EUA. A conveção das emoções

EUA. A conveção das emoções


A alegria, o entusiasmo e a oposição visceral a Trump têm sido os principais impulsionadores da campanha democrata. Mas a falta de profundidade e de propostas pode limitar as hipóteses de Kamala.


A Convenção Nacional do Partido Democrata, que teve início na terça-feira, marcou a oficialização de Kamala Harris como candidata do partido à presidência e contou com os discursos de vários ‘pesos pesados’.

Como era expectável, os ataques a Donald Trump e a J.D. Vance foram constantes e sente-se o ímpeto e a crença na vitória em novembro. Vitória que estava cada vez mais longe, mas a desistência de Joe Biden e a nomeação Harris voltaram a colocar os democratas na corrida.

A estratégia do Partido Democrata em proteger a atual vice-presidente – não a colocando, primeiramente, num processo de primárias e afastando-a de entrevistas e de intervenções não programadas –, focando a (curta) campanha apenas em sentimentos e no contraste com o opositor republicano, parece estar a resultar. Além de estar à frente de Trump na mais recente sondagem a nível nacional da YouGov em parceria com a The Economist, Harris lidera em seis swing states: Pensilvânia, Arizona, Wisconsin, Carolina do Norte, Michigan e Nevada, ficando atrás do ex-presidente apenas no Estado da Geórgia.

A vice-presidente que foi uma das principais responsáveis pela situação descontrolada na fronteira com o México e que apresentava uma taxa de reprovação superior a 50% conseguiu reverter totalmente a situação negativa do Partido Democrata quando Joe Biden estava ainda na corrida. E em apenas um mês. Mais uma vez, a comunicação política revela-se fundamental, e até mesmo decisiva, no processo eleitoral.

‘Os Obamas’ e a velha máxima

A Convenção dos democratas regressou ao United Center, em Chicago, vinte e quatro anos depois e esteve envolta num ambiente de esperança e expectativa – sentimentos que não seriam fáceis de adivinhar há um mês.

Logo nos primeiros dois dias subiram ao púlpito nomes como Barack e Michelle Obama, Hillary Clinton e o próprio Joe Biden, que foi presenteado com o discurso de abertura. O apoio em torno de Kamala Harris é evidente e fica cada vez mais claro que a decisão quanto à desistência de Biden não foi tomada na totalidade pelo próprio. O declínio físico e cognitivo do Presidente é inegável e ficou patente mais uma vez quando, na passada semana, afirmou ser a favor de novas eleições na Venezuela, mesmo depois dos Estados Unidos terem reconhecido a vitória «irrefutável» de Edmundo González. A afirmação de Biden, que mina a confiança nos líderes do mundo livre, acabou por ser rapidamente desmentida pela Casa Branca.

De volta à Convenção, Barack Obama protagonizou um discurso naturalmente eloquente, apelando à união e à liberdade e alertando para os perigos da um país «amargo e dividido» na eventualidade de Trump reaver as chaves da Sala Oval. O ex-presidente afirmou ainda que «Queremos ser melhores. A alegria e o entusiasmo em torno desta campanha dizem-nos que não estamos sozinhos». São precisamente estes sentimentos que tornaram Kamala num ícone da política americana tão rapidamente, relegando o debate e exposição de ideias para segundo plano.

É ainda de realçar os ataques pessoais a Trump, alguns que em nada abonam à união pregada pelos ‘Obamas’. Talvez a máxima de Michelle – When they go low, we go high – tenha ficado em 2016.

As propostas de Kamala

O site da campanha de Kamala Harris e Tim Walz não contém qualquer informação acerca do programa que tencionam seguir na eventualidade de eleição. Porém, e avaliando pelo mandato de Walz como Governador do Minnesota e de Harris enquanto vice-presidente, é possível analisar a linha programática de ambos, que representam uma clara viragem à esquerda do Partido Democrata, como já tinha sido mencionado em edições anteriores do Nascer do SOL.

Têm, mesmo assim, surgido algumas propostas de solução para os problemas atuais dos americanos – que a própria vice-presidente ajudou a criar ou agravar. A mais mediática foi a sugestão de controlo de preços na habitação e nos alimentos por parte de Harris, que não elaborou mais sobre a medida. Joe Biden tinha já mencionado esta possibilidade ainda enquanto candidato.

Trata-se de uma medida eleitoralista, mas que economicamente é ineficaz e contraproducente, como ensina a história de outros países que a implementaram.

A oposição ao grande capital e aos milionários é também uma bandeira deste novo Partido Democrata – como mostraram as intervenções de Michelle Obama e Bernie Sanders, por exemplo – que, por sinal, conseguiu angariar cerca de 500 milhões de dólares em apenas um mês.

O ticket mais à esquerda dos democratas nos últimos tempos parece estar a assumir o favoritismo desta corrida, mesmo que fazendo campanha com base em sensações e em políticas económicas e sociais mais radicais que as da atual administração.

Harris e Walz prometem começar a combater os problemas atuais logo no primeiro dia, mas é importante relembrar que um dos membros da candidatura está em funções há mais de três anos e meio.

O clima de polarização, tensão e expectativa é palpável e vai-se intensificando à medida que as eleições se aproximam, e os debates – tanto o presidencial quanto o da vice-presidência – prometem fazer correr muita tinta e vão certamente desempenhar um papel fulcral na decisão do próximo Presidente americano.