Voz-off.  “A voz humana é uma espécie de concerto maravilhoso”

Voz-off.  “A voz humana é uma espécie de concerto maravilhoso”


Há vozes que fazem parte do nosso imaginário, que ficam registadas na memória. Qual o poder da voz-off? O que é preciso ter em conta para se ser bem sucedido no ramo?


Muitas vezes não lhes conhecemos o rosto. No entanto, as suas vozes marcam e, algumas delas são inconfundíveis. Fazem parte do nosso quotidiano, ficam gravadas na memória e, muitas vezes, “perseguem-nos”, ficando a ressoar na nossa cabeça. Do inconfundível jingle do Mokambo que foi perdurando com o passar dos tempos à famosa publicidade do Pingo Doce, cada marca procura a voz que mais se adequa àquilo que pretende passar. A ausência visual de uma personagem numa narrativa define-se por voz-off. Mas afinal quem foram os grandes nomes da voz-off em Portugal? E agora? Que vozes ouvimos nas publicidades e o que há de tão fantástico nesta área?

O Sinatra da publicidade 

O primeiro nome que vale a pena lembrar é o de Jaime Fernandes, para muitos “uma espécie de Frank Sinatra da publicidade”. Aliás, Fernandes foi visto, durante muitos anos, como “a voz da publicidade em Portugal”. Tinha um timbre grave, meigo e pacífico. Despertou para a rádio ainda adolescente, quando emprestou a sua voz a sessões de teatro radiofónico, transmitidas na Emissora Nacional. Começou oficialmente a sua carreira nos anos 70 no Rádio Clube Português. Com uma carreira invejável, deu nome ao famoso programa da RFM, Oceano Pacífico. Dizem mesmo que, nos anos 80, era o mais bem pago no ramo – ganhava à linha -, ou seja, quanto mais dizia, mais ganhava.

Seguiu-se José Ramos, um dos primeiros homens a viverem à custa da voz-off em publicidade. Tinha uma voz cheia e ligeiramente rouca. “Era um grande locutor de rádio e a sua voz podia ser utilizada para tudo”, dizem algumas das pessoas com as quais trabalhou. Trabalhou na Rádio Comercial e na Rádio Nova, mas foram os 13 anos na SIC que tornaram a sua voz ainda mais reconhecida. Dizem que tanto era capaz de gravar as promoções de uma vez, “como podia passar uns bons minutos de volta de uma frase quando não se sentia satisfeito com o resultado”.

Também Aurélio Gomes se começou a destacar desde cedo pela sua voz quente e calma. Apesar de ter estudado psicologia, apaixonou-se na universidade pelo poder da voz. Trabalhou com José Marquitos na Rádio Nova do Porto, onde realizou o programa Sexo dos Anjos, com Júlio Machado Vaz, e no Rádio Clube Português, onde foi responsável por vários espaços de debate político. Atualmente faz a coordenação do programa da SIC Notícias, Eixo do Mal. 

Além destes nomes, destaca-se ainda Augusto Seabra, locutor da SIC, que já pertenceu aos quadros da RTP1. Atualmente também é o locutor da estação de rádio Mega Hits, tendo sido ainda anteriormente locutor da Rádio Comercial.

O poder da voz 

Detentor de uma voz inconfundível e reconhecida por todas as faixas etárias em Portugal, Eduardo Rêgo é locutor dos programas BBC Vida Selvagem e O Nosso Mundo. Já fez centenas de anúncios e milhares de documentários. Entre as publicidades que mais recorda estão: Cerveja POBEIRA; Parque dos Dinossauros da Lourinhã; EuroAfrican Fórum’2024; Cafeteria Lidl; Um Bongo e AGROS 75 Anos. Quando foi criado o dia da voz, foi imediatamente considerado a voz do ano. “O que é que distingue a minha voz das outras vozes? Muitas vezes a formação que tenho. Tenho uma preocupação tremenda com o português que uso, não me deixo conspurcar por outras línguas. Tenho um grande orgulho na nossa língua que é muito bem estruturada. Tive uns anos de latim e grego e, portanto, vou buscar sempre um termo mais adequado para enriquecer a frase e para que ela se oiça, se capte, com toda a substância que encerra”, explica Eduardo Rêgo, acrescentando que é aqui que começa “o edifício para uma voz boa, uma voz que se impõe sem ser persuasiva”. “A voz humana é uma espécie de concerto maravilhoso que inclui vários instrumentos: os pulmões, as pregas vocais dentro da laringe e os elementos de articulação de palavras como os lábios, a língua, os dentes, o palato. Uma vez fui a um dentista, foi preciso fazer uma alteração na dentição, e eu pedi-lhe por tudo que não me alterasse o registo”, revela. Talvez este seja um dos segredos para o sucesso do programa a que dá voz há 32 anos e que continua a ser líder de audiência. “Numa linguagem oralizada não pode haver cacofonias, erros de concordância, está tudo muito presente. A ressonância que a voz provoca na mente de quem ouve pode ser irritante ou agressiva, envolvente e mágica. Como eu espero que seja a minha!”, garante.

O princípio da sua caminhada pela publicidade faz-nos viajar até 1972, ano em que veio para Lisboa, com a intenção de moldar a sua forma de ser através da linguagem. A primeira publicidade que fez foi um anúncio para um filme da Disney. Desde essa altura que é a voz da empresa de animação em Portugal. No entanto, a publicidade que mais o marcou é a do Continente, porque tão depressa está a falar de fruta como de peixe ou carne. “São coisas muito diversas, apesar de tudo ser alimentação. Os anúncios foram feitos há anos e recorrentemente iam-me pagando tão só por estar no ar. Aquilo resulta. A publicidade bem feita faz com que o cliente queira mais”, reforça, acrescentado que a versatilidade também é uma das chaves para o sucesso.

