Viriato Soromenho Marques. “Vivemos a fase mais delicada de toda a história humana”

Viriato Soromenho Marques. “Vivemos a fase mais delicada de toda a história humana”


Da guerra na Ucrânia ao “massacre” em Gaza, Soromenho Marques reflete sobre as causas dos conflitos atuais e antevê onde nos podem levar.


O que significa para si o regresso da guerra em tantas geografias do sistema internacional?

Em primeiro lugar, é incontestável afirmar que estamos a viver a fase mais delicada não apenas da história após 1945, mas de toda a história humana em absoluto. Neste momento, em dois dos cenários principais de conflito (Europa e Médio-Oriente), podemos encontrar envolvidas cinco potências nucleares (Rússia, EUA, França, Grã-Bretanha e Israel), sendo que duas delas (Rússia e EUA) teriam capacidade por si só, mesmo sem usar todo o seu arsenal nuclear, para inviabilizar a vida civilizada à superfície da Terra. Nunca houve no passado um milésimo da capacidade letal que hoje os arsenais de armas de destruição maciça acumularam. Sublinho, todavia, que não são as armas que iniciam as guerras, mas sim as ideias e as doutrinas desenvolvidas pelos estrategistas quanto ao seu uso. O facto de na Europa não ser de excluir, neste momento em que falamos, a possibilidade de derrapagem para uma escalada nuclear com a generalização do conflito, revela que quem, no nosso lado ocidental conduz a gestão política e militar, ou nunca as compreendeu, ou esqueceu as lições da Guerra Fria.

Pode esclarecer melhor o que acabou de dizer?

Há um famoso discurso de John F. Kennedy, de junho de 1963, onde ele afirma que as potências nucleares devem evitar colocar um Estado adversário, possuidor de um igual potencial de destruição, na situação de ter de escolher entre um recuo humilhante ou a escalada para o patamar nuclear. A razão é simples: evitar a destruição mútua assegurada (MAD). Numa guerra nuclear total só há vencidos. No caso específico da guerra da Ucrânia, onde é clara a supremacia da Rússia (apesar do ataque ucraniano a Kursk, trocando a atenção da imprensa por um enfraquecimento no campo de batalha decisivo, o Donbass), a desesperada tentativa de inverter o declínio ucraniano, autorizando Kiev a usar mísseis de cruzeiro britânicos Storm Shadow (alcance de 550 km) ou os mísseis balísticos táticos norte-americanos ATACAMS (alcance de 300km) contra alvos dentro da Rússia, significa colocar milhões de pessoas no Ocidente em risco de vida. Esses mísseis, a serem usados, implicam o envolvimento direto de pessoal da OTAN, e em especial dos EUA, pois são eles que possuem os dados de satélite que permitirão aos mísseis não falhar o alvo. O seu lançamento e a definição de objetivos envolverão militares desses países, dada a complexidade dos protocolos e sistemas de informação necessários. Penso que a resposta russa procurará ser proporcional aos objetivos destruídos. A Rússia pode enveredar, também, por uma escalada horizontal, fornecendo dados dos seus satélites sobre bases americanas a países que nisso poderão ter interesse, como o Irão e a Coreia do Norte… O grau de incompetência dos governos e militares ocidentais – provado em décadas de hegemonia dos EUA, desperdiçada por sucessivos erros – não garante que não se comece de manhã com uma troca de mísseis com ogiva convencional e se chegue ao final da tarde com as principais cidades da Rússia, UE e EUA destruídas por SLBM (mísseis balísticos lançados de submarinos) com ogivas múltiplas de destruição maciça. É incrível como em Londres e Washington existe gente que ainda não percebeu esta sinistra gramática, tão simples como devastadora.

É visível que uma solução militar é complexa e arriscada, ainda que o armamento nuclear seja mais um veículo de dissuasão. John F. Kennedy tinha a máxima de “não negociamos por medo, mas não temos medo de negociar”. A Ucrânia e o Ocidente estão com medo de negociar ou simplesmente não querem negociar por medo?

