É na reforma e reabilitação da independência da Administração Pública que reside a chave capaz de travar a descredibilização do estado democrático


Assistimos hoje a uma situação de desconfiança generalizada: dos cidadãos no Estado, do Estado nos cidadãos, dos órgãos do Estado entre si, de todos e de qualquer cidadão no seu vizinho ou parceiro de trabalho.


1. Depois de, recentemente, ter lido num jornal os índices de confiança dos portugueses nas diferentes e mais importantes instituições do Estado que lhe asseguram a soberania, fiquei, como qualquer outro cidadão, preocupado.

Tais índices revelam uma enorme desconfiança dos portugueses, sobretudo naqueles órgãos que, em princípio, deveriam ser os primeiros a avalizar uma relação de segurança e conforto com a cidadania nacional e com a organização democrática do país.

Verificar, nos cinquenta anos do 25 de Abril, tais índices extremamente negativos não pode deixar de ser doloroso, especialmente para aqueles que antes se bateram heroicamente pela democracia e por uma vida justa para os portugueses e que, convém não mistificar, não foram tantos como alguns nos querem fazer crer.

2. Relendo alguns textos antigos, que publiquei neste jornal, constatei, em muitos, a presença duradoura de dois conceitos: confiança e esperança.

Na verdade, um e outro destes conceitos, quando referidos à vida política e institucional de um país, estão necessariamente relacionados.

Não pode um povo ter esperança – para si e para as gerações que lhe sucederão – se não confiar naqueles que governam hoje os seus destinos e deveriam assegurar o seu futuro e o dos seus filhos.

A falta de confiança dos cidadãos nas mais importantes funções e órgãos de Estado, designadamente naqueles que foram pensados e existem para conseguir suprir e inverter as necessidades de justiça material e moral dos que delas não desfrutam é, sem mais, um sinal de alarme da enorme crise de credibilidade que afeta hoje os regimes democráticos.

O que agora assistimos é, pois, a uma situação de desconfiança generalizada: dos cidadãos no Estado, do Estado nos cidadãos, dos órgãos do Estado entre si, de todos e de qualquer cidadão no seu vizinho ou parceiro de trabalho.

3. Já aqui referi em textos anteriores que, em muitos casos, sãos as próprias leis que, complicando desmesuradamente os processos decisórios, quer políticos, quer administrativos, favorecem a desigualdade no acesso aos direitos constitucionalmente consagrados, prejudicando, não raramente, os que mais necessitam do apoio do Estado.

Aí, reside muita da desconfiança que abafa e envenena a vida em sociedade e aparta os seus membros uns dos outros.

No nosso país, a desconfiança é, ainda hoje, a regra base no relacionamento entre o Estado e os cidadãos.

O cada vez mais imbrincado e complexo texto dos nossos códigos e das nossas leis, longe de prevenir a má utilização dos apoios do Estado aos que deles, de facto, necessitam acaba, assim, por favorecer especialmente os que têm a possibilidade económica de ser bem patrocinados por peritos económicos, financeiros e jurídicos para os obter.

São estes, que, assim, melhor aproveitam, afinal, as funções que o Estado desenvolve, ou devia desenvolver em favor de todos e, sobretudo, dos que mais carecem da sua intervenção.

4. Num outro plano, não necessariamente distinto do que antes descrevi, a concomitante falta de apoio competente e responsável à decisão económica e jurídica dos que têm que governar acaba, inevitavelmente, por permitir faltas, umas graves, outras menos, que afetam, logo que denunciadas, a credibilidade política dos que nos governam.

Sem a intermediação obrigatória, responsável e responsabilizante de técnicos isentos e independentes pertencentes ao quadro da Administração Pública que, com os seus pareceres, confrontem, com autonomia e sem medo, os decisores com as possíveis irregularidades que os projetos das suas tomadas de posição acarretam, tudo acaba, assim, por vir a resolver-se na jurisdição penal.

5. Ora, a jurisdição penal é, porventura, o palco menos apropriado para analisar, do ponto de vista técnico-administrativo e político, a bondade e economicidade das decisões que importam à nossa vida coletiva presente e futura.

Por um lado, por variadas razões, o conhecimento especializado dos meandros e da realidade da decisão económica-administrativa e política não é, nesta jurisdição e nos magistrados que a servem, o mais elevado e atualizado.

Por outro, o consequente e reiterado uso dos cada vez mais complexos e intrusivos meios e procedimentos de aquisição de elementos de prova usados na investigação e no processo penal abala, fatalmente, princípios fundamentais do viver pacifica e confiadamente em sociedade.

A vulgarização de tais procedimentos, mesmo que, em muitos casos, indispensáveis às investigações, contribui sempre, também, para fazer crescer o sentimento de desconfiança entre todos os seus membros.

A sua utilização intensiva e a comprovada incapacidade da Justiça penal para guardar sigilo de muitos dos resultados assim obtidos e que só a ela deviam interessar, descentra, além disso, muito convenientemente, a atenção popular da gravidade social dos crimes investigados para as famigeradas quebras de confiança no sistema.

