Rodrigo Queiroz e Melo. ‘Temos muita pena de não poder educar outro tipo de alunos’

Rodrigo Queiroz e Melo. ‘Temos muita pena de não poder educar outro tipo de alunos’


O dirigente da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo assegura que os privados estão a crescer e que se deve olhar com atenção para este fenómeno.


Tem-se verificado de forma consistente um aumento do peso do privado no total do sistema de ensino, a que se deve este crescimento?

São dois fatores distintos. Um deles deve-se ao aumento do número de alunos nas escolas profissionais. No final da primeira década do ano 2000, devido ao estabelecimento da escolaridade obrigatória de 12 anos, surgiu a ideia de que era preciso reforçar diferentes caminhos no secundário e criou muito o ensino profissional nas escolas secundárias públicas. Para expandir a rede muito depressa foi preciso usar a capacidade instalada na escola secundária pública. Isto percebe-se do ponto vista da gestão do fluxo, mas o resultado é que ao nível da qualidade da oferta, as escolas profissionais privadas, por terem os incentivos certos, tiveram uma oferta muito procurada. Há ótimo ensino profissional no público mas em muitas escolas ainda é visto como um mal necessário e olhado como um filho do Deus menor. A oferta nas escolas profissionais privadas acaba por ser mais segura para as famílias porque só existem para aquele fim, não são um enxerto dentro do agrupamento.

Qual é o outro fator de crescimento?

É o ensino privado financiado pelas famílias, ou seja, com o pagamento de propinas. É um número brutal quando comparado com todo o resto da Europa. E é um fenómeno estranho, porque num país pobre como o nosso, onde há ensino público gratuito para todos, as pessoas fazerem a opção em tão grande número de pagar a educação dos seus filhos, é estranho. É um fenómeno que deve ser olhado com atenção pelos governos.

As pessoas cada vez confiam menos na escola pública?

A questão ideológica de que quem quer pode pagar o privado e que o público existe para todos, é uma discussão muito interessante, mas passa ao lado do problema. O problema é: por que é que as pessoas estão a escolher o privado em tão grande número? No nosso entender as pessoas procuram no privado estabilidade em torno dum projecto educativo que se traduz em ordem, exigência, previsibilidade, etc. Ninguém trabalha num colégio privado se não acreditar naquilo que está lá a fazer e nós também não deixamos ficar a trabalhar connosco alguém que não acredite ou que não se esforça. Quando olhamos para as regras de funcionamento das escolas públicas percebemos que isto é impossível. Se os professores são colocados na escola por um algoritmo e os critérios relevantes são a antiguidade, o desejo do professor e a nota que teve no fim da sua licenciatura há 30 anos, isto não tem nada que ver com qualidade, com projeto ou equipa. Das 100 pessoas que trabalham numa instituição o diretor não escolheu nenhuma. É evidente que assim não pode haver projeto.

O privado contabiliza um quinto da totalidade de alunos. O que diz deste número?

É um número impressionante. Há uma pequena aceleração nos últimos tempos, especialmente no tempo do Covid. Aquela experiência educativa de extremo levou as pessoas a confiarem mais ainda no privado uma vez que o privado teve a capacidade de dar apoio às famílias e a garantia de que dentro do possível se mantinham os projetos educativos. Outro fenómeno também relevante especialmente nas grandes cidades foi a dimensão brutal que o teletrabalho ganhou depois do Covid. Portugal tem hoje uma grande quantidade de expatriados que procura o ensino privado por razões várias, como a língua ou o acesso a currículos internacionais. Esse crescimento nota-se na Grande Lisboa, claramente, mas também se começa a sentir no Porto e noutras zonas.

Também as escolas privadas internacionais têm vindo a crescer.

Sim, muito. Ainda não conseguimos fazer as contas, faltam-nos dados, mas eu atrever-me-ia a dizer que se olharmos a um tempo mais longo, nos últimos 15 anos mais do que duplicou, o que também explica o crescimento do privado. É um fator positivo pois puxa por todo o setor. Quando aparece uma resposta bilingue procurada por muitas pessoas, a oferta mais tradicional começa a ter que pensar nisso. É outra grande diferença entre o público e o privado: no público é irrelevante se faz bem ou mal ao nível dos incentivos, no privado o incentivo tem um peso brutal. Se eu não conseguir continuar a atrair alunos vou deixar de conseguir pagar ordenados. Há, por isso, um incentivo constante em saber o que as pessoas estão a procura, como se pode melhorar e ganhar confiança do maior número de famílias. É uma espiral positiva que, infelizmente, tem afastado os dois setores.

O ensino privado ainda é olhado como um ataque à escola pública?

