Uma reflexão em jeito de homenagem breve, mas sentida, a Joana Marques Vidal


Os motivos que moveram muitos a aderir à proclamação dos 50/100 são, reconheço, perfeitamente legítimos e mais não visam, na maioria dos casos, do que contribuir para alertar e corrigir procedimentos que afetam o funcionamento e a imagem da Justiça.


1. Um documento político, como indubitavelmente é o manifesto dos 50/100, pode e deve ser lido pelo que o seu texto explicitamente diz e pelos objetivos que, com ele, os seus subscritores, ou pelo menos alguns deles, querem atingir.

Ora, como todos sabemos, tais leituras podem não coincidir exatamente.

Numa democracia, como a nossa, nada há, no entanto, de estranho em tal atuação.

Nada de subversivo, também, na leitura política que, em documento próprio, muitos dos visados por esse manifesto fizeram de tal texto e de tal iniciativa.

Desde que tais intervenções sejam públicas e transparentes, nada, pois, a temer dessas tomadas de posição.

2. Alguns dos mais conhecidos subscritores do manifesto 50/100 são os mesmos que, há já largos anos, vêm tentando, com mais ou menos êxito, com mais ou menos clareza, fazer o que agora propõem.

Foram alguns deles que afrontaram Cunha Rodrigues por causa de um importante caso judicial.

Foram alguns deles, mas não necessariamente os mesmos, que, depois, com Souto Moura, aproveitando um processo que moralmente chocou os cidadãos, se conluiaram para logo imporem um novo PGR.

Um PGR de quem, seguidamente, todos se queriam ver livres, pois excedera em inabilidade, o que dele era pretendido.

Foi com um deles que debati, há já mais de vinte anos, na televisão, as causas e os autores usuais da violação do segredo de justiça e a quem mostrei, segundos antes de o programa entrar no ar, uma declaração sobre o tema em debate assinada por um jornalista conhecido.

Tendo-a lido, o meu interlocutor quase nada mais conseguiu dizer, então, de útil sobre o assunto, o que espantou muita gente, tanto os seus apoiantes como os oponentes.

Conheço, pois, bem a maneira como, sobre este assunto, alguns se manifestam e comportam e só posso reconhecer-lhes a coerência e a pertinácia.

3. O problema dos que se dizem, agora, indignados com a contestação à “campanha” a que o manifesto 50/100 deu, posteriormente, origem é, portanto, que muitos cidadãos enxerguem quem, verdadeiramente, a move e a razão porque o faz.

E, não tenhamos dúvidas, coincidente ou não com o objetivo declarado do dito manifesto, trata-se, agora, de facto, de uma outra realidade: de uma “campanha” que exprime, sobretudo, um pensamento negativo generalizado sobre o funcionamento da Justiça e nela critica, em especial, a ação do MP.

Basta atentar, no roteiro mediático persistente que tal iniciativa planeou e prossegue.

Só um tonto não entende.

Importa, porém, distinguir:

 – Uma coisa são as ações conjuntas e planeadas de alguns ativistas que se empenharam, especificamente, numa luta de há muito pensada e programada contra o MP (como instituição) e os seus alegados poderes exorbitantes.

 – A outra, bem diferente, são as críticas ao funcionamento atual da Justiça e desta magistratura em particular, vindos de quem tem a responsabilidade e a obrigação política de os corrigir.

Uma – a “campanha “- toma, por razões próprias dos que nela participam, o MP como inimigo; a outra trata de promover a sua reabilitação pública e, para isso, propõe-se melhorar a sua eficácia funcional.

Nem todos os que subscreveram o documento dos 50/100 – acredito piamente – participam, pois, na dita “campanha” ou, sequer, imaginaram fazê-lo.

Alguns, parece óbvio, ter-se-ão limitado, pois, a assinar o manifesto e com isso julgaram ter cumprido o seu dever cívico.

4. Raros são, entretanto, os juristas que têm sustentado publicamente a “campanha” que sucedeu ao manifesto que assinaram.

Não por acaso, também, os porta-vozes habituais da “campanha” que, já autonomizada, sucedeu à publicitação do referido manifesto provêm de outras áreas do saber.

Apresentam-se como genuínos representantes da sociedade civil, não referindo, contudo, os problemas que, antes, todos, ou quase, tiveram com a Justiça.