Importa recordar que a Ucrânia, como entidade autónoma, é uma ficção, desde 2014, depois do golpe sangrento de Maidan, que derrubou o governo legítimo do Presidente Yanukovich, sob a coordenação de Victoria Nuland (a mesma que se celebrizou, antes do golpe, pela célebre observação sobre a UE: “Fu…k the EU”). A Ucrânia que se orgulhava das suas duas culturas eslavas irmãs (ucraniana e russa) desapareceu na guerra civil pela independência do Donbass. Kiev passou a ser, desde a interrupção do processo de paz de Istambul, em abril de 2022, uma criatura não só dos EUA, mas do conjunto da OTAN. O que continua a provocar a morte de centenas de militares e de dezenas de civis todos os dias é o medo da realidade pura e dura: o ocidente perdeu esta guerra, até agora só com armas convencionais. Negociar iria confirmar os resultados do campo de batalha, de facto, ainda que não de jure. A opção da OTAN é a de, caso não queira aceitar a derrota, lançar-se na refrega frontal contra a Rússia…O ocidente tem duas opções: aceitar a derrota convencional, ou correr o risco de escalar para uma eventual III guerra mundial. Acrescem ainda dois aspetos: não haverá qualquer negociação antes das eleições americanas, para impedir os eleitores americanos de perceberem o calote sangrento em que o Partido Democrata os meteu. Há uma russofobia desmesurada a toldar o pensamento estratégico dos decisores em Washington. Os burocratas envolvidos (o presidente Biden é hoje um inimputável) estão metidos na questão ucraniana há décadas (Anthony Blinken, Jack Sullivan, Nuland, Biden, que geriu como VP de Obama o golpe da praça Maidan e o que se lhe seguiu). Ao contrário da escassez do talento, o narcisismo é universal e particularmente nocivo para o mundo quando envolve gente com grande poder bélico.

Como foi possível chegarmos a esta situação, que é a de estarmos à beira de um abismo?

Há um filme de Frank Capra, Mr. Smith goes to Washington (1939), que capta o melhor da cultura política nos EUA em tempos de crise, que é a capacidade de recuperar as suas raízes fundadoras. Nesse filme, o herói (James Stewart), um político inexperiente do Montana, eleito para o Senado, enfrenta e combate com sucesso a venalidade no sistema político dos EUA. Na realidade atual essa situação seria completamente impossível. O filósofo John Rawls, em 1999, denunciava o Congresso dos EUA como o lugar onde as leis eram compradas e vendidas. Em 2018, o economista George R. Tyler demonstrou a “ilusão de democracia” que se vive nos EUA. O sistema político foi “raptado” por uma elite económica que controla o Congresso, com as recompensas que a riqueza oferece. Temos um governo eleito pelo povo ao serviço de uma fina camada de ricos, ou seja, uma democracia na aparência e uma plutocracia na essência. É claro que esta degradação não é exclusiva dos EUA. O problema é que os EUA foram a potência unipolar nos últimos quase 30 anos…

O papel dos interesses instalados (do armamento, à energia, passando pelo digital) reflete-se também na política externa. Nestas três décadas, basta seguir o melhor dos estudos académicos norte-americanos, o unipolarismo dos EUA foi também um unilateralismo. Os EUA têm usado a ONU quando lhes convém. No caso da Rússia, desde o tempo de Gorbachev, os EUA nunca procuraram estabelecer uma parceria de respeito mútuo com Moscovo. Até 2020, contrariando promessas anteriores, a OTAN avançou 14 países na direção da Rússia. Diplomatas como George F. Kennan e John Matlock consideraram isso como “um erro de proporções históricas”. Desde 2008, que Putin explicou a linha vermelha da adesão da Ucrânia à OTAN. Nessa altura, Will Burns, o atual chefe da CIA, então embaixador na Rússia, explicou o risco de guerra que implicaria ultrapassar esse limite. Essa adesão também nunca foi desejada pela maioria dos ucranianos (Zelensky, aliás, foi eleito em 2019 com um programa de pacificação com a Rússia…). Nada disso demoveu Washington. De tanto querer abocanhar a Ucrânia, acabou por ficar com as garras do urso russo em volta do seu pescoço…

Quais as responsabilidades da UE no processo que conduziu a esta guerra?

