Quem atirou a primeira pedra, que se denuncie


O que importa é tentar perceber que corda sensível foi tocada num lado e no outro do velho – e agora apenas cultural – muro de Berlim para despertar, em simultâneo, em ambos os seus flancos, as memórias dos hinos sinistros que conduziram a Europa e o mundo para a maior tragédia guerreira da História…


1. Quando escrevi, tempos atrás, um artigo sobre os efeitos dos telemóveis na sociedade e, a esse propósito, citei Orwell e a sua obra mais famosa – “1984” – não conhecia, nem havia lido nada sobre e do académico polaco Jan Zielonika.

Deparei, entretanto, com um artigo seu, “George Orwell e o Novo Normal da Europa”, publicado no Diário de Notícias.

O referido texto faz um enquadramento político e social da Europa atual e, a partir dele, justifica a sua ideia base:  o que são já e o que irão ser, mais abrangentemente no futuro, os valores, os objetivos e a prática política dominantes na Europa.

Identifica, em suma, tal caminho com a ascensão da direita radical e a adesão que os eleitores europeus de diversos países parecem querer demonstrar aos valores por esta sustentados.

Não esclarece, porém, do ponto de vista político, social e económico, quais as razões que terão levado os cidadãos de um grande número de países europeus a manifestar, agora, tal favorecimento da extrema-direita e das suas ideias e propostas.

Não explica, por exemplo, as motivações geracionais e as deslocações ideológicas de algumas classes, nem, em consequência, a razão da mudança do sentido de voto de vários e largos setores dos povos europeus.

E, contudo, tais mudanças não foram súbitas, nem sequer surpreendentes, para um observador minimamente atento e objetivo.

2. Na verdade, não parece verosímil que, de repente, em diversos países com passados culturais e políticos diferentes, mas integrados no mesmo bloco político-económico em que se insere a UE, tenham decidido fazer opções por ideologias que, mesmo que aparentemente amodernadas, são, na verdade, repescadas do baú da História.

Não parece, igualmente, evidente a razão pela qual os cidadãos de alguns desses países, que fizeram parte do bloco socialista até à queda do muro de Berlim, pareçam, agora, identificar-se, mais fervorosamente que outros, com tais ideologias reacionárias e em tudo contrárias ao sistema de valores em que – sem grandes resultados, pelos vistos  – os seus povos foram educados.

É igualmente inimaginável que muitos dos que dantes constituíam o chamado bloco ocidental – e que era tido e se tinha por assumidamente democrático e liberal – tenham, num mesmo momento, e num aparente volte face ideológico, decidido, também, fortalecer os mesmos velhos e perigosos percursos políticos da direita mais extrema.

Que se passou, entretanto; terão todos ensandecido?

Não basta, com efeito, identificar certeiramente a substituição dos valores e princípios que pareciam orientar cultural e politicamente as diferentes sociedades – capitalistas e socialistas – e afirmar, em seguida, que a miscelânea que, caído o muro, delas resultou se aproxima, hoje, muito razoavelmente, do paradigma orwelliano.

Até pode ser verdade e, depois, que explicação para tal fenómeno?

O que importa é tentar perceber que corda sensível foi tocada num lado e no outro do, materialmente desaparecido, muro para despertar, em simultâneo e em ambos os seus antigos flancos, as memórias dos hinos sinistros que conduziram a Europa e o mundo para a maior tragédia guerreira da História da humanidade.

Não é credível que tudo se resuma simplesmente, como alguns sugerem, aos efeitos – reais e imaginários – do fenómeno migratório atual.

Talvez pareça mais razoável situar, também, tal alteração de quimeras e projetos sociais na deslegitimação constante do Estado democrático e, consequentemente, na quebra de confiança nas instituições estatais e políticas que governam, hoje, os países e as sociedades dos dois lados do muro (cultural) que ainda as divide.

3. Vejamos, pois, mais atentamente, a realidade e atualidade dos dois mundos e dos países que os compunham e que parece estarem a sucumbir, concomitantemente, às tentações mais retrógradas.

De um lado – a leste – podemos dizer que lhes foi prometido um Estado de Justiça: igualdade, justiça social, mais liberdade e possibilidade de efetiva expressão de pontos de vista políticos, culturais e religiosos diferentes.

Todavia, passada a inicial euforia consumista, o que os povos desses países alcançaram foi, no essencial, um Estado de relativa legalidade – em alguns nem sequer um verdadeiro Estado de Direito – e um sistema económico ultraliberal, pouco amigo dos direitos sociais, mas especialmente carinhoso com o empreendedorismo dos novos oligarcas nascidos das elites das nacionalidades que compunham o seu anterior bloco político e militar.

