Putin de visita à Mongólia


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A possibilidade de uma norma jurídica ser violada não lhe retira a validade enquanto comando jurídico. Tal acontece na ordem jurídica de cada Estado (a punibilidade, em abstracto, do homicídio, não garante a inexistência de homicidas) mas também na ordem jurídica internacional (a punibilidade, por via convencional e costumeira, dos crimes de guerra não garante que todos os que os pratiquem sejam efectivamente punidos).

A juridicidade do direito internacional público leva os Estados a desenvolverem enormes esforços para tentarem justificar condutas que, prima facie, surgem como violadoras de normas jurídicas internacionais. Serve de exemplo a construção desenvolvida pela Federação Russa para justificar a invasão da Ucrânia, correspondendo a um imaginário exercício do direito de legítima defesa protegido pelo artigo 51º da Carta da ONU.

Mas alguns Estados também se dedicam a tentar demonstrar que alguns segmentos da ordem jurídica internacional são desprovidos de efectividade, devendo ceder perante determinadas correlações de forças. Esta semana Putin visitou a Mongólia, Estado que, em 11 de Abril de 2002, ratificou o Estatuto de Roma (ER) que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI).

Em 17 de Março de 2023 o segundo juízo de instrução do TPI emitiu um mandado de detenção contra Putin por suspeita da prática dos crimes de  deportação ou transferência, ou a privação de liberdade ilegais e de tomada de reféns em relação a crianças de nacionalidade ucraniana retiradas de território ucraniano ocupado pela Federação Russa (tipos penais dos crimes de guerra previstos no artigo 8º, nº 2, a) vii) e viii) do ER). O mandado de detenção contra Putin assenta em factos cuja prova o Procurador perante o TPI e o segundo juízo de instrução do TPI consideram como sendo suficientes para justificar a detenção. O TPI tem jurisdição sobre os crimes cometidos no território de um Estado que a tenha aceite, como acontece com a Ucrânia ao abrigo do artº 12º, nº 3 do ER, para os factos praticados após 10 de Fevereiro de 2014. O mandado de detenção refere que os crimes alegadamente cometidos por Vladimir Putin o foram com recurso a outrem (artº 25º, nº 3 do ER: “Nos termos do presente Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem: a) Cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja ou não criminalmente responsável.”) e com base na responsabilidade do superior hierárquico (artº 28º b) do ER: “b) Nas relações entre superiores hierárquicos e subordinados, não referidos na alínea a), o superior hierárquico será criminalmente responsável pelos crimes da competência do Tribunal que tiverem sido cometidos por subordinados sob a sua autoridade e controlo efectivos, pelo facto de não ter exercido um controlo apropriado sobre esses subordinados.”).

Nos termos do artigo 59º do ER, a Mongólia está obrigada a executar o mandado de detenção. No entanto, a detenção de Vladimir Putin não era um cenário realista dada a extrema dependência económica da Mongólia em relação aos dois únicos Estados vizinhos: Federação Russa e China (nenhum dos dois é Parte no ER). O não cumprimento de mandados de detenção emitidos pelo TPI tem alguns antecedentes na prática internacional. Omar Al-Bashir, Presidente do Sudão, foi acusado em 2009 pela prática do crime de genocídio no Darfur. Durante mais de dez anos deslocou-se ao Chade, Djibouti, Jordânia, Quénia, Malawi, África do Sul e Uganda, todos Estados Partes no Estatuto de Roma, e não foi detido.

O TPI pode censurar esta conduta por parte de um Estado Parte no ER, declarando que o mesmo viola os deveres de cooperação e pode comunicar tal violação à Assembleia dos Estados Partes (artº 87º, nº 7 do ER). A investigação do Procurador junto do TPI relativa à Ucrânia foi solicitada por 43 Estados (entre os quais Portugal) e não pelo Conselho de Segurança da ONU. Assim sendo, o TPI não pode dirigir-se ao CS da ONU para apreciar a conduta não cooperativa da Mongólia, mas a intervenção do CS pode ser solicitada por qualquer Estado-membro da ONU. Sendo a Federação Russa um dos membros permanentes do CS é provável que, agindo em causa própria, vete qualquer resolução que vise censurar a Mongólia pela ausência de cooperação com o TPI.