As próprias características do Direito penal e o desenho de muitos dos tipos de crime que descrevem condutas criminais relacionadas com a governação não permitem à Justiça – reconheçamos – avaliar e distinguir, facilmente, as irregularidades procedimentais que foram cometidas com um propósito nitidamente criminal, de muitas outras condutas e ações similares que não tiveram, todavia, tal intenção e não prejudicaram, em concreto, os interesses do Estado.

Só uma grande experiência e, acima de tudo, muito bom senso podem, nestes casos, evitar erros deploráveis.

Além de que a ação da Justiça penal – não nos esqueçamos – acontece, unicamente, depois dos danos produzidos e quando, na maioria dos casos, não é já possível repará-los.

A inevitavelmente tardia e, por isso, frequentemente desfocada atuação da Justiça penal contribui, também, para a perceção pública da sua ineficácia enquanto meio privilegiado para antecipar e contrariar o mau uso e mesmo os abusos das funções constitucionais do Estado.

Tal ineficácia – cada vez mais visível – ajuda, pois, à desconfiança que os cidadãos acumulam no seu relacionamento com o Estado e muitos dos seus órgãos.

Desconfiança popular nas funções e nos agentes do Estado, que se transforma e traduz – depois de bem manipulada pelos que contra ele atentam – numa atitude generalizada de falta de esperança num futuro melhor.

6. Mais do que um simples pacto para a reforma da Justiça – apenas mais um – era necessário, para ultrapassar este cenário de uma Democracia e de um Estado de Direito decadentes, que se reorganizasse, de maneira radical, o funcionamento da Administração Pública.

Isto, de forma a assegurar sempre a sua imprescindível função de garante autónomo e isento da legalidade substancial e formal das decisões de natureza política tomadas pelos governantes.

É fundamental, com efeito, uma nova e despartidarizada Administração Pública, com carreiras bem definidas, bem remuneradas e dotadas de especialistas altamente qualificados.

Peritos que, com autonomia e capacidade técnica e jurídica, assumam e emitam aos governantes – obrigatória e antecipadamente – pareceres informados e isentos sobre os projetos de decisões políticas que comportem custos ou proveitos financeiros para o Estado, sem, com isso, recearem pelo seguimento da sua carreira.

Só assim é possível evitar a crescente derrapagem na confiança que os cidadãos têm hoje no Estado, nas suas instituições e nos seus governantes e políticos.

Só assim, vencida a desconfiança no Estado, podem os portugueses alimentar, como já antes fizeram, a esperança de que a Democracia contribua para um futuro melhor para si e os seus filhos.

É na reforma e reabilitação da independência da Administração Pública que reside a chave capaz de travar a descredibilização do estado democrático


Assistimos hoje a uma situação de desconfiança generalizada: dos cidadãos no Estado, do Estado nos cidadãos, dos órgãos do Estado entre si, de todos e de qualquer cidadão no seu vizinho ou parceiro de trabalho.


1. Depois de, recentemente, ter lido num jornal os índices de confiança dos portugueses nas diferentes e mais importantes instituições do Estado que lhe asseguram a soberania, fiquei, como qualquer outro cidadão, preocupado.

Tais índices revelam uma enorme desconfiança dos portugueses, sobretudo naqueles órgãos que, em princípio, deveriam ser os primeiros a avalizar uma relação de segurança e conforto com a cidadania nacional e com a organização democrática do país.

Verificar, nos cinquenta anos do 25 de Abril, tais índices extremamente negativos não pode deixar de ser doloroso, especialmente para aqueles que antes se bateram heroicamente pela democracia e por uma vida justa para os portugueses e que, convém não mistificar, não foram tantos como alguns nos querem fazer crer.

2. Relendo alguns textos antigos, que publiquei neste jornal, constatei, em muitos, a presença duradoura de dois conceitos: confiança e esperança.

Na verdade, um e outro destes conceitos, quando referidos à vida política e institucional de um país, estão necessariamente relacionados.

Não pode um povo ter esperança – para si e para as gerações que lhe sucederão – se não confiar naqueles que governam hoje os seus destinos e deveriam assegurar o seu futuro e o dos seus filhos.

A falta de confiança dos cidadãos nas mais importantes funções e órgãos de Estado, designadamente naqueles que foram pensados e existem para conseguir suprir e inverter as necessidades de justiça material e moral dos que delas não desfrutam é, sem mais, um sinal de alarme da enorme crise de credibilidade que afeta hoje os regimes democráticos.

O que agora assistimos é, pois, a uma situação de desconfiança generalizada: dos cidadãos no Estado, do Estado nos cidadãos, dos órgãos do Estado entre si, de todos e de qualquer cidadão no seu vizinho ou parceiro de trabalho.

3. Já aqui referi em textos anteriores que, em muitos casos, sãos as próprias leis que, complicando desmesuradamente os processos decisórios, quer políticos, quer administrativos, favorecem a desigualdade no acesso aos direitos constitucionalmente consagrados, prejudicando, não raramente, os que mais necessitam do apoio do Estado.

Aí, reside muita da desconfiança que abafa e envenena a vida em sociedade e aparta os seus membros uns dos outros.