Esta guerra mostrou que esta União Europeia vale menos que a soma dos seus países membros. O projeto europeu só teria sucesso numa via de autêntico federalismo republicano e constitucional, como tenho proposto nos meus livros desde 1993. Com a Europa Alemã, da chanceler Merkel, a via hegemónica corroeu a confiança. A guerra da Ucrânia fez o resto. Estamos a viver o estertor de um sistema de governação falhado. Quando as armas se calarem, a dureza do que aí vem avançará sem máscaras. Tempos muito difíceis aguardam os europeus.

E da Rússia, que violou o Memorando de Budapeste?

O Memorando de Budapeste (1994) foi assinado entre Rússia, EUA e Reino Unido, para garantir que a Ucrânia independente, ao renunciar às armas nucleares ex-soviéticas no seu território, não seria vítima de agressão. A invasão pela Rússia é uma violação, sem dúvida, mas de um pacto que morreu quando Kiev abandonou o estatuto de neutralidade, aceitando integrar a OTAN, e solicitando o estacionamento de armas nucleares no seu território, ameaçando diretamente a Rússia…

E Gaza? Como caracteriza o que está a suceder e quais os seus riscos?

Em Gaza não estamos a falar de guerra, mas de um conflito hediondo. Na Ucrânia há guerra. De um lado e do outro temos exércitos com um treino e armamento equivalente, movendo-se num vastíssimo território. A linha da frente russo-ucraniana (1 200km) é maior do que a linha da frente ocidental na I Guerra Mundial (750Km). Gaza é uma prisão, de que o IDF [Forças Armadas de Israel] é o carcereiro cruel. No dia 7 de outubro de 2023 o que ocorreu foi uma violenta fuga de prisioneiros, que, depois de exercida a vingança, regressaram à prisão. A crueldade do Estado de Israel contra civis confinados pelas muralhas da prisão, matando jornalistas, trabalhadores humanitários, intelectuais, médicos, destruindo prédios de habitação para assassinar um só alegado elemento do Hamas, evoca os antigos “massacres administrativos” provocados pela Bélgica, pela Grã-Bretanha, pela Alemanha, pela França, contra povos colonizados. Não há nenhuma guerra, nem mesmo assimétrica. Um conflito em que jovens guerrilheiros, mal-armados, lutam como soldados, contra militares bem treinados e equipados, agindo como terroristas, não é uma guerra. É um massacre sistemático que deita a reputação do Estado de Israel pela lama.

Falou em prisão e em ataques indiscriminados. Segundo dados da Minority Rights Group, há cerca de 1 milhão e 800 mil palestinianos a viver em Israel e já foi confirmado o envolvimento de alguns membros da UNRWA [agência das Nações Unidos para apoio aos refugiados da Palestina] e de jornalistas nos atos de terror e no aprisionamento de reféns israelitas. Como explica isso?

Trata-se da mais grosseira propaganda. A UNRWA tem 13 000 funcionários. Israel acusou 12 dos seus funcionários de terem participado nos ataques do Hamas de 7 de outubro. Mais tarde, o número caiu para metade, dando razão ao chefe da Agência, Philippe Lazzarini, que considerou inconsistente a acusação de Telavive. O objetivo de Netanyahu ao atacar a UNRWA é o de fazer com a fome o que as balas não conseguem.

Haverá risco de escalada?

Sim. Contudo, o Irão mostrou até agora contenção. A Rússia e a China parecem também desempenhar um papel moderador. O principal saldo, contudo, é de natureza ética. O senhor Netanyahu expôs a hipocrisia dos “valores democráticos e humanistas” ocidentais. Quem tenha assistido à missa negra do PM de Israel no Congresso dos EUA, falando como um senhor feudal para os seus servos, jamais poderá escutar de novo a ladainha da nossa superioridade moral sem sentir vómitos.

Mas não estarão os EUA a defender com isso os seus interesses?

