã cinzenta, o céu está a abrir, e o sol vai aparecendo timidamente. Na rua da Mouraria, ao contrário do que seria de esperar, é difícil encontrar um português. Enfiamo-nos pelas estreitas ruas desta zona histórica, mas se antes encontrávamos os locais sentados a conviver à entrada das habitações, e as crianças a brincarem na rua, agora, o silêncio parece-nos ensurdecedor. Na Rua do João do Outeiro, encontramos o restaurante Zé da Mouraria. No interior, as paredes estão forradas com inúmeras fotos de clientes e de coisas alusivas à vida do bairro, como o fado. Apesar de serem quase quatro da tarde, a segunda sala do restaurante está cheia. Ainda assim, o turista já não é o que era, queixa-se Ricardo Caetano, que aqui trabalha há sete anos. “Eles vêm, são cada vez mais, mas vêm cada vez mais tesos!”, garante o funcionário. “Principalmente este ano”, acrescenta. “Nós também o estamos a fazer quando vamos para fora. Agora vêm, alugam um apartamento, fazem compras para que fique tudo mais em conta e já não gastam o que gastavam nos restaurantes”, frisa. Antes da pandemia da covid-19, o turista tinha “muito mais poder de compra”, diz-nos. “Se antes consumiam uma dose para dois, agora dividem-na por três”. Além disso, antigamente vendiam-se muitos mais vinhos. “Agora ficam-se pelo vinho da casa e água”, lamenta. “O turismo é bom para qualquer cidade e levanta, muitas vezes, os países da crise. Mas não é por isso que se têm de apagar tradições e comércios que sobreviviam há anos”, alerta.

A perda do bairrismo Subimos até à Rua Marquês Ponte de Lima. O senhor Fernando encontra-se no meio da rua, a falar com os trabalhadores das pequenas mercearias. Parece-nos que vive aqui. E não nos enganámos. “Há 50 anos que cá vivo e as coisas têm mudado muito”, afirma. “A forma de fazer turismo já não é o que era. Há 20 anos para cá que as coisas estão muito más”, desabafa. “Há cada vez mais alojamentos locais e o mais triste é que, para fazer isso, muita gente é metida na rua. Estamos a falar de pessoas que, como eu, vivem aqui há mais de cinco décadas”, denuncia. “Claro que os moradores ficam revoltados. As pessoas nasceram aqui, fizeram da Mouraria um espaço acolhedor, familiar… Depois são postas na rua. Literalmente na rua, porque muitas já não têm família. Acha bem?”, interroga. “Isso dói muito. Fico muito sentido. São pessoas que nos são queridas e que ficam sem teto e sem chão”, sublinha. Além disso, o espírito de vizinhança e de segurança também se tem perdido. “Antes deixávamos as portas abertas, convivíamos nas ruas, o espírito de comunidade era grande. Com todas estas mudanças, estamos a matar as tradições. A tirar espaço a uns para dar a outros, quando não são eles que fazem o país. Aliás, tudo isto faz com que, muitas vezes, as pessoas que se davam há anos, deixem de se falar, veja bem”, acrescenta. “Temos aqueles que vêm visitar, muitos acabam por ficar, mas depois parece que a criminalidade aumenta. Com muitos turistas aqui, há quem se aproveite disso, acabando por penalizar os moradores. Há mais roubos”, remata.

No caminho até à Rua de São Cristóvão, só se veem turistas de mochila às costas, com mapas na mão e com os “típicos” chapéus brancos na cabeça que os denunciam. Há algumas portas de habitações entreabertas, com lençóis improvisados a protegerem a vista para o interior das casas. Dalgumas delas escapam-se fados tradicionais que nos dão uma música de fundo ou banda sonora, quase uma miragem do cenário que se vivia há uns anos. Há restaurantes e bares dos dois lados da estreita estrada onde só vemos passar ubers e tuk-tuks. Na porta da Tasquinha do Canto do Fado, no número 35, João Silveira fuma um cigarro. “Fui criado em Alfama. Fui para fora – vivi 20 anos na Austrália e 10 anos em Londres -, e voltei há sete anos para fazer alguns investimentos na Rua de São Cristóvão”, conta. “Neste momento, trabalho 99% só com turismo”, revela. “Nós temos uma cultura rica em tudo e o que quero é passar isso aos que cá vêm”, explica. Felizmente, o negócio corre-lhe muito bem. No entanto, é sempre difícil ver as alterações que aconteceram nos bairros. “Correram com os nossos velhotes, há becos em Alfama onde só se ouve falar inglês e francês… Já estamos sobrelotados de imigração, com os turistas as coisas pioram. É difícil que haja espaço para toda a gente sem prejudicar os que cá moram”, defende. “Antes havia bairrismo… Eu ainda tenho algumas vizinhas com 80 e tal anos… Deixam-me cair as cuecas do estendal cá para baixo e eu brinco: ‘Oh vizinha! Deixou cair o saco do pão”, descreve em tom de brincadeira. “Mas isso está-se a perder”, lamenta.

