1. Na semana passada, a propósito da série da Netflix denominada Kleo, referi a tempestade política, social e cultural que varreu – e, ao que parece, continua a varrer – a sociedade da antiga RDA e a que é a sua herdeira atual.
Depois de ter escrito tal texto, foi noticiada a chocante vitória eleitoral da extrema-direita num dos Estados que integrava o território desse defunto país e a conquista de um relevante segundo lugar eleitoral em um outro desses Estados.
Os media, em geral, aventaram para que o sucedido teve como razão principal a política de migrações do governo alemão e as reações racistas que ela gerou nessa parte da Alemanha.
O noticiário repetido em quase todos os canais televisivos e radiofónicos, e mesmo na imprensa de referência, pouco relevo deu, entretanto, à também expressiva votação alcançada nesses mesmos Estados, por dois partidos agora identificados como sendo de extrema-esquerda.
Relativamente aos resultados destes, aquela explicação simplista usada para justificar o sucesso eleitoral da direita radical não resultava.
2. Mas tal votação nos partidos de esquerda não é despicienda e deveria merecer, também, alguma reflexão.
Não se traduzindo no mesmo sentimento de desvario irracional e raiva acumulada que fez ascender a direita radical, tal opção representa, igualmente, uma frontal resistência ao que politicamente se passa desde a unificação da Alemanha nessa parte do país.
Lendo assim os resultados das forças políticas situadas de um e do outro lado do bloco central no poder que, há anos, governa esse país unificado, encontramos, com efeito, uma votação muito expressiva do descontentamento reinante nessa parte da Alemanha.
3. O facto de ter sido a extrema-direita a recolher a maior simpatia dos eleitores desses Estados alemães não pode, nem deve, ser analisado unicamente do ponto de vista estritamente alemão, como nos é sempre sugerido pelos comentadores político-mediáticos encarregados de velar pela nossa boa interpretação dos factos.
Tal fenómeno político – a votação na extrema-direita alemã – deve, igualmente, ser inserido, também ele, na análise que, bem ou mal, se vem fazendo sobre os resultados que as forças políticas da direita radical vêm alcançando um pouco por toda a Europa.
Todos sabemos, claro, que há razões específicas para que no território da ex-RDA se aprofunde, hoje, uma rejeição do modelo liberal-democrata que governa a Europa.
Tais razões, porém, não explicam tudo o que ali se passa.
4. Há, de facto, situações antigas, exclusivas da Alemanha, e outras mais recentes, relacionadas com o panorama político europeu que ajudam a compreender o que se passa com tais votações.
Sobre as razões históricas, li, faz tempo, um magnífico livro de Christian Baecheler, Professor na Universidade Marc Bloch de Strasbourg, intitulado – «La Trahison des Élites Allemandes (1770-1945)», Ed. Passés Composés, Paris, 2021 – que ajuda, com abundância de números, a ilustrar muito do que, agora, ali se passa.
Tal livro, de que já aqui falei, é essencial para compreender a evolução política, social e cultural da Alemanha no período nele estudado.
Contudo, ele ajuda, também, a perceber melhor, o que hoje ocorre nos diferentes territórios que compuseram os dois países alemães saídos da II Grande Guerra: a RFA e a RDA.
Num tom mais ligeiro e popular e, ao estilo inglês, algo irónico, pode também ser importante para a compreensão do complexo problema alemão a leitura do livro de James Hawes «A Mais Breve História da Alemanha».
A leitura desta obra ajuda a situar mais detalhadamente as diferenças culturais e económicas que existiam antes, e existem hoje, entre os alemães de diferentes regiões, muitas delas bem anteriores à criação e depois à unificação daqueles dois Estados germânicos.
5. Mas, se há razões históricas específicas para os diferentes comportamentos dos alemães ao longo dos tempos, a verdade é que, presentemente, não se podem estudar tais atitudes sem, em simultâneo, compreender a influência das movimentações das forças europeias de direita radical na assunção, pelos eleitores alemães desses Estados, de tal ideário político.
Não podemos, pura e simplesmente, estigmatizar os alemães de Leste com o labéu de racistas, ignorando que tais preconceitos e atitudes não são exclusivos dos alemães, pois são hoje comuns a muitos países europeus, como, por exemplo, a França, o Reino Unido, a Áustria, os Países Baixos, os países nórdicos e mesmo a Itália e a Espanha.
É, ainda, também, o que começa a acontecer entre nós.
Note-se, todavia, em reforço das causas especificamente germânicas do descontentamento com a democracia e a fórmula usada para unificar esse país, que, ainda hoje, os alemães do Leste estão obrigados a pagar – com salários mais baixos dos que auferem os cidadãos que são originários da antiga RFA – o preço da integração na Alemanha unificada.
Esta é, enfim, a democracia a que têm direito.
6. O evidente racismo que emoldura a intervenção e expressão ideológica das forças políticas europeias da direita radical, se tem como pretexto principal uma política migratória mal concebida e pior executada em muitos desses países, não pode, por conseguinte, fazer esquecer outros relevantes fatores.
São eles que, também, contribuem para que tais opções eleitorais sejam tomadas como reação, mais ou menos convicta, ao presente imobilismo social que os partidos do centro impõem, hoje, na Europa.
Tais discursos radicais de direita, fazendo continuadamente apelo às emoções mais irracionais dos eleitores, cruzam-se e entretecem-se, nas redes sociais, com o cinzentismo indiferente da política adotada, irresponsavelmente, pelas instituições nacionais e europeias governadas pelo bloco central de interesses.
