Retomamos a conversa com a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva. Na primeira parte falámos sobre a sua última lição, o seu livro Variações – arte portuguesa dos séculos XIX-XX e o projecto ambicioso que tem de escrever uma história da arte portuguesa do século XIX. Hoje continuaremos com o tópico da reconstrução de Lisboa após o terramoto, debruçando-nos ainda sobre reis-artistas, um peculiar colecionador do Porto e os desafios que a arte contemporânea coloca ao historiador.
Norman Foster, o arquiteto inglês, apresenta o grande incêndio de Londres de 1666 e o terramoto de Lisboa de 1755 como exemplos de como as catástrofes podem levar à modernização das cidades.
Concordo em absoluto. Em Lisboa não havia esgotos, não havia passeios, os incêndios eram permanentes, os lotes eram muito mais estreitos. No entanto, esta profunda renovação foi feita no que podemos designar por uma situação de ditadura.
É uma transposição para o urbanismo do regime que havia em Portugal?
Não exactamente. Fizeram-se acertos de propriedade. Mas os acertos tinham que calhar naquela rede completamente nova e as pessoas sentiram-se muito prejudicadas. Quem estudou muito bem isso pela primeira vez foi o meu querido amigo José Sarmento de Matos – a ‘outra Baixa’, num livro maravilhoso intitulado Uma casa na Lapa. As pessoas foram viver para o que é hoje a Lapa, porque aí construíam com liberdade. Um dos grandes problemas da Baixa Pombalina é a estreiteza dos logradouros e não prever o estabulamento de animais de carga. As pessoas continuavam a ter cavalos, burros, e precisavam da horta. Os prédios pombalinos não têm nada disso. Portanto as pessoas saíam e muitas vezes já não queriam voltar. Hoje há trânsito a mais, mas ainda se circula, as ruas têm dimensões standard. Antes, a Baixa era como Alfama. O terramoto faz, de facto, nascer a cidade moderna. O caso do Porto é diferente. Há a criação da Companhia dos Vinhos em 1756 e, devido à economia do Port wine, a cidade tem um surto de desenvolvimento incrível. O [José-Augusto] França começa o neoclassicismo, que não tem grande expressão em Portugal, com a Ajuda. Ora, o primeiro edifício neoclássico em Portugal é o hospital de Santo António: 1760.
Por influência inglesa.
Mais do que influência – é projeto inglês. A história da arte do França é toda feita a partir de Lisboa. Mas, no que respeita à pintura e escultura, os grandes artistas do século XIX são praticamente todos do Porto.
O Soares dos Reis…
O Soares dos Reis, o Teixeira Lopes, o Henrique Pousão, o Artur Loureiro, o Silva Porto, o Marques de Oliveira, a Aurélia de Sousa, o António Carneiro… Figuras absolutamente marcantes. E o primeiro grande historiador de arte portuguesa, Joaquim de Vasconcelos, era do Porto e, aliás, detestava Lisboa…
O Porto tem uma burguesia forte e isso pesa.
Assim como a ideia de ser uma segunda cidade, longe da corte. Têm de fazer as coisas à custa deles próprios. Vou dar um exemplo contemporâneo. O Estado tem sempre dois representantes no conselho de administração de Serralves, e eu, quando era diretora dos museus, fui durante uns anos uma das representantes do Estado em Serralves. A compra da quinta [dezembro de 1986] é feita pela Teresa Gouveia, no Governo de Cavaco. A Teresa Gouveia sai de um dia para o outro e entra o Santana Lopes. O Santana Lopes faz tudo ao contrário e pensa desistir de Serralves e instalar um museu de arte contemporânea na Cadeia da Relação.
Não sabia.
Isto não foi público. O Porto – aquela burguesia que conta – levantou-se em bloco. Falaram com o Cavaco e o Cavaco recuou. Eles são assim. Eu costumo dizer que se Serralves fosse em Lisboa já dependia do Ministério da Cultura. Claro que quando estou chateada também digo que o Estado entrega a Serralves mais [dinheiro] do que aos outros museus todos. Pois é, mas os privados entregam outro tanto. Isto só podia ser no Porto.
No século XIX temos em Portugal dois casos de reis-artistas. É uma coisa comum na Europa?