Nas democracias consolidadas, costuma chamar-se a tal deposição prévia: “declaração de interesses”.

Por estas e outras razões, os tais porta-vozes da “campanha”, com mais ou menos galhardia e autoconvencida comicidade ou desajustada e ácida severidade, lá vão debitando umas explicações cada vez mais inexplicáveis sobre o que verdadeiramente pretendem.

Daí, igualmente, a sua preferência por exclamações bombásticas e polémicas, como, de resto, convém aos media escolhidos para, a todas as horas possíveis, as divulgarem, com rara regularidade e insistência, nos noticiários.

A ignorância é e sempre foi muito atrevida.

5. Os motivos que moveram muitos a aderir à proclamação dos 50/100 são, reconheço, perfeitamente legítimos.

Eles mais não visaram, na maioria dos casos, do que contribuir para alertar e corrigir procedimentos que afetam o funcionamento e a imagem da Justiça.

Outros, porém, apontam mais alto e almejam já diferentes objetivos, que se situam muito além daqueles que o manifesto explicitamente refere.

Não por acaso, a ação propagandística que se seguiu à divulgação do manifesto foi promovida e teve lugar no final do mandato da atual PGR e nas vésperas da escolha do futuro titular do cargo.

A escolha que o Governo e o Presidente da República hão-de fazer é, pois, para alguns, o motivo principal desta iniciativa.

De uma ou de outra maneira, não é a primeira vez que este género de entremetimento acontece por via da intervenção – então mais recatada – de alguns dos mais famosos nomes que subscrevem o referido documento: os resultados não foram, porém, os melhores.

Como, em rigor, não sabem bem do que falam, julgam, assim, poder reverter, por artes mágicas, o funcionamento do sistema judicial ou, no mínimo, controlá-lo melhor.

6. No mais – mesmo quando aparentam ignorá-lo – todos, inclusive os não juristas, sabem que vai ser difícil mudar radicalmente o paradigma do sistema judicial existente.

Outros, em outros países, já o tentaram e tiveram de recuar para não sofrerem pesadas sanções da União Europeia (UE).

Muitos são, com efeito, os admiradores declarados da UE que não perceberam ainda o papel unificador do Direito judiciário europeu, que a Comissão e o Tribunal do Luxemburgo têm promovido nos anos mais recentes e que impede, a nível nacional, o poder de, autonomamente, lhe mudar de rumo.

Além de que, entre nós, os diagnósticos estão, na sua maioria, feitos e as soluções para os problemas identificados são simples e só não foram já concretizadas por razões de oportunidade política, tantas vezes justificadas por alguns dos que, agora, se indignam pelo facto de tais mudanças não terem ocorrido.

7. Sim, o sistema de Justiça penal – nele se incluindo o MP – necessita de ajustamentos urgentes e certeiros e ninguém, em especial os que nele atuam diariamente, percebe porque não aconteceram já.

Refiro-me, por exemplo, no que aos chamados megaprocessos diz respeito, às necessárias e simples clarificações de alguns artigos do Código de Processo Penal.

Refiro-me, igualmente, no que à organização do MP pertence, à revogação, afinamento e regulamentação de um conjunto de normas do seu Estatuto, aprovado, recentemente, com geral aceitação na AR, por proposta de um dos anteriores governos e cujo resultado, afinal, não foi, como muitas vezes acontece, o que se previa.

Refiro-me, também, à necessária discussão sobre o alargamento do âmbito da intervenção e poderes do juiz da Instrução (juiz das liberdades), no decurso do inquérito criminal e da sua indispensável afetação ao processo, do início até ao fim.

Refiro-me ao problema das escutas e outras interceções, à razão da sua necessidade, à possibilidade do uso das suas transcrições como prova, à sua duração e ao controlo da utilização e manuseamento que delas deve ser feito.

Refiro-me, com não menor pertinência, à necessidade de conferir e diminuir o tamanho das peças processuais produzidas pelo MP, pelos advogados dos arguidos e assistentes e, bem assim, o das decisões dos juízes de primeira instância e dos tribunais superiores.

Refiro-me, por estranho que pareça a um leigo ou a um académico, à imprescindível proibição de, nos despachos e decisões, se citar doutrina, e de apenas se consentir aos magistrados indicar a jurisprudência, sem, contudo, lhes permitir copiar e introduzir nas decisões extratos da mesma: as decisões judiciais e as do MP devem ser claras e justificar-se por si mesmas e sem recurso a muletas.

