Chegado de Atlanta a Londres, mais especificamente à zona deprimida de Brixton Hill, 21 Savage, de pais da Dominica e da Jamaica, grava «Redrum», canção inspirada na famosa sequência de Shining de Kubrick (não faltam as ‘gémeas’ nem a incorporação da fala de Jack Nicholson à porta da casa de banho) em que o menino repete, de forma premonitória, este anagrama de «murder». O rapper teve a audácia de se juntar aos jovens de um bairro embora não esteja lá integrado. Abraça, neste seu álbum mais recente, American Dream, as suas raízes (viveu em Londres até aos 7 anos), tendo, há uns anos, quase sido deportado dos EUA por um atraso na renovação do visto. Com o problema resolvido, sente-se finalmente parte do sonho americano.
No videoclipe de «Redrum», começa-se por sublinhar que qualquer criação depende de um território, o que resgata da neurose. Neste caso, um território bem concreto, análogo ao Bronx de onde se engendrou o hip-hop: aquele onde se processa a exclusão massiva e avulta, portanto, a necessidade de se defender, a identificação com a força que suporta toda a violência sobre gerações afrodescendentes desfavorecidas. O rapper decanta os universos, o bairro está distante, é outro mundo, não coincide com a cidade turística: «Aqui está a beleza, aqui tu consomes», ditava uma frase situacionista, que mostrava a importância, para o capitalismo, de criar espaços comerciais de tal modo apelativos para que o consumidor se sinta sofisticado, portador de um privilégio legítimo. O bairro é anomia e até anemia, evidência da demissão política, que justifica todos os atavismos tribais, a hierarquia dentro das matilhas. É aí que se inclui ainda um certo uso daquelas raças de cães letais, como 21 também mostra. A propósito, nos Diálogos, Deleuze afirma que ser de esquerda é pensar primeiro na China, depois na Europa, depois na França, em Paris e, por fim, no meu bairro: traçar the big picture fomenta a compaixão e um sentido mais comunitário. Já o Rassemblement olha primeiro e sobretudo para o bairro cheio de imigrantes e arte depredada, território protegido ao milímetro com pitbulls e dobermanns. Assim se resume rapidamente a letra de «Redrum».
Também na biografia de 21 Savage – que foi alvejado no dia em que cumpria 21 anos, na sequência de uma rixa motivada pelo tráfico de droga – a arte é compensação simbólica pela perda de outros bens. Noutros tempos, o rap era essencialmente dizer a verdade ao poder (Public Enemy, 2Pac), no sentido em que, por exemplo, um trovador poderia ilustrar com as suas rimas o modo como o rei – a corte inteira – ia nu. Se recuarmos até 1982, até às origens do hip-hop, vemos como The Grandmaster Flash & The Furious Five cantavam «The Message» ao ritmo do disco: «You’ll grow in the ghetto livin’ second-rate /And your eyes will sing a song called deep hate (…) You’ll admire all the number-book takers / Thugs, pimps and pushers and the big money-makers / Drivin’ big cars, spendin’ twenties and tens / And you’ll wanna grow up to be just like them, huh». Era o hip-hop a pedir a requalificação urgente do Bronx, eram os cantores tentando não perder a cabeça, conscientes de que ser preso seria o corolário lógico da organização social, a certificação do seu sucesso colectivo: «Don’t push me cause I’m close to the edge / I’m trying not to lose my head / It’s like a jungle sometimes / It makes me wonder how I keep from goin’ under». Refrão que se poderia adequar perfeitamente as mais novas gerações europeias actuais, atiradas para fora do jardim das delícias sociais-democratas, um clube cada vez mais privado – praticamente um sonho americano –, a remoção descarada que instiga os reflexos mais primitivos. Actualmente, portanto, sucede que Pretty Boy Floyd já não é necessariamente um contra-exemplo, mas serve o modo, mais ou menos dramatizado, de criar uma lei paralela, que ainda assim continue a produzir desterro (outros casos eloquentes, com modulações bem diversas, seriam Chief Keef, com «Winnin», ou Childish Gambino, com «This is America», esta uma canção mais complexa, mordaz e contundente, pois mostra como os afroamericanos são acomodados num depósito, denuncia o racismo estrutural e demonstra a armadilha inerente à idolatria do gangster, assim homenageando a herança dos The Grandmaster Flash). 21 Savage vem contar-nos a história da sua sobrevivência – aliás, é isso que faz qualquer narrativa, tal como Pascal Quignard nos vem elucidando. Em tempos em que as massas excedentárias – ou, pelo menos, ainda imersas no napalm do cinismo, sadicamente forçadas a colaborar com uma realidade moralmente inaceitável – consomem valores culturais, um rapper pode ser rico; e as elites vêem caucionados os seus valores (não por acaso, 21 Savage dá palestras sobre literacia financeira).
Os jovens – também excedentários – do videoclipe, atirados para as ruas por falta de creches, Estado e regulação económica, fazem jus àquele verso de Allen Halloween sobre os seus amigos que estão todo o dia no bairro como soldados (o «medo perfilado», Alexandre O’Neill…) a «fuma[r] o futuro até ao cartão» («Ódio», Árvore Kriminal). Adormecem com o haxixe a sua natural embriaguez («a juventude é a embriaguez natural», afirmou Goethe). A evidência de um niilismo em transe, o da presa em face do predador – não será este ‘encarnado’ pelas notícias? E não será a televisão, por isso, uma agressão? Não será a informação como a infecção necessária a quem precisa de se sentir enganado? Não é um consumidor de Hollywood alguém que deseja ser intimidado, mantendo, assim, bem activa a sua própria violência? Os meios de comunicação são campos de stress psico-acústico, são parte de uma nação, cuja característica central é a alternância entre alarme e fim do alarme, como canta Gambino: «Don’t catch you slippin’ now».