De outro lado – do nosso lado -, caído o muro e passado o medo do “comunismo” que angustiava a alma e, principalmente, a bolsa dos capitalistas ocidentais, assistiu-se, ante a capitulação e mesmo a conivência da terceira via da social-democracia, ao desmoronar das bases económicas, sociais e jurídicas do Estado Social.

4. Podiam ser diferentes os paradigmas – eram-no, certamente -, mas, ainda assim, eram ambos paradigmas de esperança.

Ruindo, quase em simultâneo e, por isso, com mais ruído do que era suposto, as bases materiais dos dois sistemas e, mais ainda, os valores culturais, morais, ideológicos e políticos que os estabilizavam, criou-se, em ambos os lados, um deserto de futuro que afogou em areia vazia de sentido qualquer princípio de esperança ainda sobrante.

Com a queda do muro evidenciaram-se, também, com mais ou menos rapidez, profundidade e escândalo, as práticas abusivas e cleptocráticas que, de forma diferente, mas em ambos lados, se escondiam a coberto das ideias generosas que sustentavam a esperança dos povos europeus no progresso social.

Os efeitos materiais e políticos das crises económicas, que parecem só não ter afetado os interesses dos que as produziram e, além disso, a indignação geral com a complacência e a evidente falta de escrúpulos de vários governantes do chamado “centrão” que, entretanto, dirigiam, e dirigem ainda, a maioria dos estados europeus, aniquilaram o que restava da fé popular nas promessas políticas sempre repetidas, mas sempre, também, adiadas.

Hoje, em muitos dos países herdeiros culturais do muro e das sociedades que ele acomodava, o futuro dos jovens está, evidentemente, desenhado a cores muito mais escuras do que as que pintaram as expectativas dos seus pais, quando novos.

5. O pior que aconteceu e está acontecendo agora não se quedou, porém, por aí.

Para tentar soldar os cacos desencontrados desses dois mundos numa única realidade político-económica e iludir, assim, a frustração popular crescente, os que, de um lado e de outro da Europa, ganharam, entretanto, o poder total redescobriram a velha receita de sempre:  apontar o outro, o diferente, como inimigo, fazendo renascer a insana euforia nacionalista e guerreira que inebria os povos e lhes desvia a atenção da sua própria condição.

Alguns eventos recentes tornaram tudo um pouco mais claro e percetível.

A direita radical, antes verberada, não ameaça mais o establishment que nos governa a todos: veja-se a simpatia com que já se acolhe, nos fóruns europeus, a líder da extrema-direita italiana.

De objetora ao conflito a leste, esta “nova dirigente velha” passou depressa, conquistado o poder interno, a apoiar o partido europeu da guerra, para obter o reconhecimento dos seus pares no seio da UE.

O mesmo sucedeu, aliás, no início dos anos vinte do século passado, com alguns militantes socialistas italianos mais radicais, entre eles Mussolini, que criaram, depois, o partido fascista: de apoiantes indefetíveis da paz, passaram a defensores intransigentes das virtudes varonis e regeneradoras da guerra.

Também eles, depressa, começaram a ser olhados com benevolência pelos patrões da economia italiana e, rápido, chegaram ao poder.

Ao princípio, até Churchill os achava responsáveis e dignos de elogios.

Em seguida, veio tudo o mais: o nacionalismo exacerbado, o culto da raça e, mais tarde, o racismo e o ódio ao outro, a morte e, por fim, a tragédia da guerra mundial.

A França, entretanto, patina hoje, politica e culturalmente, ante uma difícil opção consubstanciada num resultado eleitoral que permite erguer uma de duas soluções antagónicas: erguer uma maioria parlamentar antifascista ou uma maioria parlamentar de direita mais ou menos radical.

Do outro lado do canal, no Reino Unido, o Partido Trabalhista, que alcançou uma esmagadora maioria absoluta, parece não saber como reforçar o orçamento para concretizar os seus generosos e avançados planos sociais e, simultaneamente, pagar os custos da guerra a leste, que assume, como nenhum outro parceiro ocidental, querer continuar a promover e apoiar. 

6. É, pois, na falência do empenho verdadeiro na construção de uma vida boa para todos – de uma política coerente entre o discurso e a ação – que podemos e devemos encontrar, na maioria desses países, as causas do panorama correto, mas aceticamente descrito, por Jan Zielonika.

Em política, o fim do princípio da esperança leva sempre ao mesmo resultado: à degradação dos laços de solidariedade entre os homens, ao desespero e, por fim, à violência desenfreada.

A guerra, que, antes e agora, a cupidez de uns poucos provocou, está, pois, de novo, à nossa porta.

Quem atirou a primeira pedra, que se acuse!