A expressão pública de clamores de indignação contra o outro – por exemplo, o estrangeiro ou o muçulmano – cumpre bem a função de despistagem das situações sociais mais relevantes que, pese o discurso oficial apaziguador, existem e se agravam em muitos territórios europeus.
Refiro-me, por exemplo, às que resultam da ausência de eficazes políticas contra o desemprego juvenil, à insuficiência e redução geral dos salários e futuras pensões das novas gerações, ao seu ingente problema da habitação e, culturalmente falando, à condescendência oficial com um discurso que fomenta o confronto diário entre os hábitos sociais dos cidadãos de origem europeia e os dos imigrantes e refugiados provenientes de outras partes do mundo.
Enquanto isso, estes últimos olham, ainda, para a Europa como a esperança de, aí, escaparem à miséria segura que os seus países de origem lhes reservam, muito dela causada pelos efeitos imprevisíveis das guerras pavorosas a que, em alguns casos, o Ocidente não é de todo alheio.
Desviado o olhar desatinado dos cidadãos europeus das causas reais das migrações e dos que com elas lucram – manobra política velha e revelha, mas sempre eficaz – é a face morena dos migrantes e não as mais pálidas dos seus patrões europeus, que lhes é apresentada como causadora das suas desditas.
Mesmo quando não explícito, tal posicionamento dos governantes europeus, traduzido, no que às migrações respeita, em medidas legais e policiais inspiradas homeopaticamente no receituário anti-imigração da extrema-direita, abre caminho à aceitação pública dos discursos racistas e dos partidos que, mais ou menos declaradamente, os enunciam.
Além de que, com a opção por uma desideologização crescente do discurso e prática política e, em simultâneo, a sua substituição por um patuá político-economicista, só aparentemente neutro e tecnocrático, a Europa e muitos democratas contribuem, em muito, para ocultar as razões autênticas do crescimento de desesperança e do medo indefinido que se instalou entre os cidadãos dos países ocidentais, em especial nos mais jovens.
O racismo, como outras atitudes irracionais, ocupa, pois, na Europa dos nossos dias, o espaço de ódio, discriminação e crueldade, preenchido pelos confrontos promovidos, séculos atrás, recorde-se, pelas diferentes igrejas e seitas cristãs.
Até há pouco tempo isso ainda sucedia na Irlanda do Norte e, com outro enquadramento ideológico, no país basco espanhol.
Dito isto, importa reconhecer que o fenómeno migratório é um problema real exigindo uma resposta política e social e cultural séria e ponderada e, acima de tudo, que concite a vontade e o acordo de todas as partes nele envolvidas.
7. Ou a Europa começa, pois, a discutir franca, aberta e politicamente as causas da desesperança, sobretudo aquelas que afetam as suas gerações mais novas, relegando, de vez, para o caixote do lixo da História a célebre TINA (não há outra alternativa), ou os fatores e os agentes do irracionalismo redentor galgam as muralhas em que a insípida política europeia se entrincheirou.
E então, sim, corremos sérios riscos de regresso aos regimes nacionalistas, autoritários e racistas.
Dito de outro modo: não podemos deixar que o destino da TINA fique, precisamente, nas mãos dos que querem prosseguir a TINA, ainda que por outros meios, mais cruéis, sufocantes e perigosos para os direitos civis e sociais dos habitantes da Europa.
Para que isso não aconteça – e não sei se ainda vamos a tempo – é necessário empenhar todos os atuais habitantes da Europa num processo comum e mobilizador de renovação do seu modelo económico e social.
Um novo modelo que seja acompanhado, prontamente, por um compromisso justo e verificável de uma repartição mais equilibrada da riqueza gerada.
Isto de modo que a vida de todos, e em especial a dos que trabalham por conta de outrem – neles se integrando, portanto, também, os imigrantes e refugiados – ganhe a dignidade humana que a todos deve assistir e que é possível assegurar.
Só uma vida com direitos – e não suportada por esmolas – dá lugar a uma existência com projeto e com esperança.
8. É cada vez mais patente a falta de humanismo das políticas neoliberais herdeiras da TINA.
Elas evidenciam-se, claramente, na cega e empedernida recusa de propiciar, desde já – como se reconhece ser hoje possível e económica e socialmente exigível -, uma vida decente a todos os habitantes e trabalhadores da e na Europa.
É no desenvolvimento crescente dos desequilíbrios e das desigualdades, que as políticas atuais produzem, que medram, em contrapartida, as opções vindicativas e transtornadas de natureza terrorista e o crescimento dos fatores irracionais nas opções políticas dos cidadãos europeus, por
forças partidárias que erguem a luta contra os migrantes e os estrangeiros como estandartes políticos.
Só, pois, um pacto político alargado e um esforço comum dos democratas, no reconhecimento da necessidade de uma compensação rápida e justa do empenho de todos – europeus e migrantes – no desenvolvimento material e cultural da sociedade europeia, criarão condições seguras para salvar a Europa de um destino de novos, permanentes e violentos confrontos internos e externos.
Urge, pois, um compromisso verdadeiro e, de imediato gratificante, entre e para todos quantos habitam e trabalham na Europa: um compromisso que dê corpo a um programa de justiça e progresso social e económico que, já nos nossos dias, a todos sirva e galvanize.
Só a cumplicidade política, cultural e social que este possa propiciar pode evitar o desastre anunciado e garantir a paz.