A ideia deste texto é mostrar sumariamente o modo como a referida canção de 21 Savage ostenta a ligação entre tédio e crime, alicerces da civilização ocidental, seguindo a linha argumentativa de alguns ensaios de Benjamin Fondane, no novo livro lançado há pouco pela VS: A segunda-feira existencial e o domingo da História (tradução de Diogo Paiva).
No século XXI, continua a actuar aquele aforismo de Cohn-Bendit segundo o qual, a Ocidente, a certeza de não se morrer de fome engendra o risco de se morrer (e matar) de tédio. Mesmo que não se morra de fome, é-se lançado para uma invisibilidade penosa. O sample da «serenata do adeus» de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, cantada por Elza Laranjeira, parece sublimar a importância do crime realçada em cada verso. Evidencia o efeito de bumerangue (Bégout): o nada brutal, redrum, é a devolução do nada violento e minucioso da nossa exclusão. A violência acontece também porque o instinto domesticado pela cadeia institucional – escola, fábrica, hospital, prisão, e outros dispositivos para inclusão e exclusão, quando viver falha com sofrimento insuportável – acaba por irromper nalgum momento, de modo mais ou menos abrupto. Numa síntese deleuziana, dir-se-ia que a sociedade é o que desgasta a nossa vida animal. É por isso que a arte pode ser um factor de emancipação filosófica e política, na medida em que dirige a atenção sobre o próprio criador e mobiliza muita da sua energia. Se os jovens não lêem, isso só prova que são espertos, pois entenderam como se devem conformar aos valores dominantes, assentes no princípio psico-cinético do utilitarismo, o inimigo imediato da ociosidade e do pensamento crítico.
Fondane defende a importância do mundo interior, apesar de reconhecer a infelicidade inerente às concretas circunstâncias históricas, nunca consentindo, porém, que essa consciência social e política oprima qualquer filosofia – como a existencialista – que se centre no modo como cada homem deve viver. Num ensaio sobre Kafka, destaca de modo justo uma frase de Hegel sobre o sacrifício do individual: «a Razão não pode deter-se no facto de que os indivíduos particulares estejam mortificados» (p. 69). Os protagonistas kafkianos acordam numa atmosfera em que nem a irrealidade, nem a violência, são percebidas como tais. Eles sofrem alguma perda que obedece aos princípios da racionalidade absoluta. Uma racionalidade a tal ponto refinada e eficaz que tornou o ódio obsolescente (Günther Anders, mas também Adorno). Então, como pôr em causa o que é bom? Não é sem culpa que se padece. É daí que vem uma das grandes sínteses do Processo a respeito do terrível silêncio e abandono a que se é conduzido pela racionalidade histórica, como Fondane demonstra na sua escrita clara e paciente: «Outrora, não conseguia compreender porque é que não recebia respostas às minhas perguntas; hoje, não consigo compreender como é que eu pensei que podia fazer perguntas. Mas, para dizer a verdade, eu não pensava, apenas fazia as perguntas» (p. 75). Chega-se à circunstância de se considerar que qualquer audácia é uma falta (p. 84), atingindo-se, assim, o núcleo do tédio civilizacional, alvo de outro ensaio de Fondane escrito a partir de Baudelaire e com Nietzsche como ponto de chegada.
A ausência de pensamento é o de uma vida relegada para uma interioridade que não se consegue confrontar consigo própria, embora nada mais esteja ao seu alcance fazer. Isso ou os trabalhos mal pagos do capitalismo avançado, desde os mais pesados até aos intelectuais. E os narcóticos são essa compensação para um dissídio difícil, senão impossível, de ser levado até ao fim. Aliás, a cultura, lembrou Nietzsche, é um narcótico. O tédio vem com a «desafectação da vida através do pensamento» (p. 89), o mal do pensamento. Escondidos da vida, jovens e menos jovens são consumidos pela ideia de que tudo é aparência, flutuando num horizonte de inexistência, de acusação do facto de se estar vivo até ao degrau mínimo da vontade. Como se sai daquele transe, como Kafka o enuncia? Os que desistiram de fazer perguntas não serão a maioria dos abstencionistas para os quais já pouca política se desenha, precisamente por razões eleitoralistas? Resumindo um argumento de Boris Groys: os corpos altamente mobilizados da guerra ou da revolução dão lugar, nas últimas décadas, aos corpos desmobilizados do cuidado médico e da administração económica. Uma sociedade assente numa «desmobilização assimétrica» (Sloterdijk), num excedente laboral, tem o seu equivalente eleitoral na abstenção. A questão é despertar desse adormecimento com os excitantes que o aprofundam. Ou com o crime, pela sua adrenalina extraterrestre, numa época em que já não somos gregos, nem sequer cristãos: «Surge uma necessidade de se sentir existir, de romper com a monotonia do ser, do puro imaginável; o assassínio, a vingança e a alegria de destruir por destruir circulam livremente num povo que, ainda há pouco tempo, parecia tranquilo e sábio, a suprema flor de uma civilização consumada» (Fondane, p. 95). Fondane ainda radicalizará a sua conclusão, sugerindo que o tédio é o fundamento da grande crueldade histórica. Não irei tão longe e estou ciente de que as circunstâncias não actuam. Mas tanto os crimes racionais da exclusão, como os da reflexividade instintiva, vão sendo repartidos mecanicamente pelo mundo, tendo o poder e o tédio como motivações evidentes.