No nosso país, a desconfiança é, ainda hoje, a regra base no relacionamento entre o Estado e os cidadãos.

O cada vez mais imbrincado e complexo texto dos nossos códigos e das nossas leis, longe de prevenir a má utilização dos apoios do Estado aos que deles, de facto, necessitam acaba, assim, por favorecer especialmente os que têm a possibilidade económica de ser bem patrocinados por peritos económicos, financeiros e jurídicos para os obter.

São estes, que, assim, melhor aproveitam, afinal, as funções que o Estado desenvolve, ou devia desenvolver em favor de todos e, sobretudo, dos que mais carecem da sua intervenção.

4. Num outro plano, não necessariamente distinto do que antes descrevi, a concomitante falta de apoio competente e responsável à decisão económica e jurídica dos que têm que governar acaba, inevitavelmente, por permitir faltas, umas graves, outras menos, que afetam, logo que denunciadas, a credibilidade política dos que nos governam.

Sem a intermediação obrigatória, responsável e responsabilizante de técnicos isentos e independentes pertencentes ao quadro da Administração Pública que, com os seus pareceres, confrontem, com autonomia e sem medo, os decisores com as possíveis irregularidades que os projetos das suas tomadas de posição acarretam, tudo acaba, assim, por vir a resolver-se na jurisdição penal.

5. Ora, a jurisdição penal é, porventura, o palco menos apropriado para analisar, do ponto de vista técnico-administrativo e político, a bondade e economicidade das decisões que importam à nossa vida coletiva presente e futura.

Por um lado, por variadas razões, o conhecimento especializado dos meandros e da realidade da decisão económica-administrativa e política não é, nesta jurisdição e nos magistrados que a servem, o mais elevado e atualizado.

Por outro, o consequente e reiterado uso dos cada vez mais complexos e intrusivos meios e procedimentos de aquisição de elementos de prova usados na investigação e no processo penal abala, fatalmente, princípios fundamentais do viver pacifica e confiadamente em sociedade.

A vulgarização de tais procedimentos, mesmo que, em muitos casos, indispensáveis às investigações, contribui sempre, também, para fazer crescer o sentimento de desconfiança entre todos os seus membros.

A sua utilização intensiva e a comprovada incapacidade da Justiça penal para guardar sigilo de muitos dos resultados assim obtidos e que só a ela deviam interessar, descentra, além disso, muito convenientemente, a atenção popular da gravidade social dos crimes investigados para as famigeradas quebras de confiança no sistema.

As próprias características do Direito penal e o desenho de muitos dos tipos de crime que descrevem condutas criminais relacionadas com a governação não permitem à Justiça – reconheçamos – avaliar e distinguir, facilmente, as irregularidades procedimentais que foram cometidas com um propósito nitidamente criminal, de muitas outras condutas e ações similares que não tiveram, todavia, tal intenção e não prejudicaram, em concreto, os interesses do Estado.

Só uma grande experiência e, acima de tudo, muito bom senso podem, nestes casos, evitar erros deploráveis.

Além de que a ação da Justiça penal – não nos esqueçamos – acontece, unicamente, depois dos danos produzidos e quando, na maioria dos casos, não é já possível repará-los.

A inevitavelmente tardia e, por isso, frequentemente desfocada atuação da Justiça penal contribui, também, para a perceção pública da sua ineficácia enquanto meio privilegiado para antecipar e contrariar o mau uso e mesmo os abusos das funções constitucionais do Estado.

Tal ineficácia – cada vez mais visível – ajuda, pois, à desconfiança que os cidadãos acumulam no seu relacionamento com o Estado e muitos dos seus órgãos.

Desconfiança popular nas funções e nos agentes do Estado, que se transforma e traduz – depois de bem manipulada pelos que contra ele atentam – numa atitude generalizada de falta de esperança num futuro melhor.

6. Mais do que um simples pacto para a reforma da Justiça – apenas mais um – era necessário, para ultrapassar este cenário de uma Democracia e de um Estado de Direito decadentes, que se reorganizasse, de maneira radical, o funcionamento da Administração Pública.

Isto, de forma a assegurar sempre a sua imprescindível função de garante autónomo e isento da legalidade substancial e formal das decisões de natureza política tomadas pelos governantes.

É fundamental, com efeito, uma nova e despartidarizada Administração Pública, com carreiras bem definidas, bem remuneradas e dotadas de especialistas altamente qualificados.

Peritos que, com autonomia e capacidade técnica e jurídica, assumam e emitam aos governantes – obrigatória e antecipadamente – pareceres informados e isentos sobre os projetos de decisões políticas que comportem custos ou proveitos financeiros para o Estado, sem, com isso, recearem pelo seguimento da sua carreira.

Só assim é possível evitar a crescente derrapagem na confiança que os cidadãos têm hoje no Estado, nas suas instituições e nos seus governantes e políticos.

Só assim, vencida a desconfiança no Estado, podem os portugueses alimentar, como já antes fizeram, a esperança de que a Democracia contribua para um futuro melhor para si e os seus filhos.