Refiro-me, enfim, à necessidade de, para cada facto indicado ou descrito numa acusação ou petição serem, desde logo, e na sua sequência imediata, apontados os elementos de prova que o atestam, identificando-se o número da página e volume onde eles constam ou são referidos.

Refiro-me à comprovada necessidade de o procurador que foi titular do inquérito ir, nos casos mais complexos e importantes, defender a sua acusação em julgamento.  

Refiro-me, por fim, a um mais simples e mais transparente relacionamento funcional entre as magistraturas – mormente o MP – e os órgãos de polícia criminal que atuam, ou devem efetivamente atuar, sob a sua orientação, no decurso do inquérito, no que respeita, por exemplo, à escolha das datas e momentos da execução das diligências externas de investigação.

É, aliás, por na realidade nada de útil sobre temas concretos nele se propor, que o manifesto dos 50/100 não é levado muito a sério pela maioria dos profissionais do foro, que sabem o que verdadeiramente importa e percebem igualmente bem, o que move alguns dos seus mais conhecidos impulsionadores e publicitários.

Mas devia ser tomado a sério, mesmo muito a sério.

O que está em causa é, não apenas ou sobretudo, a melhoria da eficiência da Justiça e a defesa dos direitos e garantias dos cidadãos, mas, não menos importante, a credibilidade de um sistema judicial que, apesar de todos os erros e visíveis deficiências, age, por norma, com independência e procura que a lei seja aplicada igualmente a todos os cidadãos.

8. Com maior ou menor subtileza, somos, com efeito, confrontados pelos promotores da “campanha” pós-manifesto com a necessidade de escolha entre distintos projetos de Justiça e do papel que nela deve ter o MP.

Consequente e implicitamente, teremos, também, de optar por dois diferentes perfis para um futuro PGR.

Um que, independentemente da sua proveniência profissional, corresponda à imagem tradicional de um magistrado: ponderado, isento e objetivo no cumprimento da lei.

O outro, magistrado de origem ou não, mais próximo do perfil de um comissário político e, por isso, disponível para tomar e executar decisões processuais concretas, que outros lhe determinem, mesmo que não baseadas, forçosamente, em diplomas legais de política criminal geral e abstrata.

O problema é que, enquanto dominar na Constituição o princípio da legalidade no exercício da ação penal, quer um quer outro dos referidos perfis de PGR terão de acomodar-se, no exercício da sua função, à prevalência da lei.

9. O último perfil de PGR que descrevi será, porventura – admito – o que melhor se adequa ao projeto de alguns dos mais antigos e insistentes inspiradores e, bem assim, dos mais recentes pregadores do manifesto dos 50/100.

Mas, nos dias de hoje, tal opção comporta, convenhamos, um problema: destapa demais e demasiado depressa o que dela se pretende.

Na perspetiva dos que, contudo, insistem em defender uma tal solução, aqui lhes deixo, pro bono, uma sugestão alternativa: discutam, abertamente, a possibilidade constitucional da restauração, em moldes novos, e até mais abrangentes, claro, da velha e comprovadamente eficaz “garantia administrativa” existente no anterior regime.

Caso seja constitucionalmente admissível, assumir-se-ia, deste modo, sem máscara, nem necessidade de intermediário, um filtro político indisfarçável que, em casos previamente caracterizados por lei, condicionasse a iniciativa penal do MP.

Com isso, cada poder constitucional assumiria, com transparência e publicamente, as suas responsabilidades.

Além de que, deste modo, não se desgastavam mais nomes de juristas sérios, nem haveria necessidade de se jogar, dissimuladamente, parte relevante das decisões concretas de política criminal sobre os ombros de quem aceitasse vir a ser PGR.

Estou certo que, neste caso, não só os “lesados da Justiça”, mas também, a maioria dos Procuradores da República passariam a dormir mais tranquilamente à noite.

PS: Desconsolado com o falecimento de Joana Marques Vidal – a quem aqui presto homenagem como magistrada e recordo já, com saudade, como amiga – conforta-me que, ao menos, tenha sido poupada a ver o epílogo de toda esta estória.