É uma questão interessante, mas não sei responder. D. Fernando de Saxe-Coburgo é, do ponto de vista das artes e da cultura, a personalidade mais importante do século XIX português. Caiu-nos em sorte. Ele veio para Portugal com 18 anos, chamavam-lhe ‘o Nabo’, porque não tinha barba. [risos] A mulher, a Rainha D. Maria II, tinha gosto pela política, ele tinha nenhum – e seria um desastre. Toda a sua formação é alemã, vem para cá já formado. Chega e quer ir visitar a Batalha e Alcobaça. É um homem de uma cultura incrível, de uma paixão pelas artes extraordinária. Eu menosprezava um bocadinho a faceta dele como artista, achava uma mania dos seus próximos. Até que, por causa daquela maravilhosa exposição que foi feita em Sintra [Fernando Coburgo fecit: a atividade artística do rei-consorte, no Palácio da Pena, 2016-2017], vi os desenhos. E são fantásticos. Obviamente ele tem às vezes fragilidades.
Não é um artista profissional.
Não. Mas é tão interessante, tão interessante… Ele e a D. Maria II são o casal equivalente à Rainha Vitória e ao Rei Alberto [de Inglaterra] – aliás são família muito próxima. Representam os valores burgueses na monarquia. Ele introduz a árvore de Natal, introduz os presentes para os miúdos – e há desenhos dele que, tudo leva a crer, mostram a Dona Maria a brincar sentada quase no chão com os filhos mais velhos. Pelo património, pelo colecionismo, por ter construído a Pena, é uma figura central da cultura no século XIX português. E é pai de dois reis sucessivos e avô do penúltimo. D. Carlos dizia que a primeira caixa de aguarelas foi o avô que lha deu.
Há quase um passar do testemunho.
Claramente. É uma família de artistas, com qualidades e defeitos. Quando o Dr. Amaral Cabral, que era então presidente da Casa de Bragança, me encomendou um livro sobre o D. Carlos, eu disse-lhe que não tratava do político, só do pintor. Não chega ao nível do Columbano e do Malhoa, mas fica logo no patamar abaixo. E com coisas que eles não têm. Um dos quadros maiores que ele fez tem como tema a pesca do atum na costa algarvia, um quadro de cerca de seis metros. Ofereceu-o ao primo, Guilherme II da Alemanha, e o quadro desapareceu. O que temos são centenas de fotografias, feitas por ele, da pesca do atum.
Eles encurralavam o cardume nas armações.
Aquilo é uma coisa sinistra, escorre sangue por todo o lado. Mas ele foi lá documentar-se. Isto é o lado do naturalista próximo do cientismo.
Que ele também tem.
Sim, faz isso com as embarcações. Depois nem sempre consegue levar os projetos adiante – porque se dispersa, porque se calhar foi perdendo qualidades, porque a política lhe correu demasiado mal. Mas ele é cientista e é artista. E mistura os dois mundos na pintura. É um caso muitíssimo interessante. Gostava imenso de fazer uma exposição com o quadro ausente – mas há fotografias [do quadro] –, e há as fotografias todas que ele fez da pesca do atum. Já o D. Fernando tem importância tanto pelos desenhos que faz como pelo mecenato. Compra o [Tomás da] Anunciação, o Cristino da Silva, o Metrass. E depois há o colecionismo e o que ele faz em defesa do património. Não temos a certeza absoluta, mas muitos estudos apontam que foi ele que salvou a Custódia de Belém.
Que estaria na Casa da Moeda pronta para ser fundida. Mas também já vi quem dissesse que é um mito.
De facto não há provas. Mas ele é um patrimonialista. Um homem culto que entra completamente na cultura portuguesa. Aliás há muitos estrangeiros importantes em Portugal, mesmo historiadores, como o Raczinsky e o Haupt. Muitas vezes são os estrangeiros que valorizam as coisas portuguesas. Como no século XX , o Robert Smith em relação à talha.
Falámos do Porto. Um caso extraordinário é o do colecionador Fernando de Castro. A casa dele [um prédio absolutamente normal cujo interior está em grande parte revestido a talha dourada] é uma coisa quase surrealista, parece que se entra noutra dimensão.