Putin de visita à Mongólia


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A possibilidade de uma norma jurídica ser violada não lhe retira a validade enquanto comando jurídico. Tal acontece na ordem jurídica de cada Estado (a punibilidade, em abstracto, do homicídio, não garante a inexistência de homicidas) mas também na ordem jurídica internacional (a punibilidade, por via convencional e costumeira, dos crimes de guerra não garante que todos os que os pratiquem sejam efectivamente punidos).

A juridicidade do direito internacional público leva os Estados a desenvolverem enormes esforços para tentarem justificar condutas que, prima facie, surgem como violadoras de normas jurídicas internacionais. Serve de exemplo a construção desenvolvida pela Federação Russa para justificar a invasão da Ucrânia, correspondendo a um imaginário exercício do direito de legítima defesa protegido pelo artigo 51º da Carta da ONU.

Mas alguns Estados também se dedicam a tentar demonstrar que alguns segmentos da ordem jurídica internacional são desprovidos de efectividade, devendo ceder perante determinadas correlações de forças. Esta semana Putin visitou a Mongólia, Estado que, em 11 de Abril de 2002, ratificou o Estatuto de Roma (ER) que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI).

Em 17 de Março de 2023 o segundo juízo de instrução do TPI emitiu um mandado de detenção contra Putin por suspeita da prática dos crimes de  deportação ou transferência, ou a privação de liberdade ilegais e de tomada de reféns em relação a crianças de nacionalidade ucraniana retiradas de território ucraniano ocupado pela Federação Russa (tipos penais dos crimes de guerra previstos no artigo 8º, nº 2, a) vii) e viii) do ER). O mandado de detenção contra Putin assenta em factos cuja prova o Procurador perante o TPI e o segundo juízo de instrução do TPI consideram como sendo suficientes para justificar a detenção. O TPI tem jurisdição sobre os crimes cometidos no território de um Estado que a tenha aceite, como acontece com a Ucrânia ao abrigo do artº 12º, nº 3 do ER, para os factos praticados após 10 de Fevereiro de 2014. O mandado de detenção refere que os crimes alegadamente cometidos por Vladimir Putin o foram com recurso a outrem (artº 25º, nº 3 do ER: “Nos termos do presente Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem: a) Cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja ou não criminalmente responsável.”) e com base na responsabilidade do superior hierárquico (artº 28º b) do ER: “b) Nas relações entre superiores hierárquicos e subordinados, não referidos na alínea a), o superior hierárquico será criminalmente responsável pelos crimes da competência do Tribunal que tiverem sido cometidos por subordinados sob a sua autoridade e controlo efectivos, pelo facto de não ter exercido um controlo apropriado sobre esses subordinados.”).

Nos termos do artigo 59º do ER, a Mongólia está obrigada a executar o mandado de detenção. No entanto, a detenção de Vladimir Putin não era um cenário realista dada a extrema dependência económica da Mongólia em relação aos dois únicos Estados vizinhos: Federação Russa e China (nenhum dos dois é Parte no ER). O não cumprimento de mandados de detenção emitidos pelo TPI tem alguns antecedentes na prática internacional. Omar Al-Bashir, Presidente do Sudão, foi acusado em 2009 pela prática do crime de genocídio no Darfur. Durante mais de dez anos deslocou-se ao Chade, Djibouti, Jordânia, Quénia, Malawi, África do Sul e Uganda, todos Estados Partes no Estatuto de Roma, e não foi detido.

O TPI pode censurar esta conduta por parte de um Estado Parte no ER, declarando que o mesmo viola os deveres de cooperação e pode comunicar tal violação à Assembleia dos Estados Partes (artº 87º, nº 7 do ER). A investigação do Procurador junto do TPI relativa à Ucrânia foi solicitada por 43 Estados (entre os quais Portugal) e não pelo Conselho de Segurança da ONU. Assim sendo, o TPI não pode dirigir-se ao CS da ONU para apreciar a conduta não cooperativa da Mongólia, mas a intervenção do CS pode ser solicitada por qualquer Estado-membro da ONU. Sendo a Federação Russa um dos membros permanentes do CS é provável que, agindo em causa própria, vete qualquer resolução que vise censurar a Mongólia pela ausência de cooperação com o TPI.