Quem atirou a primeira pedra, que se denuncie


O que importa é tentar perceber que corda sensível foi tocada num lado e no outro do velho – e agora apenas cultural - muro de Berlim para despertar, em simultâneo, em ambos os seus flancos, as memórias dos hinos sinistros que conduziram a Europa e o mundo para a maior tragédia guerreira da História…


1. Quando escrevi, tempos atrás, um artigo sobre os efeitos dos telemóveis na sociedade e, a esse propósito, citei Orwell e a sua obra mais famosa – “1984” – não conhecia, nem havia lido nada sobre e do académico polaco Jan Zielonika.

Deparei, entretanto, com um artigo seu, “George Orwell e o Novo Normal da Europa”, publicado no Diário de Notícias.

O referido texto faz um enquadramento político e social da Europa atual e, a partir dele, justifica a sua ideia base:  o que são já e o que irão ser, mais abrangentemente no futuro, os valores, os objetivos e a prática política dominantes na Europa.

Identifica, em suma, tal caminho com a ascensão da direita radical e a adesão que os eleitores europeus de diversos países parecem querer demonstrar aos valores por esta sustentados.

Não esclarece, porém, do ponto de vista político, social e económico, quais as razões que terão levado os cidadãos de um grande número de países europeus a manifestar, agora, tal favorecimento da extrema-direita e das suas ideias e propostas.

Não explica, por exemplo, as motivações geracionais e as deslocações ideológicas de algumas classes, nem, em consequência, a razão da mudança do sentido de voto de vários e largos setores dos povos europeus.

E, contudo, tais mudanças não foram súbitas, nem sequer surpreendentes, para um observador minimamente atento e objetivo.

2. Na verdade, não parece verosímil que, de repente, em diversos países com passados culturais e políticos diferentes, mas integrados no mesmo bloco político-económico em que se insere a UE, tenham decidido fazer opções por ideologias que, mesmo que aparentemente amodernadas, são, na verdade, repescadas do baú da História.

Não parece, igualmente, evidente a razão pela qual os cidadãos de alguns desses países, que fizeram parte do bloco socialista até à queda do muro de Berlim, pareçam, agora, identificar-se, mais fervorosamente que outros, com tais ideologias reacionárias e em tudo contrárias ao sistema de valores em que – sem grandes resultados, pelos vistos  – os seus povos foram educados.

É igualmente inimaginável que muitos dos que dantes constituíam o chamado bloco ocidental – e que era tido e se tinha por assumidamente democrático e liberal – tenham, num mesmo momento, e num aparente volte face ideológico, decidido, também, fortalecer os mesmos velhos e perigosos percursos políticos da direita mais extrema.

Que se passou, entretanto; terão todos ensandecido?

Não basta, com efeito, identificar certeiramente a substituição dos valores e princípios que pareciam orientar cultural e politicamente as diferentes sociedades – capitalistas e socialistas – e afirmar, em seguida, que a miscelânea que, caído o muro, delas resultou se aproxima, hoje, muito razoavelmente, do paradigma orwelliano.

Até pode ser verdade e, depois, que explicação para tal fenómeno?

O que importa é tentar perceber que corda sensível foi tocada num lado e no outro do, materialmente desaparecido, muro para despertar, em simultâneo e em ambos os seus antigos flancos, as memórias dos hinos sinistros que conduziram a Europa e o mundo para a maior tragédia guerreira da História da humanidade.

Não é credível que tudo se resuma simplesmente, como alguns sugerem, aos efeitos – reais e imaginários – do fenómeno migratório atual.

Talvez pareça mais razoável situar, também, tal alteração de quimeras e projetos sociais na deslegitimação constante do Estado democrático e, consequentemente, na quebra de confiança nas instituições estatais e políticas que governam, hoje, os países e as sociedades dos dois lados do muro (cultural) que ainda as divide.

3. Vejamos, pois, mais atentamente, a realidade e atualidade dos dois mundos e dos países que os compunham e que parece estarem a sucumbir, concomitantemente, às tentações mais retrógradas.

De um lado – a leste – podemos dizer que lhes foi prometido um Estado de Justiça: igualdade, justiça social, mais liberdade e possibilidade de efetiva expressão de pontos de vista políticos, culturais e religiosos diferentes.

Todavia, passada a inicial euforia consumista, o que os povos desses países alcançaram foi, no essencial, um Estado de relativa legalidade – em alguns nem sequer um verdadeiro Estado de Direito – e um sistema económico ultraliberal, pouco amigo dos direitos sociais, mas especialmente carinhoso com o empreendedorismo dos novos oligarcas nascidos das elites das nacionalidades que compunham o seu anterior bloco político e militar.