O que é curioso é que ele não tem tanto dinheiro assim. Ele não é um rico.
O pai tinha um negócio, não era?
Depois do pai morrer, ele investiu naquela paixão total – e fez bem. Mas é uma paixão crafts [movimento de valorização dos trabalhos oficinais]. Também coleciona pintura, e ele próprio é poeta e desenha. Mas não é por isso que se fala nele. O problema é que a irmã destruiu os diários, onde ele tinha tudo assente. Mesmo assim acho que seria possível identificar de onde vêm aquelas peças, mas tem de ser gente do Porto. A documentação foi deliberadamente destruída. Ninguém mo confirma e não consigo testemunhos, mas acho que ele devia ser homossexual. Há ali uma dobra e um esconder. Estamos anos 40, 50, a homossexualidade não existia, aliás era proibida. Mas depois resolveu revelar aquela sua obra extraordinária.
Toda a gente procura afeiçoar a casa ao seu gosto. Mas neste caso há quase uma tentativa de criar um mundo de sonho.
A casa tem essa dimensão onírica. Acho que não é kitsch… Aquilo é operático, teatral, e muito pessoal – é uma espécie de autorrepresentação, de palco para ele próprio. Mas a casa é pequena, há uma dimensão de toca. Na escada tens a sensação de que aquilo te vai cair em cima. E é pequena porque ele não tinha tanto dinheiro assim. Mesmo assim compra a casa ao lado. São casos deslumbrantes… O colecionismo é um mundo espetacular.
Esse mundo também é fascinante porque cada maluco tem a sua mania.
Um grande historiador alemão, mas que trabalha em França, o Krzysztof Pomian, tem um texto em que diz: ‘Conheci uma senhora polaca que coleciona caroços de citrinos’. [risos] Para as famílias, às vezes as coleções são pesos enormes. O grande problema do colecionador é esse: ele morre e as coisas ficam.
O seu livro chama-se Variações – arte portuguesa séculos XIX-XX. Mas entra pelo século XXI adentro, com a Joana Vasconcelos.
Sim, a Joana Vasconcelos e outros, por exemplo o Eduardo Batarda, o José de Guimarães, o Julião Sarmento. No entanto o século XXI põe questões em relação às quais eu sei que já não vou conseguir ter uma visão interessante. É uma coisa que a velhice traz de simpático: isso já não é do meu tempo.
Já não lhe interessa?
Interessa-me imenso, vou a exposições, a galerias. Mas não domino tudo o que se faz. Eu gosto muito de crítica de arte, mas resisto a fazê-la. Consigo fazer, creio eu que com qualidade, uma ideia do panorama artístico português, nomeadamente nas artes plásticas e na arquitetura, até aos anos 80. Até aí sou capaz de pensar com uma certa coerência. Daí para a frente falta-me distância. E isso eu reivindico muito: sou historiadora. O Almada Negreiros, por exemplo, continua a provocar sangue, entre os que dizem uma coisa e os que dizem outra. Mas eu tenho a minha opinião, total, fechada. Não tenho dúvida nenhuma. A partir dos anos 80 falta-me essa distância, entra-se de facto no campo da crítica.
Dá-se conta de uma certa impostura na arte contemporânea? Viu a história da banana, se calhar.
A história da banana?
Um bom artista, o Maurizio Catelan, na feira de arte de Basileia colou uma banana com adesivo na parede e pôs à venda por 120 mil dólares. E depois um visitante passou por ali e comeu-a...
Essa provocação é uma tradição modernista, vem do século XX. Considera-se muitas vezes que o Duchamp é figura axial para tudo isso, com os ready-made. O que é La Fontaine? Um urinol que ele volta ao contrário, assina e é uma obra de arte. Isto, do ponto de vista da elaboração da teoria da arte, foi importante para o século XX. Mas abre um campo pouco controlado que suscita vários problemas. Eu costumava dizer aos meus alunos que não há nenhuma época sem arte. Se esta é a arte do nosso tempo, nós temos que a ver e tentar percebê-la. E depois tomarmos partido. Até para termos autonomia para dizer: ‘Isso não me interessa’. Mas policiarmos, exercermos censura, é tudo o que há de pior. E confundir faits divers com o que verdadeiramente interessa…