Isso continua a ser verdade especialmente e infelizmente nas cabecinhas da classe política. Cada vez menos temos a sensação de que os dois setores são coisas diferentes, que não se tocam, etc. Quando trabalhamos com os nossos colegas do público nota-se pouco essa questão do público versus privado. Mas na Assembleia da República, por razões que nem conseguimos compreender bem, essa questão é muito viva. Aí e na comunicação social. Ora, manter essa dicotomia tem um impacto social muito mau e grande. 20% é muita gente.

Que impacto tem no sistema e na sociedade?

São 20% de alunos do 1º ano ao 12º ano todos juntos na sua bolha. São alunos que crescem juntos, namoram e constituem família, criam empresas e quando é preciso contratar alguém de quem se lembram vão buscar esses amigos. Isto não é bom para a mobilidade social. O papel de mobilidade social da escola pública não é cumprido se as pessoas acantonam a escola pública num mundo à parte para os pobrezinhos. Isso só perpetua a pobreza. Temos muita pena que, apesar de os portugueses estarem a demonstrar com a sua opção que querem uma coisa diferente, os políticos mantenham a cegueira ideológica perpetuando a desigualdade.

Como explica que haja políticos que demonstram alguma desconfiança pelo setor privado enquanto decisores políticos mas inscrevem os filhos em escolas privadas? É incoerente?

Há coisas que eu não consigo justificar e muito menos consigo justificar que as pessoas transmitam isso em público e achem normal dizer: ‘Como eu pago posso ter condições especiais’. Há sempre uma boa desculpa para fazer essa opção. Mas a verdade é que não é só o público que é para todos, o privado também é para todos se houver um mecanismo de financiamento. Essa incoerência resulta de uma democracia muito jovem e de uma sociedade civil muito pouco exigente com os seus líderes. Em qualquer país civilizado o responsável pela educação que decidisse acabar com a possibilidade de quem não tem dinheiro poder fazer uma opção educativa pelo privado, mas mantivesse a possibilidade para si porque tem dinheiro, essa pessoa seria despedida pelo primeiro-ministro no mesmo momento. Passou-se isto em Portugal e achou-se normal.

Tem esperança que o Governo atual retome os contratos de associação para permitir isso mesmo?

As parcerias entre o público e o privado na comunidade são absolutamente fundamentais. É assim em toda a Europa. Na própria Espanha 20% do ensino privado é concertado. Mas nestes países as regras têm estabilidade. O problema em Portugal é que mesmo que o governo atual anunciasse aumentar os contratos de associação, isso seria muito difícil em termos operacionais. Os operadores existentes poderiam aceitar mais uma ou duas turmas, mas não iam aparecer operadores novos porque há sempre o risco de irmos para eleições daqui, ganhar um governo socialista e fechar tudo outra vez. Há uma perda total de confiança depois da forma como o Estado acabou com os contrato de associação. E não há volta a dar. Nós negociamos há mais de 20 anos com vários governos questões financeiras ligadas aos contratos de associação, mas esta última intervenção nem negociada foi. Foi um quero, posso e mando a forma como aconteceu e com o apoio generalizado do Partido Socialista, que é um partido de poder que sempre estará na nossa vida. Não há nenhuma confiança no Estado e na possibilidade de haver algo que não seja juridicamente e absolutamente blindado. Por isso não vejo que seja possível nos próximos tempos um governo fazer algo juridicamente blindado. As PPP na Saúde também pareciam blindadas e acabaram todas. Ainda assim, tal como na saúde, também na educação o sentir do setor privado é de que estamos bem, temos muita procura e a procura continua a crescer. Mas temos muita pena não poder educar também outro tipo de alunos, mesmo muita.

Ou seja, o setor privado é cada vez mais só para alguns?

Exatamente. Há uma grande parte da população que está a viver na bolha e não é só os muito ricos.

O facto das pessoas terem só um ou dois filhos também ajuda a terem acesso ao privado.

A questão da perda da natalidade já vai na segunda geração e o que acontece em muitos colégios é que quem paga a mensalidade são o pai e a mãe aquilo que podem, mais os avós dos dois lados. Há muito mais pessoas, por causa da perda demográfica, que passaram a ter maior disponibilidade para pagar a educação do neto único e do filho único.

Uma das discussões é que sairia mais barato ao Estado financiar um aluno na escola privada do que na pública. É verdade?

Há um comparador inultrapassável que são os contratos de associação. O valor dos contratos de associação é neste momento absolutamente miserável e está congelado há 15 anos, são 80.500 € por turma. No tempo em que o Tribunal de Contas fez um esforço para tentar perceber quanto é custava uma turma no setor público estávamos perto de 100 mil € no Estado. O ministro Brandão Rodrigues, com mais ou menos fundamento, falou em valores por turma superiores a 120 mil € no Estado. Ora, a diferença é muito grande. Mesmo que o valor do contrato de associação seja atualizado continuamos com uma diferença brutal. Sim, é mais barato.