Uma reflexão em jeito de homenagem breve, mas sentida, a Joana Marques Vidal


Os motivos que moveram muitos a aderir à proclamação dos 50/100 são, reconheço, perfeitamente legítimos e mais não visam, na maioria dos casos, do que contribuir para alertar e corrigir procedimentos que afetam o funcionamento e a imagem da Justiça.


1. Um documento político, como indubitavelmente é o manifesto dos 50/100, pode e deve ser lido pelo que o seu texto explicitamente diz e pelos objetivos que, com ele, os seus subscritores, ou pelo menos alguns deles, querem atingir.

Ora, como todos sabemos, tais leituras podem não coincidir exatamente.

Numa democracia, como a nossa, nada há, no entanto, de estranho em tal atuação.

Nada de subversivo, também, na leitura política que, em documento próprio, muitos dos visados por esse manifesto fizeram de tal texto e de tal iniciativa.

Desde que tais intervenções sejam públicas e transparentes, nada, pois, a temer dessas tomadas de posição.

2. Alguns dos mais conhecidos subscritores do manifesto 50/100 são os mesmos que, há já largos anos, vêm tentando, com mais ou menos êxito, com mais ou menos clareza, fazer o que agora propõem.

Foram alguns deles que afrontaram Cunha Rodrigues por causa de um importante caso judicial.

Foram alguns deles, mas não necessariamente os mesmos, que, depois, com Souto Moura, aproveitando um processo que moralmente chocou os cidadãos, se conluiaram para logo imporem um novo PGR.

Um PGR de quem, seguidamente, todos se queriam ver livres, pois excedera em inabilidade, o que dele era pretendido.

Foi com um deles que debati, há já mais de vinte anos, na televisão, as causas e os autores usuais da violação do segredo de justiça e a quem mostrei, segundos antes de o programa entrar no ar, uma declaração sobre o tema em debate assinada por um jornalista conhecido.

Tendo-a lido, o meu interlocutor quase nada mais conseguiu dizer, então, de útil sobre o assunto, o que espantou muita gente, tanto os seus apoiantes como os oponentes.

Conheço, pois, bem a maneira como, sobre este assunto, alguns se manifestam e comportam e só posso reconhecer-lhes a coerência e a pertinácia.

3. O problema dos que se dizem, agora, indignados com a contestação à “campanha” a que o manifesto 50/100 deu, posteriormente, origem é, portanto, que muitos cidadãos enxerguem quem, verdadeiramente, a move e a razão porque o faz.

E, não tenhamos dúvidas, coincidente ou não com o objetivo declarado do dito manifesto, trata-se, agora, de facto, de uma outra realidade: de uma “campanha” que exprime, sobretudo, um pensamento negativo generalizado sobre o funcionamento da Justiça e nela critica, em especial, a ação do MP.

Basta atentar, no roteiro mediático persistente que tal iniciativa planeou e prossegue.

Só um tonto não entende.

Importa, porém, distinguir:

 – Uma coisa são as ações conjuntas e planeadas de alguns ativistas que se empenharam, especificamente, numa luta de há muito pensada e programada contra o MP (como instituição) e os seus alegados poderes exorbitantes.

 – A outra, bem diferente, são as críticas ao funcionamento atual da Justiça e desta magistratura em particular, vindos de quem tem a responsabilidade e a obrigação política de os corrigir.

Uma – a “campanha “- toma, por razões próprias dos que nela participam, o MP como inimigo; a outra trata de promover a sua reabilitação pública e, para isso, propõe-se melhorar a sua eficácia funcional.

Nem todos os que subscreveram o documento dos 50/100 – acredito piamente – participam, pois, na dita “campanha” ou, sequer, imaginaram fazê-lo.

Alguns, parece óbvio, ter-se-ão limitado, pois, a assinar o manifesto e com isso julgaram ter cumprido o seu dever cívico.

4. Raros são, entretanto, os juristas que têm sustentado publicamente a “campanha” que sucedeu ao manifesto que assinaram.

Não por acaso, também, os porta-vozes habituais da “campanha” que, já autonomizada, sucedeu à publicitação do referido manifesto provêm de outras áreas do saber.

Apresentam-se como genuínos representantes da sociedade civil, não referindo, contudo, os problemas que, antes, todos, ou quase, tiveram com a Justiça.

