A grande arlequinada das margens do MIssissipi

A grande arlequinada das margens do MIssissipi


Se os Jogos de 1900, em Paris, para orgulho do Barão de Coubertin foram um desastre, os de 1904, em Saint Louis, no Missouri, foram ainda mais confusos. Incluídos na Feira Internacional que celebrou a compra da Louisiana à França, estenderam-se de 1 de Julho a 23 de Novembro. Mais de cinco meses!


Depois de Atenas (1896) e de Paris (1900) os Jogos Olímpicos disputaram-se pela primeira vez fora da Europa. Tal como acontecera quatro anos antes, faziam parte de uma grande feira internacional, neste caso da Louisiana Purchase Exposition, e duraram a incrível anormalidade de quase seis meses: 1 de Julho a 23 de Novembro. Sinal de que, ao contrário do que acontecera na Grécia, aquando dos primeiros Jogos da Era Moderna, não era verdadeiramente o desporto que estava em causa mas o mercado e toda a atividade económica que girava em redor destas feiras. Não admira que, no que respeita às provas, o caos fosse completo. E, bem à americana, introduziram-se modalidades incomuns, como o lacrosse, a corrida de 60 metros, os saltos em comprimento, altura e triplo sem direito a balanço, o «plug of war», ou seja o jogo em que dois grupos puxam por uma corda até um deles ceder, ou o roque, uma variante americana do croquet. Pela primeira vez disputou-se também um torneio de futebol, com três equipas de clube representando o Canadá e os Estados Unidos, estes com duas.

O mais macabro acontecimento desta Louisiana Purchase Exposition acabou por ser Os Dias da Antropologia, uma espécie de zoológico humano onde eram apresentados homens de diferentes raças, desde os dois sul-africanos negros que correram a maratona aos índios que participaram nas provas de arco e flecha. Pelos vistos foi um sucesso e ninguém levantou uma palavra contra a selvajaria de tal arlequinada. Tempos que se sumiram nos tempos. Estes Anthropology Days tiveram lugar logo na segunda semana dos Jogos. Catorze infelizes indígenas vindos do sudoeste asiático, das ilhas do Pacífico, do extremo oriente, da África, do médio oriente e da América do Sul foram exibidos em cenários que imitavam os seus habitats naturais. Além disso, estudantes das chamadas American Indian Boarding Schools exemplificavam a qualidade da sua assimilação. A equipa feminina da Fort Shaw Indian School, vinda de Fort Shaw, Montana, foi uma sensação, embora a prova tenha sido apenas de exibição e sem direito a medalhas. Afinal estavam ali para serem vistas e não ouvidas. Outras modalidades também só entraram no campo das não competitivas: futebol americano, futebol gaélico e o hurling, uma outra versão de futebol gaélico e com muitas regras idênticas. Saint Louis prometera espetáculo à moda dos US of A, e os organizadores esforçaram-se para que o espetáculo agradasse a todos. Infelizmente para eles a longa duração dos Jogos acabou por fazer com que muita gente fosse perdendo a noção do que se estava a passar. E trataram de seguir as suas vidas ao mesmo tempo que os atletas se arrastavam num mundo que parecia não ter fim.

Esticar a corda até ao limite

Se foi tudo à grande (demais) e à americana, também foi tudo muito americano no que diz respeito aos atletas presentes e ás medidas usadas. A Guerra Russo-Japonesa criara um generalizado mau ambiente entre vários países e os Jogos Olímpicos fora da Europa pareceram desmotivar muitas das nações do Velho Continente. De facto, dos 648 atletas presentes em Saint-Louis, só 74 não eram norte-americanos. Uma percentagem terrível. E desses 648, só seis eram mulheres, o que demonstrava o preconceito que ainda havia em relação ao desporto feminino, algo de muito olímpico, se recordarmos que nos Jogos da Antiga Grécia as mulheres não só não podiam participar como nem sequer podiam assistir. E, para que não restassem dúvidas em relação ao género, os homens competiam nus.

Uma das principais figuras de 1904, foi George Louis Eyser, um fulano nascido em Kiel, na Alemanha, cujos pais emigraram para os Estados Unidos quando ele tinha apenas 14 anos. Da Alemanha trouxe consigo a paixão pela ginástica. Vivia em Denver, no Colorado, quando recebeu a cidadania norte-americana. Já era uma personagem famosa na modalidade quando se mudou para Saint-Louis, exatamente com o fito de se preparar meticulosamente para os Jogos Olímpicos. A mudança mostrou-se avisada. No meio de toda aquela baderna em que as provas eram disputadas, a ginástica não foi exceção. Houve dois eventos, o International Turners’ Championship, disputado em 1 e 2 de Julho, compreendendo triatlo, o decatlo e a luta da corda, e o Olympic Gymnastics Championships, no dia 29 de Outubro, que metia as provas de paralelas, barra horizontal, cavalo com arções, ginástica livre, tanto individual como por equipas. Eyser até começou mal mas, no final do dia, tinha açambarcado seis medalhas, três de ouro, duas de prata e uma de bronze – recorde-se que, pela primeira vez nos Jogos Olímpicos, houve a entrega de três medalhas tal como as conhecemos nos dias de hoje; em Atenas e em Paris, havia medalha de prata para o vencedor e de bronze para o segundo, quando não eram substituídas por um troféu, o que também era normal. A sua proeza foi ainda maior já que usava uma perna de pau do joelho esquerdo para baixo, parte que lhe fora amputada em criança depois de ter sido atropelado por um comboio.

Além dos Estados Unidos (com a sua presença massiva), foram representados em Saint Louis a Austrália, a Áustria, o Canadá (segundo maior contingente, com 56 atletas, não fossem eles vizinhos), Cuba, França, Alemanha, Grã Bretanha, Grécia, Hungria, África do Sul e Suíça. Curiosamente, algumas fontes referem a presença de um italiano, dois noruegueses e um representante da Colónia Inglesa de Newfoundland. Os dados são tão escassos que não há forma de retirar essa presença de um nevoeiro grosso de dúvidas. Os norte-americanos ganharam tudo, ou quase: 76 medalhas de ouro, 78 de prata e 77 de bronze. A grande distância a Alemanha, com sete, cinco e seis, respetivamente. Ramón Frost (duas) e Manuel Diaz (uma), garantiram três medalhas de ouro para Cuba na esgrima. Só o Canadá e a Alemanha conseguiram mais, com quatro cada uma, sendo que as alemãs foram todas na natação (Emil Raush, 800 jardas livres e 1 milha livres, Walter Brack 100 jardas costas e George Zacharias 400 jardas bruços) e as canadianas de Étienne Desmarteau (lançamento de peso de 56 libras), da equipa de futebol do Galt, de George Lyon (golfe) e da equipa de lacrosse do Shamrock. A arlequinada valia para tudo, como se demonstra pelas distâncias percorridas e pela facilidade com que se desprezavam seleções nacionais para modalidades de equipa. Aliás, no lacrosse, o Canadá ganhou também o bronze, graças à presença dos Mohawk Indians, outros índios bem comportados que eram considerados devidamente assimilados. Pobre espírito olímpico esse, tão abandalhado que foi. Mais uma bizarria foi a da formação de uma seleção olímpica que entrou nas provas de ginástica (mistura de norte americanos com um austríaco), esgrima (cubanos e norte americanos) e no esticar da corda (norte americanos e um alemão). Sim, Saint-Louis foi um autêntico esticar de corda. Nunca se vira nem nunca mais se viu nada assim.