Futebol Feminino. Os mundiais que incomodaram muita gente

Futebol Feminino. Os mundiais que incomodaram muita gente


Por muito que a FIFA não queira e pretenda esconder vá lá saber-se porquê, o primeiro Campeonato do Mundo feminino teve lugar em 1970, em Itália. No ano seguinte, na Cidade do México, a final entre México e Dinamarca encheu o Estádio Azteca com mais de 110 mil espectadores. Foi de truz!


Mais de cento e dez mil pessoas em redor de um relvado para assistir a um jogo de futebol entre mulheres pode parecer impossível mas já aconteceu, e há mais de cinquenta anos. A FIFA tem feito tudo para que as pessoas se esqueçam ou nem sequer o recordem. Considerou os Mundiais de 1970 e de 1971 como inexistentes, desprezando o esforço de grupos de revolucionárias que se dispuseram a enfrentar-se tal e qual como nos Campeonatos do Mundo masculinos e atraindo tantos espectadores como os homens. Mas, para cada poço do oblívio, há um alcatruz da nora que traz à superfície as imagens que pretenderam apagar.

Em 1970, a maior parte das federações nacionais eram contra o futebol feminino e a The Football Association chegou mesmo a ameaçar os clubes que tivessem equipas de mulheres de exclusão de todas as provas por ela organizadas. Corajosamente, os dirigentes da célebre marca de bebidas Martini & Rossi avançaram com o patrocínio necessário para que se realizasse a primeira competição feminina a nível mundial e disputada por equipas nacionais. Sob o escrutínio da entretanto fundada Federação Internacional e Europeia de Futebol Feminino, oito seleções juntaram-se em solo italiano, disputando-se os encontros em Génova, Bolonha, Milão, Bari, Salerno, Nápoles, com o jogo para o terceiro e quarto lugar e a final em Turim. O amadorismo fez com que  as confusões começassem cedo. No sorteio, quando Itália e Dinamarca foram postas em confronto, logo as duas equipas consideradas favoritas ao título, a organização resolveu repetir tudo para irritação dos outros participantes. Pelo caminho, as checoslovacas sofriam os efeitos da Guerra Fria e não lhes foram concedidos os vistos necessários para viajarem até ao Ocidente. O novo sorteio encaixou a Dinamarca, a República Federal da Alemanha e a Inglaterra num grupo, e a Itália, México, Suíça e Áustria no outro. As duas primeiras seleções de cada grupo seguiriam para as meias-finais. A Inglaterra venceu a Alemanha Ocidental por 5-1 e a Dinamarca derrotou o mesmo adversário por 6-1, arrumando as contas do coxo grupo de três. No outro, o México goleou a Áustria por 9-0 e a Itália venceu a Suíça por 2-1. No dia 10 de Julho, em Milão, no Estádio de San Siro, a forte Dinamarca bateu a Inglaterra por 2-0, golos de Evers. Na outra meia-final, havia um confronto particular entre as duas melhores marcadoras do torneio, Elena Schiavo da Itália e Alicia Vargas do México – Schiavo fez os dois golos italianos (2-1). Dois dias mais tarde, o México garantiu o terceiro lugar graças a uma vitória sobre a Inglaterra por 3-2. A final que a organização queria e tudo fez para garantir jogou-se a 15 de Julho, no Comunale de Turim, perante 40 mil espectadores. Seis meses antes, a Itália vencera a Dinamarca por 3-1 na final do Europeu. Agora chegara a hora da desforra. Østegard Hansen e Maria Sevicikova, uma refugiada checa, marcaram para as nórdicas, Elena falhou um penalti, e o resultado ficou em 2-0. O público, tristonho, foi obrigado a ver a festa alheia das jogadoras vestidas com camisolas do Milan. Na véspera, os equipamentos dinamarqueses foram roubados dos balneários. 