Nas democracias consolidadas, costuma chamar-se a tal deposição prévia: “declaração de interesses”.

Por estas e outras razões, os tais porta-vozes da “campanha”, com mais ou menos galhardia e autoconvencida comicidade ou desajustada e ácida severidade, lá vão debitando umas explicações cada vez mais inexplicáveis sobre o que verdadeiramente pretendem.

Daí, igualmente, a sua preferência por exclamações bombásticas e polémicas, como, de resto, convém aos media escolhidos para, a todas as horas possíveis, as divulgarem, com rara regularidade e insistência, nos noticiários.

A ignorância é e sempre foi muito atrevida.

5. Os motivos que moveram muitos a aderir à proclamação dos 50/100 são, reconheço, perfeitamente legítimos.

Eles mais não visaram, na maioria dos casos, do que contribuir para alertar e corrigir procedimentos que afetam o funcionamento e a imagem da Justiça.

Outros, porém, apontam mais alto e almejam já diferentes objetivos, que se situam muito além daqueles que o manifesto explicitamente refere.

Não por acaso, a ação propagandística que se seguiu à divulgação do manifesto foi promovida e teve lugar no final do mandato da atual PGR e nas vésperas da escolha do futuro titular do cargo.

A escolha que o Governo e o Presidente da República hão-de fazer é, pois, para alguns, o motivo principal desta iniciativa.

De uma ou de outra maneira, não é a primeira vez que este género de entremetimento acontece por via da intervenção – então mais recatada – de alguns dos mais famosos nomes que subscrevem o referido documento: os resultados não foram, porém, os melhores.

Como, em rigor, não sabem bem do que falam, julgam, assim, poder reverter, por artes mágicas, o funcionamento do sistema judicial ou, no mínimo, controlá-lo melhor.

6. No mais – mesmo quando aparentam ignorá-lo – todos, inclusive os não juristas, sabem que vai ser difícil mudar radicalmente o paradigma do sistema judicial existente.

Outros, em outros países, já o tentaram e tiveram de recuar para não sofrerem pesadas sanções da União Europeia (UE).

Muitos são, com efeito, os admiradores declarados da UE que não perceberam ainda o papel unificador do Direito judiciário europeu, que a Comissão e o Tribunal do Luxemburgo têm promovido nos anos mais recentes e que impede, a nível nacional, o poder de, autonomamente, lhe mudar de rumo.

Além de que, entre nós, os diagnósticos estão, na sua maioria, feitos e as soluções para os problemas identificados são simples e só não foram já concretizadas por razões de oportunidade política, tantas vezes justificadas por alguns dos que, agora, se indignam pelo facto de tais mudanças não terem ocorrido.

7. Sim, o sistema de Justiça penal – nele se incluindo o MP – necessita de ajustamentos urgentes e certeiros e ninguém, em especial os que nele atuam diariamente, percebe porque não aconteceram já.

Refiro-me, por exemplo, no que aos chamados megaprocessos diz respeito, às necessárias e simples clarificações de alguns artigos do Código de Processo Penal.

Refiro-me, igualmente, no que à organização do MP pertence, à revogação, afinamento e regulamentação de um conjunto de normas do seu Estatuto, aprovado, recentemente, com geral aceitação na AR, por proposta de um dos anteriores governos e cujo resultado, afinal, não foi, como muitas vezes acontece, o que se previa.

Refiro-me, também, à necessária discussão sobre o alargamento do âmbito da intervenção e poderes do juiz da Instrução (juiz das liberdades), no decurso do inquérito criminal e da sua indispensável afetação ao processo, do início até ao fim.

Refiro-me ao problema das escutas e outras interceções, à razão da sua necessidade, à possibilidade do uso das suas transcrições como prova, à sua duração e ao controlo da utilização e manuseamento que delas deve ser feito.

Refiro-me, com não menor pertinência, à necessidade de conferir e diminuir o tamanho das peças processuais produzidas pelo MP, pelos advogados dos arguidos e assistentes e, bem assim, o das decisões dos juízes de primeira instância e dos tribunais superiores.

Refiro-me, por estranho que pareça a um leigo ou a um académico, à imprescindível proibição de, nos despachos e decisões, se citar doutrina, e de apenas se consentir aos magistrados indicar a jurisprudência, sem, contudo, lhes permitir copiar e introduzir nas decisões extratos da mesma: as decisões judiciais e as do MP devem ser claras e justificar-se por si mesmas e sem recurso a muletas.