Penso que não. Se olharmos retrospetivamente, sobretudo a partir de 1945, os EUA trabalharam sempre para dois objetivos centrais na região: acesso aos recursos energéticos (combustíveis fósseis) e defesa do Estado de Israel, a partir de 1948. A defesa de Israel prendia-se com duas causas: interesse genuíno em ter um Estado amigo incondicional, numa área estrategicamente crítica; o permanente papel de pressão do lobby judaico sobre as duas câmaras do Congresso, o famoso AIPAC (American Israel Public Affairs Commitee). Vou dar dois exemplos do que estou a dizer. Em 1956, durante a aventura neocolonial militar de Paris e Londres, no Canal do Suez, tentando anular a nacionalização realizada pelo Presidente Nasser do Egito, o Presidente Eisenhower não só se opôs ao imperialismo tardio dos europeus (com o apoio da URSS na ONU!), como dissuadiu os israelitas, que aproveitaram a boleia franco-britânica para tentarem tirar vantagens da peleja. Depois da Guerra do Yom Kippur, em outubro de 1973, Nixon, o mesmo Presidente que mobilizou apoio militar maciço para salvar Telavive da situação desvantajosa do início da guerra, iniciou uma política de aproximação ao Egito, que sofreu uma forte oposição israelita. Nixon seguiu a sua vitoriosa diplomacia e colocou os israelitas no seu lugar, afirmando a prioridade do interesse nacional dos EUA. Hoje, com a degradação do sistema político norte-americano, é patente que os congressistas confundem os financiamentos generosos do AIPAC para a sua reeleição pessoal como representantes e senadores, com o interesse nacional norte-americano…. Nunca como hoje os EUA estiveram tão isolados perante aliados tradicionais, como é o caso da Arábia Saudita, da Turquia, ou Egito, entre outros.

Caminhamos para uma nova guerra-fria?

A incerteza é imensa. Para já temos de ultrapassar o Cabo das Tormentas da guerra da Ucrânia, sem naufragar. Para isso, iremos repetir a uma escala muito maior a situação de “nem guerra, nem paz” que foi a solução encontrada para a guerra da Coreia, em 1953. Contudo, o futuro será marcado, sem deixar de ter em conta as incertezas da complexidade do real, pela consolidação de um sistema multipolar, e não de um novo sistema bipolar (Ocidente-BRICS). Tanto os EUA como a UE estão em situação de refluxo. Os EUA enfrentarão, como tem sido discutido nos meios académicos da ciência política, um fortíssimo risco de guerra civil e de fragmentação. Os EUA poderão transformar-se um sistema internacional, agregando constelações de antigos estados federados. No caso da UE, as linhas de fratura são imensas dentro dos países, e entre países. Basta recordar a hostilidade de Varsóvia para com Berlim. O catalisador da desagregação económica e política europeia, com consequências para Portugal, será a eventual queda descontrolada da economia alemã. Uma América encurralada entre uma dívida que não pode pagar, e uma Europa que abdicou do acesso a matérias-primas (Rússia) e perde terreno nas relações económicas com a maior e mais inovadora economia mundial (China) constituem o provável e desolador cenário para o nosso futuro.

Quais são os maiores perigos que se avizinham?

No médio e longo prazo o planeta parece encaminhado para um irreversível colapso ambiental e climático. Os jovens de hoje e amanhã nunca perdoarão às gerações que hoje governam a sua criminosa indiferença para com aquela que deveria ter sido a causa unificadora da humanidade: salvar a habitabilidade da Terra. No curto e médio prazo, persiste o risco de autodestruição bélica da humanidade. A China não parece tentada a replicar os EUA com um orçamento militar que é maior do que a soma dos outros 9 países que se encontram no top 10 dos maiores orçamentos militares do mundo, além das suas 800 bases militares espalhadas por mais de 70 países. O maior desafio, que Pequim (e a Rússia) está a analisar com precaução é o da constituição de um sistema de pagamentos que retire aos EUA a possibilidade de usar o dólar e o sistema financeiro internacional como arma de guerra e instrumento de punição. Foi Donald Trump que disse, recentemente, que se o dólar perder o estatuto de principal moeda de reserva internacional, os EUA correm o risco de se transformar num país do terceiro-mundo. Poderá ser isso um motivo para os EUA irem para a guerra? No meu tempo de vida tive o privilégio de ver o milagre, único até hoje na história mundial, de uma grande potência (a URSS sob Gorbachev) que arriscou implodir para evitar uma guerra com os EUA, que provocaria uma hecatombe de destruição mundial. Suspeito que milagres destes não sejam repetíveis na mesma vida…. Uma coisa é certa: ao contrário do que pensava Francis Fukuyma em 1989, no futuro o tédio não será o nosso problema…