O gigantismo mexicano de 1971

Um ano antes, o Mundial do México ficara para a História como, provavelmente, o mais espetacular de todos os tempos. O Brasil de Pelé e Tostão, Gerson e Rivelino, Jairzinho e Carlos Alberto vencera a Itália na final por 4-1 e o Estádio Azteca recebeu mais de 110 mil espectadores para o jogo decisivo. Agora voltaria a rebentar pelas costuras para ver a Copa do Mundo feminina. A prova foi dividida por duas sedes havendo, além da Cidade doMéxico, Guadalajara e o seu Estádio de Jalisco. Seis seleções disseram presente: México, Argentina, Itália, Inglaterra, Dinamarca e França – tendo as europeias jogado uma fase de apuramento que englobou doze equipas. O entusiasmo popular foi muito para lá daquilo que seria imaginável. Ainda saudosos da grande festa do ano anterior, os mexicanos receberam a Copa do Mundo de Futebol Feminino de 1971 com uma alegria esfusiante e, sobretudo, com um fanatismo absoluto em redor da sua seleção que se apresentou como favorita à vitória final. Um pouco de exagero, talvez, nessa afirmação. Mas como conter tanta alegria? E para quê? Os estádios encheram e os espectadores beberam sofregamente com os olhos aquilo que se passou sobre os relvados.

No grupo de Guadalajara, a Dinamarca começou por ganhar tranquilamente à França (3-0). Com a seleção construída quase na sua totalidade por jogadoras do Boldklubben Femina, uma equipa da cidade de Gladsaxe, as dinamarquesas apresentavam um jogo coletivo muito superior ao de todas as restantes equipas. Mas tiveram de dar o melhor de si próprias. Em seguida, a França perdeu com a Itália (0-1), e o empate entre Itália e Dinamarca(1-1) conduziu as duas finalistas da Copa do Mundo anterior para as meias-finais. 

Entretanto, no Estádio Azteca, as assistências mantinham-se teimosamente acima dos 100 mil por jogo. Sem lugares fixos, há quem afirme que as partidas das mexicanas foram testemunhadas por 110 ou 115 mil pessoas, números extraordinários que nem hoje se repetem. O México qualificou-se para as meias-finais com uma perna às costas: duas vitórias, sobre a Argentina (3-1) e sobre a Inglaterra (4-0). Por seu lado, a Argentina bateu a Inglaterra (4-1) e conquistou o outro lugar entre as semi-finalistas. Tendo chegado à Cidade do México em clima de festa, as inglesas foram absolutamente vilipendiadas no regresso a casa, com a imprensa britânica caindo sobre elas com a acusação de terem envergonhado o futebol do país, reforçando a posição de muitos que queriam banir o futebol feminino da grande ilha para lá da Mancha. Vingar-se-iam uma década depois.

Exibindo a sua força e justificando o título ganho no ano anterior, as dinamarquesas despacharam a Argentina por 5-0. Na outra meia-final houve um fudevu de enormes proporções. Com o México a ganhar por 2-1, Elena Schiavo, considerada a melhor jogadora do mundo, marcou um golo espetacular de livre direto. De pronto, o árbitro anulou-o, considerando que o livre deveria ter sido marcado indiretamente. Quem viu as imagens do lance – encontram-se com relativa facilidade – e a violência da falta cometida percebe que nunca poderia haver lugar a livre indireto. Mas o México precisava de estar na final para que o encanto não se quebrasse. E assim, depois de cenas de pancadaria no final do encontro, tudo se resolveu a contento dos organizadores. No dia 5 de Setembro (na véspera a Itália assegurara o terceiro lugar à custa da Argentina – 4-0), num ambiente enlouquecido, nem a arbitragem foi capaz de contrariar a muito maior categoria (e força física) das dinamarquesas. Susanne Agustesen fez um hat-trick e levantou a formosa taça inspirada na Vitória de Samotrácia que se encontra noLouvre, imagem da deusa Niké, alada e sem cabeça. Por muito que alguns o negassem, o futebol feminino tinha movidos multidões impressionantes.