O problema dos tuk-tuks “Há outra coisa que nos espanta. Se antes havia muitos restaurantes portugueses, agora há cada vez mais espaços estrangeiros. Os turistas vêm, apaixonam-se pela cidade e abrem os seus próprios espaços. Sobretudo os franceses”, conta João. “Um apartamento em Paris custa um milhão e meio. Eles vendem aquilo, vêm para cá e fazem uma grande festa. Compram um apartamento e estabelecem-se aqui”.

Segundo o proprietário da Tasquinha do Canto do Fado, não há controlo da quantidade de tuk-tuks. “Está fora de controlo! Uma selva… Ninguém respeita ninguém. Por mim, fechavam esta rua ao trânsito, por exemplo. Temos esplanadas, crianças a brincar, as pessoas gostam de estar por aqui tranquilas”, denuncia. “Se há uns anos achava que o país tinha pernas para andar, agora vejo-o cheio de ligaduras”, acrescenta.

Continuamos a subir a cidade das sete colinas. Pelo caminho, veem-se grafites que tentam “interditar” a passagem de tuk-tuks. Chegamos ao Largo das Portas do Sol e, como seria de esperar, não se ouve falar português. No miradouro com o mesmo nome, turistas tiram fotos à vista da cidade enquanto desfrutam do concerto dado por um artista de rua. As esplanadas estão cheias. Há quem beba a famosa imperial, outros optam por jarros de sangria tinta. Os preços dos estabelecimentos chocam qualquer lisboeta. Entramos numa papelaria/tabacaria para comprar tabaco e água. No balcão lemos num papel em inglês: “Para compra de tabaco em multibanco, no mínimo 10 euros”. Interrogamos o funcionário sobre o aviso. Ao perceber que somos portugueses responde: “Ah! Se são portugueses, deixem lá. O que querem?”. Diz que está farto das taxas e dos próprios turistas. No entanto, não quer alongar-se.

Na Graça, o cenário é o mesmo. Multiplicam-se as lojas de souvenirs com proprietários imigrantes. Os tuk-tuks entopem o trânsito. Os elétricos que passam parecem transportar sardinhas em lata.

Um “parque de diversões” A segunda parte desta viagem leva-nos até Sintra. Apanhamos o comboio no Rossio. É difícil encontrar um lugar para nos sentarmos. Ao chegarmos à estação, adornada com azulejos, somos abordados por um guia turístico. “Ah! São portugueses!”, exclama Mário Barros surpreendido. “Sou de Sintra desde 1981. Cresci cá e vi isto tudo mudar. Profissionalmente estou envolvido no turismo desde 2017. A fase mais difícil foi a da pandemia da covid-19, quando ficámos completamente parados. Hoje em dia, a dificuldade é outra”, explica. “Sou um guia que prima pelos conteúdos nos meus tours… Quero passar Sintra aos visitantes de uma forma não evidente. Como temos cada vez mais turistas são também cada vez mais aqueles que – mesmo sem carta de condução -, vendem viagens. Sabem o caminho, mas não ensinam nada. É preciso que a Câmara tome medidas”, desabafa. O trânsito, diz Mário, afeta muito os moradores. “Se for ver o número de habitantes do centro histórico de há 10 anos para cá, vai ficar chocada. Há quatro anos eram mais de 300 pessoas. Agora são cerca de 80 pessoas. Tudo o resto mudou-se ou morreu. De repente ficaram sem farmácia, sem forma de sair rapidamente dos locais – porque os acessos estão todos entupidos -, sem hospital”, enumera. “Claro que vejo Sintra renovada, toda bonitinha, mas e as pessoas que cá vivem?”, interroga. “É necessário mais regras, assinalar bem nas aplicações que não se pode ir com carro próprio até à serra de Sintra, à estrada da Pena. Em caso de incêndio as pessoas são um perigo, queimam as embraiagens… Está lá assinalado que o trânsito é reservado a viaturas autorizadas, mas é um abuso diário. E as autoridades têm uma política de não multar os turistas, mas multam-nos a nós”, denuncia. Também ele sente que os turistas chegam com cada vez menos dinheiro. “Eu cobro 10 euros por pessoa, daqui até à Pena. É um tour, conto histórias e faço a viagem. As pessoas acham isso caro”.