As vozes criam sonhos 

Apesar de Eduardo Rêgo sentir que tem havido um declínio na qualidade dos locutores, há quem ainda o faça bem e se esforce para continuar a dar às marcas e às pessoas aquilo que procuram. “Talvez seja melhor começar por te contar que a minha passagem pela publicidade, dar voz para uma marca, foi curta. Desde que começou a Eleven, que agora é DAZN, preferi ficar mais sossegado, mais próximo da minha área de formação, que é o jornalismo. Ser voz de uma estação de televisão não me impede de poder estar no jornalismo. Gostaria que esta minha posição ficasse clara”, começa por ressalvar Miguel Ven Der Kellen, que se apercebeu que podia utilizar a sua voz nos meus primeiros tempos da rádio. “Comecei em 1996 num programa que dava ao fim de semana na Rádio Cascais e de repente as pessoas começaram a elogiar muito a minha voz”, lembra. Como a passagem pela rádio local o deixou com alguns “maus vícios”, foi à procura de curso de dicção e de interpretação. Depois quis ganhar outras competências e fez um workshop de dobragens de desenhos animados. “Quando terminei, a agência que promoveu o curso chamou-me para ser voz secundária de um anúncio para a Bacardi (aquele que era um barman a fazer uma caipirinha com rum numa discoteca). Mas acabei por ter de fazer a voz principal, o cliente preferiu a minha interpretação”, explica. Umas semanas depois foi chamado para ser a voz principal de uma marca de fraldas. “Depois disso a agência deixou de me chamar e ainda hoje não sei bem porquê. No entanto, nunca parei, mas com outro tipo de trabalhos de voz. Para marcas só fiquei com as campanhas internas do El Corte Inglês”, continua. O seu nome associou-se a vários programas televisivos, como Serviço de Saúde (RTP 1), Falar Global e Constituição Europeia (SIC Notícias) e ainda a documentários, de que se destaca Djunta Mon, exibido na RTP 2 e distinguido com uma Menção Honrosa pela Unesco.

Miguel gosta de escutar o sonho que as vozes ajudam a criar, “de todo o lado semiótico do som”. “O trabalho que eu mais gosto de fazer e é a concretização de um sonho de criança é ser a voz de uma estação de televisão. A primeira vez que gravei o promocional da UEFA Champions League foi marcante. Lembro-me que falava para crianças, a final ia ser no dia mundial da criança. Foi um sonho”, admite.

Nova geração 

Para Diogo Pires, atual locutor da Mega Hits, o que a voz-off tem de mais especial é o “imaginário”. “As representações que, sem existirem fisicamente, existem na mente de cada um que ouve as narrativas que contamos. As emoções que despertamos em quem escuta as nossas vozes e o poder incrível que a voz humana continua a ter para despertá-las”, afirma. A dada altura do seu crescimento, ficou viciado em identificar as vozes dos anúncios que passavam na televisão. Não descansava enquanto não sabia quem era quem. “Cresci a idolatrar esses locutores e locutoras, a procurar sempre entender como funcionava a indústria e com quem precisaria de falar um dia para ser eu a dar voz àqueles anúncios”, lembra o jovem locutor de 27 anos. Começou com 12 anos a gravar as primeiras demos e a enviar para agências para, pouco depois, começar a ser selecionado para alguns projetos. Ao longo destes anos tem dado voz a marcas como L’Oréal, Santander, Volkswagen, Betano, Emirates, entre muitas outras. “Entrei na indústria numa altura em que ela estava a mudar e há cada vez menos marcas que se prendem a uma voz por tanto tempo, como acontecia há uns cinco ou dez anos. Por isso, vão-me ouvindo a dar voz a campanhas de algumas marcas, depois hão de ouvir outras vozes, e talvez me ouçam novamente noutras campanhas de outras marcas… As coisas caminham para aí”, reflete. Segundo Diogo Pires, hoje o acesso a estes trabalhos está mais democratizado. “Há uns 10 anos, havia 10 vozes que se repetiam em todos os anúncios na televisão. O número é hipotético, mas eram realmente poucos locutores. O facto de algumas grandes marcas terem optado por deixar cair os seus gabinetes em Portugal obrigou-as, também, a procurar vozes noutros lugares, online, à distância. Hoje é muito fácil aparecer à frente de clientes. Para tudo o resto, vale o talento de cada um”.

Acerca do que é necessário para se ter sucesso no ramo, o jovem locutor acredita que é “perceber que isto não é sobre nós”. “Nunca é sobre a voz e nós, locutores, fechados na nossa bolha, tendemos a achar que é. É sobre sermos um instrumento numa composição maior que, seguramente, tem de soar próxima àquilo que o cliente idealizou”, aponta. “Na vastíssima maioria das vezes, não interessa como eu gostaria que a minha voz soasse, ou como eu quero ser percecionado quando for ouvido, seja em televisão, rádio, internet. Mesmo sabendo perfeitamente disto, dou por mim, às vezes, a pensar na voz em vez de me focar em sentir o texto e a mensagem”, admite. “Perceber que este trabalho não é sobre nós é a coisa mais desafiante para a maioria dos que entram agora e a quem tenho tido oportunidade de ensinar em algumas escolas de comunicação”, remata.