De outro lado – do nosso lado -, caído o muro e passado o medo do “comunismo” que angustiava a alma e, principalmente, a bolsa dos capitalistas ocidentais, assistiu-se, ante a capitulação e mesmo a conivência da terceira via da social-democracia, ao desmoronar das bases económicas, sociais e jurídicas do Estado Social.

4. Podiam ser diferentes os paradigmas – eram-no, certamente -, mas, ainda assim, eram ambos paradigmas de esperança.

Ruindo, quase em simultâneo e, por isso, com mais ruído do que era suposto, as bases materiais dos dois sistemas e, mais ainda, os valores culturais, morais, ideológicos e políticos que os estabilizavam, criou-se, em ambos os lados, um deserto de futuro que afogou em areia vazia de sentido qualquer princípio de esperança ainda sobrante.

Com a queda do muro evidenciaram-se, também, com mais ou menos rapidez, profundidade e escândalo, as práticas abusivas e cleptocráticas que, de forma diferente, mas em ambos lados, se escondiam a coberto das ideias generosas que sustentavam a esperança dos povos europeus no progresso social.

Os efeitos materiais e políticos das crises económicas, que parecem só não ter afetado os interesses dos que as produziram e, além disso, a indignação geral com a complacência e a evidente falta de escrúpulos de vários governantes do chamado “centrão” que, entretanto, dirigiam, e dirigem ainda, a maioria dos estados europeus, aniquilaram o que restava da fé popular nas promessas políticas sempre repetidas, mas sempre, também, adiadas.

Hoje, em muitos dos países herdeiros culturais do muro e das sociedades que ele acomodava, o futuro dos jovens está, evidentemente, desenhado a cores muito mais escuras do que as que pintaram as expectativas dos seus pais, quando novos.

5. O pior que aconteceu e está acontecendo agora não se quedou, porém, por aí.

Para tentar soldar os cacos desencontrados desses dois mundos numa única realidade político-económica e iludir, assim, a frustração popular crescente, os que, de um lado e de outro da Europa, ganharam, entretanto, o poder total redescobriram a velha receita de sempre:  apontar o outro, o diferente, como inimigo, fazendo renascer a insana euforia nacionalista e guerreira que inebria os povos e lhes desvia a atenção da sua própria condição.

Alguns eventos recentes tornaram tudo um pouco mais claro e percetível.

A direita radical, antes verberada, não ameaça mais o establishment que nos governa a todos: veja-se a simpatia com que já se acolhe, nos fóruns europeus, a líder da extrema-direita italiana.

De objetora ao conflito a leste, esta “nova dirigente velha” passou depressa, conquistado o poder interno, a apoiar o partido europeu da guerra, para obter o reconhecimento dos seus pares no seio da UE.

O mesmo sucedeu, aliás, no início dos anos vinte do século passado, com alguns militantes socialistas italianos mais radicais, entre eles Mussolini, que criaram, depois, o partido fascista: de apoiantes indefetíveis da paz, passaram a defensores intransigentes das virtudes varonis e regeneradoras da guerra.

Também eles, depressa, começaram a ser olhados com benevolência pelos patrões da economia italiana e, rápido, chegaram ao poder.

Ao princípio, até Churchill os achava responsáveis e dignos de elogios.

Em seguida, veio tudo o mais: o nacionalismo exacerbado, o culto da raça e, mais tarde, o racismo e o ódio ao outro, a morte e, por fim, a tragédia da guerra mundial.

A França, entretanto, patina hoje, politica e culturalmente, ante uma difícil opção consubstanciada num resultado eleitoral que permite erguer uma de duas soluções antagónicas: erguer uma maioria parlamentar antifascista ou uma maioria parlamentar de direita mais ou menos radical.

Do outro lado do canal, no Reino Unido, o Partido Trabalhista, que alcançou uma esmagadora maioria absoluta, parece não saber como reforçar o orçamento para concretizar os seus generosos e avançados planos sociais e, simultaneamente, pagar os custos da guerra a leste, que assume, como nenhum outro parceiro ocidental, querer continuar a promover e apoiar. 

6. É, pois, na falência do empenho verdadeiro na construção de uma vida boa para todos – de uma política coerente entre o discurso e a ação – que podemos e devemos encontrar, na maioria desses países, as causas do panorama correto, mas aceticamente descrito, por Jan Zielonika.

Em política, o fim do princípio da esperança leva sempre ao mesmo resultado: à degradação dos laços de solidariedade entre os homens, ao desespero e, por fim, à violência desenfreada.

A guerra, que, antes e agora, a cupidez de uns poucos provocou, está, pois, de novo, à nossa porta.

Quem atirou a primeira pedra, que se acuse!