Refiro-me, enfim, à necessidade de, para cada facto indicado ou descrito numa acusação ou petição serem, desde logo, e na sua sequência imediata, apontados os elementos de prova que o atestam, identificando-se o número da página e volume onde eles constam ou são referidos.

Refiro-me à comprovada necessidade de o procurador que foi titular do inquérito ir, nos casos mais complexos e importantes, defender a sua acusação em julgamento.  

Refiro-me, por fim, a um mais simples e mais transparente relacionamento funcional entre as magistraturas – mormente o MP – e os órgãos de polícia criminal que atuam, ou devem efetivamente atuar, sob a sua orientação, no decurso do inquérito, no que respeita, por exemplo, à escolha das datas e momentos da execução das diligências externas de investigação.

É, aliás, por na realidade nada de útil sobre temas concretos nele se propor, que o manifesto dos 50/100 não é levado muito a sério pela maioria dos profissionais do foro, que sabem o que verdadeiramente importa e percebem igualmente bem, o que move alguns dos seus mais conhecidos impulsionadores e publicitários.

Mas devia ser tomado a sério, mesmo muito a sério.

O que está em causa é, não apenas ou sobretudo, a melhoria da eficiência da Justiça e a defesa dos direitos e garantias dos cidadãos, mas, não menos importante, a credibilidade de um sistema judicial que, apesar de todos os erros e visíveis deficiências, age, por norma, com independência e procura que a lei seja aplicada igualmente a todos os cidadãos.

8. Com maior ou menor subtileza, somos, com efeito, confrontados pelos promotores da “campanha” pós-manifesto com a necessidade de escolha entre distintos projetos de Justiça e do papel que nela deve ter o MP.

Consequente e implicitamente, teremos, também, de optar por dois diferentes perfis para um futuro PGR.

Um que, independentemente da sua proveniência profissional, corresponda à imagem tradicional de um magistrado: ponderado, isento e objetivo no cumprimento da lei.

O outro, magistrado de origem ou não, mais próximo do perfil de um comissário político e, por isso, disponível para tomar e executar decisões processuais concretas, que outros lhe determinem, mesmo que não baseadas, forçosamente, em diplomas legais de política criminal geral e abstrata.

O problema é que, enquanto dominar na Constituição o princípio da legalidade no exercício da ação penal, quer um quer outro dos referidos perfis de PGR terão de acomodar-se, no exercício da sua função, à prevalência da lei.

9. O último perfil de PGR que descrevi será, porventura – admito – o que melhor se adequa ao projeto de alguns dos mais antigos e insistentes inspiradores e, bem assim, dos mais recentes pregadores do manifesto dos 50/100.

Mas, nos dias de hoje, tal opção comporta, convenhamos, um problema: destapa demais e demasiado depressa o que dela se pretende.

Na perspetiva dos que, contudo, insistem em defender uma tal solução, aqui lhes deixo, pro bono, uma sugestão alternativa: discutam, abertamente, a possibilidade constitucional da restauração, em moldes novos, e até mais abrangentes, claro, da velha e comprovadamente eficaz “garantia administrativa” existente no anterior regime.

Caso seja constitucionalmente admissível, assumir-se-ia, deste modo, sem máscara, nem necessidade de intermediário, um filtro político indisfarçável que, em casos previamente caracterizados por lei, condicionasse a iniciativa penal do MP.

Com isso, cada poder constitucional assumiria, com transparência e publicamente, as suas responsabilidades.

Além de que, deste modo, não se desgastavam mais nomes de juristas sérios, nem haveria necessidade de se jogar, dissimuladamente, parte relevante das decisões concretas de política criminal sobre os ombros de quem aceitasse vir a ser PGR.

Estou certo que, neste caso, não só os “lesados da Justiça”, mas também, a maioria dos Procuradores da República passariam a dormir mais tranquilamente à noite.

PS: Desconsolado com o falecimento de Joana Marques Vidal – a quem aqui presto homenagem como magistrada e recordo já, com saudade, como amiga – conforta-me que, ao menos, tenha sido poupada a ver o epílogo de toda esta estória.