No final do dia há diferença entre os alunos formados em escolas públicas e privadas?

Não sei. É muito difícil avaliar isso. Sempre foi mas agora é ainda mais difícil porque nos tornamos mais exigentes e não se sabe bem o que é isso do bem formado ou mal formado. Nós temos as métricas que temos e elas dizem que os alunos no ensino privado aparecem com bons resultados nos exames. Segundo essa métrica estamos a fazer bem. Diz-se que esses são os ricos e os outros não são. Mas a verdade é que eu oiço muita discussão sobre quais os fatores que fazem com que o resultado não seja esse e nenhuma discussão sobre o porquê do resultado e o que se deve fazer para o melhorar. Há um estudo muito interessante da Nova sobre os rankings ao longo dez anos e uma das conclusões é que nenhuma escola privada fica parada perante maus resultados dos seus alunos. Quando as pessoas ditas defensoras da escola pública (entre muitas aspas) se queixam dos rankings que são horríveis porque os alunos são pobres, é como se estivessem a dizer que aqueles alunos nunca irão ter boas notas. Quando a questão devia ser: dentro da realidade que temos o que devemos fazer para atingir bons resultados? O elevador social não é uma coisa quentinha, feita com decretos-leis mas sim um processo longo, difícil e muitas vezes não funciona. Mas quando funciona é ótimo. E nunca funcionou por se dizer que os alunos são péssimos e a justificar os falhanços com isso.

Há falta de professores ou é uma questão de gestão?

Há falta de pessoas com habilitação académica que a lei estabelece como necessária para poder dar aulas no ensino básico e secundário. O facto é este. Ora, esta questão das habilitações só existe porque sistema não confia nas escolas e está montado numa abordagem muito fabril. Isto aplica-se aos privado como uma luva. Quanto ao público, devia olhar-se para um mecanismo de autorregulação dando capacidade de ação ás lideranças das escolas públicas para fazer algo parecido com aquilo que os privados vão fazer.

Que é?

Dar formação em didática a licenciados que queriam ser professores. O nosso ponto é: o facto de alguém ter feito um mestrado numa escola ensino básico ou para o ensino secundário é o alfa e o ómega do bom exercício profissional? Não. Isto só existe porque não há forma nenhuma de pôr fora do sistema um mau professor e o sistema sente-se salvaguardado se, pelo menos, aquela pessoa tiver andado alguns anos a levar na cabeça a dizerem-lhe o que é que se espera que faça quando chegar à sala de aula. Acreditando que assim ele será um bom professor. Eu estou disponível para argumentar que isso é uma mera crença, que não é verdade.

Os professores têm melhores condições na escola pública ou privada?

Ao dia de hoje eu diria seguramente que têm melhores condições no setor privado. Porquê? Porque não há nenhum professor na escola privada que não pudesse vincular ao Estado numa escola pública.

E como explica que se escolha os privados se o público, em princípio, garante mais estabilidade. Dinheiro?

As pessoas não se mexem só por dinheiro e há algumas questões do exercício profissional que têm a ver com o enquadramento regulatório das escolas públicas. Como esta coisa do concurso, como este absurdo dos reportes ou com o absurdo de um ministério que passa o dia a dizer coisas para as escolas. É um sistema muito burocrático e as pessoas sentem-se desesperadas porque é uma burocracia que não se percebe onde é que vai levar. A burocracia torna isto um caldo de desresponsabilização.

A autonomia que se vai dando às escolas não está a resolver essa desresponsabilização ?

Na prática já há muito tempo que os diretores podem fazer o que quiserem mas isso exige o que as pessoas estejam todas de acordo. Não se pode desconstruir a forma tradicional de dar aulas se as pessoas não estiverem todos de acordo com isso.

Isso resolvia-se como?

Até que os diretores das escolas públicas possam contratar as suas equipas há pouco a fazer. Tem que haver algures no procedimento de contratação uma escolha da escola conforme o seu projeto educativo.

Seria uma transformação drástica que nenhum governo teria força política para fazer.

Por isso é que não tenho nenhuma crença na melhoria significativa do sistema público nos próximos tempos e acho que o privado tem um futuro garantido. Na verdade, ou há um salto importante, e isso implica encontrar um caminho das equipas serem mais coesas, ou então não vai haver melhorias significativas porque o sistema não permite. Foi construído assim por razões históricas, entretanto ultrapassaram-se as razões históricas e não se ultrapassou o sistema. Tenho muita pena que assim seja, porque os privados só precisam de ser um bocadinho melhores do que a sua concorrência gratuita, o que é pouco.