Não aceitamos a sua boleia. Queremos fazer o caminho até à zona histórica a pé. Está calor, mas nem isso move os turistas. Ao subir a grande escadaria que nos vai levar até perto do Palácio Nacional de Sintra, só existe silêncio. As casas parecem estar ao abandono, começam a ser engolidas pela vegetação. Nem um único sinal de moradores ou portugueses. Chegámos ao centro. Dá-nos a impressão de estarmos numa espécie de Algarve, misturado com Comporta. Sintra já não é realmente a mesma. Lojas por todo o lado, filas para entrar nos estabelecimentos, grupos de mais de 20 pessoas que seguem os seus guias, imensos autocarros, tuk-tuks, charretes puxadas por cavalos, restaurantes com esplanadas cheias e pouco espaço para andar nas ruas. Entramos no Bar do Binho, que nos leva numa viagem ao passado. “Somos uma casa de vinhos desde 1927 e o que costumamos dizer é que a massificação do turismo está-nos a prejudicar do ponto de vista cultural”, garante Carlos Filipe. “Acho que precisamos de menos gente de cada vez. Vêm grupos muito grandes e a sua atenção é desviada para os restaurantes e os palácios. Além disso, é uma pena vermos que imensa gente que morava aqui acabou por se ir embora. Estamos a perder muitas características daquilo que é nosso e a servir aquilo que as pessoas que vêm de fora querem”, frisa. Além disso nota que as pessoas já não se interessam tanto pelos produtos típicos como a cortiça, vinho e patês. “A Câmara devia limitar o acesso de viaturas e expandir o circuito daquilo que a UNESCO limitou. Temos aqui a freguesia de São Pedro, que é pouco visitada e tem algum espólio. Se o turismo fosse direcionado também para essas áreas mais periféricas, permitia que toda a gente tivesse um bocadinho de espaço e que deixássemos de nos sentir num parque de diversões”, afirma.

Necessidade de mudança Desde julho que a associação QSintra tem em marcha uma iniciativa que inclui faixas nas janelas e varandas e cartazes nas montras de lojas, restaurantes e cafés, exigindo à Câmara Municipal medidas contra o “turismo de massas e caos no trânsito”. “Património Mundial, sim! Parque de diversões, não!”; “Trânsito caótico a todos prejudica, a residentes e visitantes”; “Queremos Sintra viva e habitada! Não ao turismo de massas” e “Sintra ≠ Disneyland”, são algumas das frases espalhadas pela cidade. No final de 2017, este grupo de sintrenses decidiu “agir civicamente de forma organizada”, a fim de “combater as ameaças a este Património da Humanidade e defender as características que fazem de Sintra um sítio único”. “Desde o nosso lançamento como movimento cívico e depois como associação, que alertamos para os impactos do turismo de massas, ou seja, há sete anos o problema já existia”, conta a QSintra, acrescentando que a situação se tem agravado, “obviamente com o interregno do período da pandemia”. “Os constrangimentos de trânsito têm-se agudizado, sobretudo nas épocas de maior afluxo turístico, embora cada vez mais se sintam ao longo de todo o ano. Em paralelo, tem-se acelerado o processo de despovoamento e de descaracterização”, alerta. De acordo com a associação, os sítios mais procurados são o Palácio da Pena e a Quinta da Regaleira. “São na grande maioria visitas turísticas relâmpago (descontando o tempo que os turistas esperam nas longas filas de trânsito e de acesso aos monumentos…)”, explica, denunciando que “a Câmara não fornece informação sobre a verdadeira dimensão da carga turística que Sintra recebe”. Os números que divulga respeitam apenas aos turistas atendidos nos postos de turismo: 340,6 mil, em 2022, e 522 mil, em 2023.

A Parques de Sintra Monte da Lua (PSML) e a Cultursintra, que gere a Quinta da Regaleira, divulgam nos seus relatórios que, em 2022, receberam, respetivamente, 2,8 milhões e 996,6 mil visitantes, números que subiram em 2023 para mais de 3 milhões na PSML e 1,3 milhões na Regaleira. “Mas qual é a carga total de turistas que entram em Sintra? E quais as quotas máximas de visitantes que as boas práticas aconselhariam nos monumentos e parques?”, interroga a QSintra. “Por enquanto, a redução de 50% na capacidade de visita da Pena não produz resultados visíveis no tráfego viário, até porque o transporte público é insuficiente e tem um custo que dissuade a sua utilização; e se no ano passado a Pena chegou a ter 12 mil visitantes num só dia, mesmo 6 mil continua a ser uma carga excessiva. Na Quinta da Regaleira foi recentemente também reduzida para metade a carga máxima diária, mas desconhecemos a sua dimensão e o que se observa é a continuidade de grandes filas ao longo das vias de acesso”, detalha.

Trata-se, pois, de uma carga turística “excessiva” e “predadora”, com fluxos que congestionam monumentos, acessos e espaço público. “O trânsito é caótico, várias vias ficam bloqueadas de manhã até meio da tarde e percursos que se fazem em cinco minutos podem demorar uma hora a fazer”, acrescenta a associação. “Preocupa a todos pensar o que poderá acontecer em caso de emergência e se os meios de socorro conseguirão chegar a tempo”, sublinha. “Por outro lado, verifica-se um progressivo despovoamento dos bairros do centro histórico (Vila, São Pedro e Estefânia), não só porque, os que podem, saem de Sintra para sítios mais calmos, como por haver cada vez mais casas transformadas em alojamentos turísticos e cada vez menos para residência permanente”, continua. “Cada vez há menos comércio de proximidade, as lojas são maioritariamente dedicadas aos turistas pouco exigentes, com uma oferta pouco diversificada e de fraca qualidade. E esta ‘turistificação’ leva inevitavelmente à descaracterização do sítio”, lamenta a QSintra.